COMENTÁRIO A “SOBRE O STATUS METAFÍSICO DAS CORES”: A CONCEPÇÃO COMUM DAS CORES E A CIÊNCIA DAS CORES1
Raquel Krempel2
Referência do artigo comentado: SMITH, P. J. Sobre o status metafísico das cores. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 473-500, 2003.
Cores são propriedades intrínsecas dos objetos físicos? Elas existem realmente nas coisas, de tal modo que tomates são realmente vermelhos e bananas, amarelas? Ou elas só existem na mente? Em “Sobre o status metafísico das cores”, Plínio Smith evita o debate dogmático sobre a natureza das cores e elabora o que ele considera ser a nossa concepção comum das cores, tendo como inspiração concepções céticas sobre as cores. Ele formula também alguns comentários sobre a relação entre a nossa concepção comum de cores e a ciência das cores, afirmando que não há incompatibilidade entre elas. Trata-se de um texto muito rico, o qual ilumina algumas das concepções céticas sobre as cores, incluindo as visões mais recentes de Barry Stroud e John McDowell, e apresenta uma contribuição autoral relevante para a discussão filosófica sobre as cores, além de contribuir para a filosofia feita no Brasil. Neste texto, minhas observações críticas se concentram no modo como Smith descreve a concepção comum de cores (na seção 1) e na forma como ele concebe a relação entre a concepção comum de cores e a ciência das cores (na seção 2).
1 A concepção comum de cores
Smith (2023) concebe a percepção como um fenômeno complexo que contém dois polos: o objeto e o sujeito, e determinadas relações entre eles. Tal como ele descreve, no caso da percepção de cores, um tomate maduro, por exemplo, tem a disposição de produzir em nós a experiência perceptiva do vermelho. Quando abrimos nossos olhos e dirigimos nossa atenção para o tomate (nas condições adequadas de iluminação, sem oclusão etc.), o tomate de fato causa em nós a experiência perceptiva do vermelho. Smith considera que, “[...] enquanto a disposição está no objeto, a experiência está na pessoa.”
Apesar de a experiência ser um efeito do objeto na pessoa, de estar na pessoa, disso não se segue, segundo ele, que a cor ela mesma seja algo subjetivo. Embora a experiência de cor seja subjetiva, a própria cor não é. Smith (2023, p. 495) acrescenta que “[...] a experiência que se tem é a de que o tomate se apresenta a nós como sendo vermelho.” Ele distingue experiência de aparência e sugere que, enquanto a primeira é subjetiva, a segunda “está no objeto”. Ao caracterizar a cor, Smith afirma que ela não é idêntica à experiência; ao contrário, “[...] a cor é uma maneira pela qual o objeto se apresenta para nós.”
Há alguns pontos que podem ser questionados aqui. Em primeiro lugar, ao mesmo tempo que Smith quer descrever a concepção comum de cores como sendo uma de acordo com a qual a cor está no objeto, ele introduz locuções como “a nós” ou “para nós”, para descrever a aparência do objeto. Essas formulações sugerem uma concepção relacional das cores, segundo a qual elas existem apenas em relação a seres percipientes, e não de modo independente deles. Se essa for a interpretação pretendida por Smith, não é claro que essa concepção de fato corresponda à concepção comum das cores. É razoável supor que as pessoas concebem cores como estando nos objetos, quer eles sejam percebidos, quer não. O tomate continuará sendo vermelho, mesmo se todos os seres percipientes forem extintos.
Isso me leva a outro ponto que considero problemático: a aproximação que Smith promove entre a visão comum das cores e uma visão cética sobre as cores. Como vimos, Smith caracteriza cores como “aparências” dos objetos, e penso que o faz pelo seu alinhamento com a tradição cética. Apesar disso, Smith (2023, p. 495) afirma que “[...] ‘aparência’, aqui, tem um significado objetivo, como quando dizemos que alguém tem uma aparência elegante ou aparenta estar doente.” Mas, mesmo assim, a afirmação de que algo aparenta ser X é tipicamente compatível com esse algo não ser de fato X. Mas nossa concepção comum parece ser mais assertiva, e as cores que percebemos são, em situações típicas, consideradas propriedades que os objetos têm, propriedades como tantas outras (peso, formato etc.)3. Minha impressão é a de que a visão comum está mais para dogmática do que para cética, no sentido de envolver a crença de que os objetos realmente são coloridos, de que eles têm cores que não dependem de seres percipientes, e não a crença (cética) de que os objetos aparecem coloridos para nós.
Além disso, mesmo que seja verdade que, na visão comum, cores sejam uma aparência do objeto, não é claro que nossa concepção comum de percepção e de cores envolva uma separação entre um elemento subjetivo (a experiência) e um elemento objetivo (a aparência do objeto). Essa pode ser uma boa análise filosófica da estrutura geral da percepção de cores, todavia, ela me parece sofisticada demais para ser um retrato da nossa concepção comum de percepção. Se concebemos cores como propriedades dos objetos, independentes de nossa percepção, talvez a concepção comum de percepção dispense a necessidade da introdução de um elemento subjetivo, i.e., a experiência. Não quero aqui negar que esse elemento subjetivo exista na percepção (até porque acho que existe), mas apenas observar que, se nossa concepção de percepção for uma alinhada ao realismo ingênuo, então, da perspectiva comum, a “experiência” como algo subjetivo que está no sujeito seria apenas um mito filosófico.
No fundo, embora eu tenha dúvidas sobre a descrição de Smith dos nossos conceitos comuns de percepção e de cor, e acredite que a concepção comum seja de certa forma dogmática, acho que é difícil decidir, com base na introspecção apenas, qual seja de fato essa concepção comum. A utilização das ferramentas da filosofia experimental poderia ser útil, aqui, a fim de compreendermos melhor qual é de fato essa concepção comum.
2 A concepção comum de cores e a ciência das cores
Smith considera que a ciência das cores pressupõe, ou está condicionada, por nossa concepção comum de percepção. Além disso, segundo Smith (2023, p. 495),
[...] os resultados científicos podem levar a um refinamento de nossa concepção comum de percepção e a um entendimento detalhado de como a percepção das cores ocorre e de como nos orientamos por elas. Não vejo nenhuma oposição entre os resultados alcançados pelas ciências e nossa concepção comum de percepção.
A meu ver, essa compatibilidade entre os resultados da ciência das cores e a nossa concepção comum (supondo que ela seja uma segundo a qual cores são propriedades dos objetos) não é tão óbvia. Diversos filósofos e cientistas, ao menos desde a modernidade, consideram que as descobertas científicas desafiam nossas crenças comuns sobre as propriedades dos objetos. Conforme observam Byrne e Hilbert (2003, p. 03), os cientistas da visão frequentemente afirmam que cores são subjetivas e não existem nos objetos. Dentre os diversos autores citados para corroborar essa afirmação está Stephen Palmer, para quem “[...] cor é uma propriedade psicológica de nossas experiências visuais quando olhamos para objetos e luzes, e não uma propriedade física desses objetos ou luzes.” (PALMER, apud BYRNE; HILBERT, 2003, p. 04, grifos no original). Dessa maneira, do ponto de vista dos cientistas das cores, é comum que haja uma rejeição da concepção comum de que cores são uma propriedade dos objetos. Esses cientistas não acham que estejam apenas refinando nossa concepção comum, com uma concepção mais sofisticada mas ainda compatível com aquela. Pelo contrário, a ciência das cores, de acordo com eles, mostra que cores não existem nos objetos.
É possível questionar (como o fazem Byrne e Hilbert, por exemplo) se os resultados científicos realmente autorizam uma conclusão tão dramática, a qual implica a falsidade de nossas crenças comuns sobre cores. Mas meu ponto é que a compatibilidade entre os resultados científicos e a nossa visão comum não é óbvia. Algumas descobertas científicas nos dão motivos para suspeitar da concepção comum. Por exemplo, sabe-se que cores que são percebidas como iguais podem ter padrões de reflexão de luz muito diferentes. E, como observa Fish (2021, p. 167), isso dificulta a identificação da cor com algo que está no objeto, já que, para explicar o fato de que percebemos padrões muito diferentes de reflexão como a mesma cor, não é suficiente especificar propriedades do objeto. Precisamos fazer referência ao sistema visual do sujeito.
Pautz (2023) argumenta também que não há uma boa correlação entre experiências de cor e o padrão de reflexão de luz dos objetos. Por exemplo, apesar de um objeto azul ter a cor mais parecida com a de um objeto roxo do que com a de um objeto verde, do ponto de vista físico, da reflexão da luz, não há nada que reflita essa similaridade – ao contrário, as curvas do azul e do verde são mais similares do que as do azul e do roxo. Entretanto, segundo Pautz (2023), há uma boa correlação entre as experiências de cores e as atividades neurais correspondentes, de tal sorte que cores julgadas semelhantes têm padrões de atividade neural semelhantes. Isso também desafia a ideia de que, na percepção, simplesmente apreendemos propriedades que os objetos têm, de modo independente de nossa percepção, já que, para explicar a semelhança entre cores, precisamos fazer referência ao sistema visual e a estados neurais. Assim, a suposição de Smith, de que não há incompatibilidade entre os resultados científicos e a visão comum das cores, não é tão facilmente defensável.
Referências
BYRNE, A.; HILBERT, D. Color realism and color science. Behavioral and brain sciences, v. 26, p. 3-64, 2003.
FISH, W. Philosophy of perception: A contemporary introduction. 2. ed. New York: Routledge, 2021.
PAUTZ, A. Naïve Realism and the Science of Sensory Consciousness. Analytic Philosophy [no prelo].
SMITH, P. J. Sobre o status metafísico das cores. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 473-500, 2003.
Recebido: 20/05/2023
Aceito: 30/05/2023
1 Agradeço a Plínio Smith pela supervisão e colaboração, ao longo dos últimos anos. Esta pesquisa foi financiada pela Fapesp, processo no 2018/12683-9.
2 Departamento de Filosofia, Universidade Federal de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1513-117X. Email: raquelak@gmail.com.
3 Há também situações atípicas, como os casos de ilusões envolvendo cores. Um exemplo é a ilusão de cor do cubo de Rubik, no qual dois quadrados que parecem ter cores diferentes têm de fato a mesma cor. Nesse caso, faz sentido dizer que o quadradinho do cubo aparenta ter uma cor que, de fato, não tem. Mas, mesmo assim, há uma suposição aqui de que o quadrado tem uma cor real, a qual é diferente da cor que ele inicialmente aparenta ter.