COMENTÁRIO A “POR QUE SOMOS O NOSSO CÉREBRO: O ENATIVISMO POSTO EM QUESTÃO”: CEREBRALISMO RADICAL


César Fernando Meurer1


Referência do artigo comentado: PEREIRA, R. H. S.; SOUZA FILHO, S. F. de; BARCELLOS, V. M. Por que somos nossos cérebros. O enativismo posto em questão. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 517-554, 2023.



Na intenção de mostrar que as recentes abordagens enativistas da mente e da cognição estão equivocadas, Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) endossam uma posição que chamarei de cerebralismo radical. A primeira parte deste comentário realça a tese-chave que distingue essa posição do cerebralismo do senso comum e do cerebralismo crítico. A segunda parte apresenta algumas conjecturas sobre as implicações do cerebralismo radical.


[i]

Na seção conclusiva do artigo, Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023, p. 549) perguntam: “O que somos, afinal? Qual seria a nossa natureza última?” A resposta, já antecipada no título, assegura que “Somos o nosso próprio cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.” (PEREIRA; SOUZA FILHO; BARCELLOS, 2023, p. 517). Esse slogan expressa a tese-chave: uma concepção cerebralista de pessoa. A marca distintiva do cerebralismo radical aqui em comento é justamente esse posicionamento antropológico. Nos próximos parágrafos, procurarei evidenciar que nem o cerebralismo do senso comum e tampouco o cerebralismo crítico endossam tal concepção de pessoa.

Uso a expressão “cerebralismo do senso comum”, para designar o entendimento amplamente difundido na cultura ocidental, segundo o qual o cérebro é uma espécie de centro organizador dos pensamentos (raciocínios, memórias etc.) e do funcionamento do corpo (funções vitais básicas etc.). Arrisco que a ampla maioria das pessoas aceita esse entendimento, sem desconfortos. É uma visão um tanto vaga, não rigorosamente formulada, a qual pode vir acompanhada por outras crenças populares (a crença de que o coração é uma espécie de centro emocional; a crença de que há seres desencarnados etc.). Meu ponto: o cerebralismo do senso comum, centrado na ideia de que o cérebro é um centro organizador, parece mais bem sintonizado com a tese de que possuímos um cérebro, dentre outros órgãos. Mesmo reconhecendo o papel central do cérebro, um cerebralista do senso comum tende a rejeitar que “Somos o nosso próprio cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.”

Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) buscam certa sintonia com o senso comum. Eles recorrem a intuições populares, a fim de apontar que as posições enativistas são “contraintuitivas” (inteiramente, extremamente, completamente… eles fazem questão de enfatizar), bem como quando conduzem seus leitores com perguntas, tais como “o que diríamos intuitivamente?” e com afirmações tais como “a resposta intuitiva é…” Não obstante, minha constatação é a seguinte: a tese-chave do cerebralismo radical (“Somos o nosso próprio cérebro...”) é tão contraintuitiva quanto as teses enativistas.

Uso a expressão “cerebralismo crítico”, para designar a posição articulada por Adams e Aizawa (2010), em resposta à tese da mente estendida de Clark e Chalmers (1998). A tese-chave desses autores é que a cognição é contingentemente intracraniana. A defesa dessa tese se dá por meio da defesa de duas condições, as quais, segundo eles, são necessárias e suficientes para demarcar as fronteiras da cognição: (i) A cognição envolve representações não derivadas; (ii) A cognição ocorre por meio de mecanismos particulares que são encontrados apenas dentro do crânio. A cognição é contingentemente intracraniana, pois esses mecanismos poderiam, em princípio, ser encontrados fora do crânio. Além disso, eles poderiam, em princípio, operar representações derivadas. Nas palavras deles:

[T]he way we see it, there are two principal features of intracranial processes – their use of non-derived representations governed by idiosyncratic kinds of processes – that serve to distinguish cognitive from non-cognitive processes. These features constitute a “mark of the cognitive” and they provide some non-question-begging reason to think that cognition is intracranial [...] Our view is that, as a matter of contingent empirical fact, cognitive processing typically occurs within brains, even though it is possible for it to extend. (Adams; Aizawa, 2010, p. 10, 47).2


Meu ponto aqui é o seguinte: Adams e Aizawa (2010) não propõem uma concepção cerebralista de pessoa, mas apenas uma concepção cerebralista de cognição. Nada do que eles defendem leva à conclusão de que “Somos o nosso próprio cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.”

Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) não citam o trabalho de Adams e Aizawa (2010). Vejo isso como um indício de que o cerebralismo radical não busca sintonia explícita com o cerebralismo crítico, que tantos debates gerou, ao longo da última década (e.g. MENARY, 2010). Mais: a conclusão que Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) extraem de um experimento com macacos controlando dispositivos artificiais – eles dizem: “[...] pelo experimento de Nicolelis e colegas podemos concluir que é o próprio cérebro que se estende para além dos limites dados pelo corpo biológico.” (PEREIRA; SOUZA FILHO; BARCELLOS, 2023, p. 533 – itálico no original) – é estranha à luz das duas condições por meio das quais Adams e Aizawa demarcam as fronteiras da cognição.

Estamos, pois, diante de uma posição radical: uma concepção cerebralista de pessoa (“Somos o nosso próprio cérebro”). Com ela, os nobres colegas se afastam do entendimento popular de que o cérebro é um centro organizador dos pensamentos e do funcionamento do corpo (que aqui chamei de “cerebralismo do senso comum”). Por outro lado, eles se afastam também da tese de que a cognição é contingentemente intracraniana (aqui chamada de “cerebralismo crítico”). Como já sinalizei, o cerebralismo radical me parece altamente contraintuitivo.


[ii]

O objetivo de Pereira, Souza Filho e Barcellos (2023) é mostrar que as abordagens enativistas da mente e da cognição estão equivocadas. “Nonsense”, eles repetem algumas vezes, ao longo do texto. Considerando as observações da seção anterior, a propositura de um cerebralismo radical para remediar o enativismo evoca a metáfora da curvatura da vara: para endireitar uma vara torta, não é suficiente colocá-la na posição correta; é preciso curvá-la para o lado oposto. No que segue, vou sugerir que o cerebralismo radical pode ser lido como uma proposta de “curvar a vara” de volta à modernidade e que isso tem implicações preocupantes.

Conforme Rogério Azize (2008, p. 11), antropólogo do Instituto de Medicina Social da UERJ, as abordagens que “colam o indivíduo ao seu cérebro” convertem este último em “[...] um déspota que domina a nossa subjetividade, um órgão imperador que rege estados de humor e define a nossa identidade.” (AZIZE, 2008, p. 08). Tais abordagens, argumenta ele, em outra publicação (AZIZE, 2010, p. 568), ecoam concepções modernas de sujeito e de civilização: “O modelo do indivíduo autônomo e singular é rebatido sobre o cérebro, que vira um agente que ‘nos permite’, no limite, construir um certo modelo de civilização.” Tal modelo de indivíduo, prossegue Azize, “[...] radicaliza algumas características do sujeito moderno, em especial os valores da singularidade, da autonomia e da possibilidade de constante construção de si.” (AZIZE, 2010, p. 568).

Se somos o nosso próprio cérebro, então a aposta moderna no progresso do sujeito se reapresenta como uma “Bildung neurológica” (AZIZE, 2010). Quer dizer: progredimos como indivíduos, na medida em que melhoramos o próprio cérebro, um órgão extraordinariamente plástico. Assim, aquilo que nos distingue e define depende crucialmente do que logramos, em termos de autoconstrução neurológica. Nessa linha, seria possível melhorar o próprio cérebro, investindo em atividades que demandam raciocínio e memória, cultivando intencionalmente certos hábitos considerados bons ou saudáveis e assim por diante.

Outro patamar de autoconstrução neurológica é o das assim chamadas smart drugs: pílulas que “turbinam” o cérebro e melhoram seu desempenho (DANCE, 2016). Outro patamar é, evidentemente, o dos fármacos destinados a diminuir ou suprimir emoções e sentimentos indesejados. É em atenção a esses patamares pautados por fármacos que Azize (2008, p. 10) suspeita que a tese da identidade como uma construção neurológica leva a “[...] uma medicalização da ‘subjetividade’, ou da ‘vida’ ela mesma, com argumentos hoje difíceis de refutar – visto ocuparem o lugar de palavras mágicas do nosso tempo – como a busca por mais ‘qualidade de vida’.” Em nome de uma pretensa qualidade de vida, alguém poderia sugerir absurdos, tais como medicalizar desde logo e em caráter preventivo a subjetividade infantil, os processos de ensino e aprendizagem, os fenômenos sociais, a subjetividade senil e assim por diante. O que diríamos intuitivamente? Nonsense, digo eu, sem hesitar.

Em 2012, o Conselho Federal de Psicologia lançou uma campanha contra a medicalização da vida. Na cartilha “Subsídios para a campanha Não à medicalização da vida” (Conselho Federal de Psicologia, 2012, p. 06), esse Conselho manifesta preocupação com “o retorno das explicações organicistas”, com base nas quais se elevou exponencialmente o uso de medicamentos para diminuir, por exemplo, o déficit de atenção e melhorar a aprendizagem infantil. À luz das explicações organicistas, qualquer dificuldade do indivíduo (seja cognitiva, seja social, emocional ou outra) recai sobre um órgão: o cérebro desse indivíduo. Sob essa ótica, uma criança com dificuldades nos estudos não suscita inquietações e reflexões sobre os métodos de ensino, sobre o ambiente escolar e familiar e assim por diante. A abordagem organicista

[...] busca na criança, em áreas de seu cérebro, em seu comportamento manifesto as causas das dificuldades de leitura, escrita, cálculo e acompanhamento dos conteúdos escolares. A criança com dificuldades em leitura e escrita é diagnosticada, procuram-se as causas, apresenta-se o diagnóstico e em seguida a medicação ou o acompanhamento terapêutico. E o que é mais perverso nesse processo, sob o nosso ponto de vista, é que os defensores das explicações organicistas defendem a patologização da criança que não aprende ou não se comporta na escola, como um direito (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 2012, p. 07).



Essas questões são complexas e urgentes, em nossa sociedade. Menciono-as apenas para especular o seguinte: o cerebralismo radical, sintetizado no slogan “Somos o nosso próprio cérebro”, parece implicar a tese da identidade como uma construção neurológica. Essa tese, por sua vez, pode funcionar como base para justificar a crescente medicalização da subjetividade.



Referências

ADAMS, F.; AIZAWA, K. The bounds of cognition. Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2010.

AZIZE, R. Uma neuro-weltanschauung? Fisicalismo e subjetividade na divulgação de doenças e medicamentos do cérebro. Revista Mana, v. 14, n. 1, p. 07-30, 2008. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000100001.

AZIZE, R. O cérebro como órgão pessoal: uma antropologia de discursos neurocientíficos. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v. 8, n. 3, p. 563-574, 2010. https://doi.org/10.1590/S1981-77462010000300014.

CLARK, A.; CHALMERS, D. The extended mind. Analysis, v. 58, n. 1, p. 07-19, 1998. https://doi.org/10.1093/analys/58.1.7.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Subsídios para a campanha “Não à medicalização da vida”. Brasília: CFP, 2012. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/Caderno_AF.pdf. Acesso em: 02 jan. 2023.

DANCE, A. Smart drugs: a dose of intelligence. Nature, v. 531, S2-S3, 2016. https://doi.org/10.1038/531S2a.

MENARY, R. (ed.). The extended mind. Cambridge, MA: MIT Press, 2010.

PEREIRA, R. H.; SOUZA FILHO, S.; BARCELLOS, V. M. Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão. Revista Trans/Form/Ação, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 517-554, 2023.



Recebido: 12/02/2023

Aceito: 20/02/2023



1 Professor Associado de História da Filosofia no Laboratório de Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), Campos dos Goytacazes, RJ - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9504-0325. E-mail: cesarmeurer@gmail.com.

2 Tradução livre: “Do nosso ponto de vista, existem duas características principais dos processos intracranianos - a utilização de representações não derivadas regidas por processos idiossincráticos - que servem para distinguir os processos cognitivos dos não cognitivos. Essas características constituem uma “marca do cognitivo” e fornecem alguma razão sem petição de princípio para pensar que a cognição é intracraniana. [...] A nossa opinião é que, por uma questão de facto empírico contingente, o processamento cognitivo ocorre tipicamente dentro dos cérebros, embora seja possível que se estenda.”