COMENTÁRIO A “SOBRE O STATUS METAFÍSICO DAS CORES”: SOBRE O PROJETO DE UMA METAFÍSICA CÉTICA SOBRE AS CORES


Luiz A. A. Eva1


Referência do artigo comentado: SMITH, P. J. Sobre o status metafísico das cores. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 473-500, 2003.


Primeiramente, fico feliz de saber que os meus comentários anônimos foram acolhidos simpaticamente, como úteis e cuidadosos. Não sendo isto um parecer, não vou reiterar as ótimas qualidades do artigo que o leitor seguramente terá visto por si mesmo, para chegar a este comentário. Chegou a hora de acrescentar a eles outras considerações que não cabem num parecer, estimuladas pela proposta de uma metafísica cética das cores, por P. J. Smith. As notas que seguem são mais extensas do que eu pretendia (e esse defeito do meu texto resulta também das qualidades do artigo), mas não pretendem mais que convidar ao debate que essa proposta merece.

É possível uma metafísica cética? Como bem nos indicou Hume, no cap. 12 do EHU, diante do ceticismo, convém começarmos nos perguntando: que cético é esse? Smith nos mostra com clareza que usualmente as respostas negativas a essa questão se apoiam numa imagem limitada caricatural do cético: supor que o cético estaria condenado a um subjetivismo não faz justiça à riqueza do debate acerca da natureza das nossas percepções, na filosofia moderna (examinado de forma clara e instrutiva nas filosofias de Bayle, Berkeley, Hume e Kant), nem às reflexões pirrônicas de Sexto Empírico e de suas atualizações contemporâneas, explícitas no neopirronismo de Porchat, e mais enviesadas no pensamento de Wittgenstein, Stroud e McDowell.

Mais do que recusar essas interpretações, Smith sustenta a possibilidade efetiva de uma metafísica cética, esclarece qual seria essa natureza (uma metafísica, em princípio, compatível com o tratamento que Sexto Empírico atribui a nossa experiência de mundo) e oferece, ademais, como se viu, uma incursão pessoal nesse terreno, posicionando-se no debate contemporâneo sobre o estatuto metafísico das cores, tal como compreendido no debate entre Stroud e McDowell – isto é, como uma metafísica que descreva adequadamente a “lógica” da nossa percepção comum desse fenômeno. Pretendo discutir essa proposta, tendo em mente uma questão de fundo acerca de como compreender o sentido desse ceticismo: até que ponto uma metafísica pode ser cética e satisfazer adequadamente as exigências impostas pela sua própria dimensão cética?

Como bem vê o autor, muito está em jogo no modo como se compreendem os termos da discussão. Já de saída, ele se ocupa de esclarecer uma distinção crucial entre “dogmatismo” (o alvo preciso da crítica cética pirrônica sextiana) e “metafísica” (apenas uma área da investigação filosófica à qual Sexto nunca se refere explicitamente), bem como uma linha demarcatória entre, de um lado, o domínio do “não evidente”, do que transcende a experiência, sobre o qual se pronuncia a filosofia dogmática, e o domínio da experiência, a respeito do qual o cético poderia ter crenças e mesmo conhecimento. Essa mesma linha demarcatória se desdobra em outra distinção menos trivial, entre duas maneiras de encarar filosoficamente a realidade: haveria uma maneira “comum” (pela qual a realidade se opõe à ficção), chancelada pelo cético, e uma maneira dogmática (pela qual “[...] todos os objetos reais, segundo a nossa distinção comum, passam a ser vistos como meras aparências e, no melhor dos casos, indícios da ‘verdadeira’ realidade” (SMITH, 2003, p. 475), e assim se oporiam a uma realidade que os transcende, uma “realidade absoluta”.)

Essas definições são importantes para que o leitor não se desvie em juízos precipitados decorrentes de uma má compreensão dos termos, mas penso que elas podem soar suspeitas. Primeiro, porque, de uma parte, talvez não descrevessem adequadamente a distinção entre os filósofos céticos e dogmáticos, como compreendida por Sexto Empírico. Não deveríamos situar Aristóteles, por exemplo, na turma dos que adotam a distinção comum entre realidade e aparência? Afinal, para ele, a realidade dos objetos da experiência comum não é uma ilusão nem indício de outra realidade oculta.

Mas, em segundo lugar, porque talvez o autor nos peça que concedamos demasiado no nível das definições, e que elas assumam teses não triviais como verdadeiras, as quais talvez precisassem ser demonstradas. Admitir que o dogmatismo se manifesta apenas nessas teses parece criar de antemão um terreno estreito, onde ele pode ser isolado, e outro bastante robusto para uma dimensão propositiva e construtiva de uma filosofia cética. Contudo, penso que isso seria, a esta altura, injusto e precipitado. Mesmo que a interpretação aqui subjacente do pirronismo fosse inovadora ou divergente, diante do que teria sido o ceticismo de Sexto, isso naturalmente não comprometeria o seu valor intrínseco. Ademais, essa proposta se expõe a ser avaliada por seus produtos (a saber, os seus próprios juízos metafísicos considerados no contexto do debate contemporâneo).

Seja como for, a metafísica cética de Smith pretende oferecer uma reconstrução ou atualização pertinente da filosofia de Sexto e, para tanto, baseia-se em uma interpretação particular dessa filosofia. Já no primeiro parágrafo, lemos que “[...]o dogmatismo é um tipo de reflexão que pretende transcender o domínio da experiência, de modo que uma teoria dogmática se diferencia radicalmente de uma teoria científica.” Se bem entendi, quando se refere a “transcender a experiência”, o autor aqui pensa sobretudo em uma distinção de posturas filosóficas, a partir de seu conteúdo: há proposições que se referem a fatos da experiência, ou a ela, de modo mais geral, e outras que concernem a coisas que não estariam nela situadas ou não poderiam ser testadas através dela. Segue-se que, segundo o autor, “[...] um cético pode ter uma teoria empirista ou naturalista do conhecimento, desde que essa teoria fosse construída empiricamente e se sujeitasse aos resultados empíricos e científicos”, estendendo, a seguir, a mesma consideração para a metafísica, como ele a entende. Assim, o domínio da experiência se converte, para esse cético, em um porto seguro para crenças e conhecimento e pode mesmo ser objeto de teorias epistemológicas e metafísicas.

Não há lugar aqui para uma discussão exegética mais desenvolvida. Todavia, uma forma de propor meu exame da metafísica cética seria a de interrogar como se deve entender o “transcender da experiência”, na filosofia de Sexto. Talvez o ceticismo, bem considerado em suas potencialidades críticas, deixe menos espaço para elaborações construtivas e Sexto esteja aí nos alertando para os riscos do terreno pantanoso da própria experiência. Segundo Sexto, “[...] quando (nós, céticos) investigamos se as coisas são como aparecem, nós garantimos que elas aparecem, e o que nós investigamos é não o que é aparente mas o que é dito sobre o aparente.” (HP I, 19) Essa investigação cética a que ele alude é, naturalmente, a investigação crítica, argumentando pró e contra, pela qual o cético obtém a suspensão do juízo. Obviamente, o simples fato de nos pronunciarmos sobre a experiência não acarreta nenhum dogmatismo; ele se refere amplamente ao “aparente”, o qual adota como critério prático, e isso estaria em coerência com seus esclarecimentos sobre o uso cético da linguagem (HP I, 187-209; II, 1-12). Mas, então, o que seria esse “dizer sobre o aparecer” de modo problemático?

Sexto não parece estar aí se referindo a “coisas” num sentido específico, dogmático, mas, simplesmente, aos objetos da experiência. E são essas coisas que podem ser objeto de um discurso sobre a experiência que, mesmo assim, paradoxalmente, transcende a experiência em um sentido dogmático. Ora, esse transcender, ao que parece, não precisa incluir um conteúdo específico, pois, para suspender o juízo, o cético pode também argumentar contra a experiência: “[...] se a razão é tão enganadora a ponto de suprimir o aparecer diante de nossos próprios olhos, não devemos certamente devemos ficar atentos nos assuntos obscuros para evitar a precipitação ao segui-lo?” (HP I, 20)

Noutras palavras: quando se alega dogmaticamente a experiência, o cético argumenta contra ela para mostrar como a razão pode negar o aparecer e suspender o juízo; ele assim o faz para suprimir a “precipitação” dos dogmáticos. A questão, pois, é a de saber se uma pretendida “metafísica cética”, mesmo que pretenda apenas descrever esse aparecer, deveria ser ou não compreendida como um exemplo de dogmatismo. Deveria a metafísica cética de Smith ser situada no âmbito do aparente ou do que “é dito sobre o aparente”, no sentido que está aqui sub judice?

Não vejo bem como a proposição de uma metafísica possa, nesse sentido, não corresponder ao que “é dito sobre o aparente”. Afinal, ela pretende se pronunciar, de modo geral, sobre a experiência como um critério para a obtenção de conhecimento sobre as coisas, em contraposição ao que os dogmáticos diriam sobre essas mesmas coisas (propondo raciocínios sobre o que é não evidente). Entretanto, não cabe aqui reconhecer a proposição de uma forma de critério de conhecimento?

Como vimos, Sexto nos informa que a suspensão do juízo pirrônica conduz à aceitação do phainómenon. Seria a metafísica cética um desenvolvimento consequente desse mesmo passo? Sexto assevera que, para esses céticos, há dois sentidos para o termo “critério”: há um critério que nos permite falar dos objetos como são (e sobre esse, o cético suspende seu juízo) e outro que possibilita simplesmente agir (ver HP I, 21) A qual desses dois sentidos de critério poderia corresponder a “metafísica descritiva” denominada cética? Parece que podemos plenamente agir conforme o que nos aparece, sem nos aventurarmos em nenhuma espécie de metafísica (descritiva ou não).

Ademais, a metafísica cética não é apenas uma descrição da experiência enquanto tal, na medida em que essa descrição parece poder ser feita sem que se proponha nenhuma metafísica. (Ou estaria essa metafísica cética supondo que o simples aparecer traz em si embutida uma metafísica, que não seria até aqui evidente para aqueles para quem ele aparece? Se assim for, parece ainda mais difícil não reconhecer nessa proposta uma forma de dogmatismo, pois ela deverá se confrontar com outros discursos dogmáticos que propõem metafísicas diversas.) Propor uma metafísico é propor, em algum sentido, uma teoria a respeito do phainómenon. Parece aqui possível dizer que, ao menos, o modo como Sexto se refere ao phainómenon não parece oferecer nada que nos motive diretamente a entender a admissão cética da experiência como compatível com uma metafísica. O que está em causa é saber como interpretá-las de um modo que evite a precipitação dogmática de que trata Sexto.

Talvez seja oportuno aqui lembrar outros textos. Noutra passagem das Hipotiposes, Sexto afirma que o cético usa o discurso do ser para se referir ao aparecer: “Indeterminação é um pathos intelectual pelo qual nós nem negamos nem afirmamos nada que se investiga de modo dogmático. Assim, quando um cético diz ‘Tudo é indeterminado’ ele toma ‘é’ no sentido de ‘aparece-me que’.” (HP I, 198) Salvo engano de nossa parte, a metafísica cética estaria fazendo, de certa forma, o caminho inverso – isto é, tomando, não o “ser” que é dito como significando o simples aparecer, mas tomando o aparecer das coisas como significando o ser. Não seria essa metafísica resultado de um páthos intelectual pelo qual se pretende dizer o que as coisas são (mesmo que apenas no domínio da experiência) e, nessa medida, produto de uma investigação de modo dogmático?

O metafísico cético poderia, talvez, simplesmente recusar esta minha leitura de Sexto Empírico (a qual precisa se defrontar com outras exigências exegéticas), simplesmente por conduzir a uma leitura imprecisa da sua própria metafísica cética. Naturalmente, esses textos podem ser lidos de outra forma, mas se o cético metafísico alega agora que eles devem ser lidos a partir de uma linha demarcatória prévia (entre objetos dogmáticos e não dogmáticos), não estaria ele supondo o que estaria em causa? Mas o que se perderia afinal com isso? Minha sugestão é a de que talvez se comprometa aqui, de saída, não a possibilidade em geral de reconhecer proposições dogmáticas, porém, a de reconhecer dogmatismo naquilo que se proporia como isento dele. Mais ainda, pretendo sugerir que isso pode ocorrer de modo involuntário, a despeito da pretensão de se propor um ceticismo (e isto parece ser um bom motivo para inspecionar essa possibilidade). Não poderiam assim as decisões filosóficas do metafísico cético acabar encobrindo, aos seus próprios olhos, a natureza dogmática de sua própria filosofia?

Estou aqui reeditando uma questão velha, a qual já propus acerca da filosofia de O. Porchat. Porchat transitou por filosofias diversas, ceticismos e dogmatismos, e essas mudanças de posição decorreram, ao menos em parte, de descobertas que ele mesmo fez sobre as implicações da filosofia antes admitida. Eu sugeri que isso poderia decorrer, ao menos em parte, do poder instaurado que ele conferiu às suas próprias decisões filosóficas (EVA, 2007, 2008). Mas a reconstrução que Smith oferece do debate entre Stroud e McDowell também mostra que esse é um risco constante. Ambos, de modos diversos, expressam sua aversão pelo dogmatismo, sua simpatia pelo ceticismo, e o próprio Smith entende que “Stroud é um neopirrônico e McDowell, embora um pensador mais obscuro e ambíguo, tem afinidades com o neopirronismo.”

Porém, McDowell reformula a sua própria posição, porque Stroud “[...] teria considerado essa questão somente no contexto de um projeto metafísico (isto é, dogmático), em que se busca a realidade absoluta, corrigindo nossa visão comum do mundo” (SMITH, 2003, p. 490) – uma má compreensão que, se isso for verdade, não teria sido assim percebida por Stroud (que renovou suas críticas céticas diante das novas versões desse projeto supostamente não dogmático). Como enfatiza Smith, McDowell teria incidido involuntariamente numa posição dogmática, e isso parece ser um indício de que, mesmo quando se pretende determinar a natureza metafísica das cores, sem recair em um dogmatismo, as evidências podem ser igualmente frágeis.

Smith entende, todavia, que não se trata de um debate entre “dois dogmáticos” e, decerto, em conformidade com um verdadeiro espírito cético, a questão parece merecer uma investigação aprofundada, na esperança de que se encontre alguma verdade (não sobre os objetos não evidentes ou a realidade oculta, mas sobre a natureza de nossas percepções comuns de cores, consideradas apenas à luz de uma pretendida descrição de nossa experiência). No entanto, a mim não me parece que estejamos de um debate próximo do fim. McDowell sustenta um subjetivismo não reducionista, pelo qual propõe que as cores seriam “essencialmente perceptíveis”.

Com isso, ele se enreda em dificuldades conceituais e é alvejado por argumentos aparentemente intransponíveis, tanto da parte de Stroud quanto de Smith. No meu entender, isso não significa que sua posição não possa vir a ser refinada e defendida por outros argumentos, pois ela faz justiça a importantes intuições de nossas percepções de cor. Nós tendemos a associar regularmente as cores aos objetos e podemos supor que, mesmo quando não os estamos vendo, eles preservam suas cores. Por outro lado, parece também razoável dizer que, se não houver uma interação perceptiva subjetiva com as cores, não saberíamos dizer o que são elas. Em certa medida, talvez sejam essas mesmas intuições que Smith tenta preservar, com sua própria teoria, ao distinguir a disposição de um objeto causar percepções de cor e a própria percepção da cor.

Stroud, de sua parte, parece dar um passo mais seguro, quando recua e se limita a sustentar, não que as cores são “essencialmente perceptíveis” mas apenas “essencialmente visíveis”. Mas se pode indagar que significado podemos atribuir a essa referência a “essência” das cores. Salvo engano, penso que essa indagação acaba por nos conduzir a um impasse. Ou bem essa asserção é a reformulação de uma trivialidade, a de que as cores são visíveis, e a alegação da “essencialidade” talvez seja vazia, nada acrescente. O que se ganha, ao se afirmar que a cor é, de modo geral, algo visível? Ou bem, se ela pretende ir além disso, em uma direção teórica pela qual pretende ir além, em algum sentido, dessa afirmação, sustentando que, em geral, a percepção do que chamamos cor exclui por si a possibilidade de uma percepção não visível.

Todavia, nesse caso, não estaríamos extrapolando aquilo que oferece nossa experiência das cores para o não evidente (no sentido cético: para uma dimensão possível da experiência sobre a qual não podemos nos pronunciar). Podemos decretar a impossibilidade de que as mesmas cores, que humanamente apreendemos apenas como visíveis, sejam percebidas por seres possuidores de outros órgãos sensíveis, de modos que não concebemos? Não podemos recorrer a um cego para dizer o que são as cores, entretanto, se outro ser percipiente reconhecesse regularmente outros aspectos perceptivos que desconhecemos, associados ao que apenas percebemos como cor (suponhamos, por exemplo, que um cego fosse capaz de perceber, de modo tátil, diferenças entre cores), talvez devêssemos reconhecer que estamos nós na condição daquele primeiro cego diante desse outro aspecto perceptivo.

Penso que Smith tem razão de argumentar que a percepção das cores é um fenômeno mais complexo do que pode parecer e requer investigação. Para encerrar este comentário, limito-me aqui a apresentar algumas questões diante da sua proposta de solucionar o problema.

1. Smith afirma, com segurança, que a “disposição” de um objeto em causar a cor é distinta da própria cor. Se o que se pretende é distinguir a experiência subjetiva de ver a cor e o fato de que um objeto seja colorido (isto é, que ele possua a mesma capacidade de produzir essa experiência subjetiva, quando for visto), não me parece que isso requeira uma metafísica. O mesmo vale para o entendimento de que se trataria aí de causas no sentido físico, segundo as teorias científicas disponíveis, pela mesma razão. Por isso, não sei se compreendi bem a que corresponderia o termo “disposição” (um termo de cunho antropomórfico), como algo distinto da cor (e, como frisei, distinto das causas físicas pelas quais a ciência explica a nossa percepção de cores – mais sobre isso, adiante). Até onde percebo, isso parece introduzir novos problemas. Quando vejo presentemente a cor, não parece haver alguma razão para dizer que a cor vista seria diversa da “disposição” que esse objeto tem de ser colorido para mim, nesse momento. Estaria ela encoberta sob a cor vista? Mas, se a “disposição” está lá, quando não vejo o objeto, e se transforma em cor, quando o vejo, como posso saber que essas duas coisas possuem alguma relação, dado que nunca se apresentam juntas? Note-se que estamos falando de propriedades diferentes das coisas: “[...] a propriedade de ter uma certa disposição, portanto, não é idêntica à propriedade de ter uma certa aparência.” (SMITH, 2003, p. 496). Não estarei aqui multiplicando propriedades que não podem ser distinguidas no ato perceptivo em si e talvez não possam ser integradas, se a disposição for algo distinto da aparência?

2. Tenho uma hesitação parecida diante da proposta de que existe uma dupla relação na percepção das cores: “[...] a relação causal, que parte do objeto e afeta a pessoa, e a relação ativa, que parte da pessoa e alcança o objeto.” (SMITH, 2003, p. 495). Ninguém duvidaria, eu suponho, de que temos capacidades de perceber que podem permanecer não exercidas e as coisas oferecem por si mesmas ocasiões de percepção distintas das percepções particulares. Deixando de lado a vantagem que esse esquema pode ter, em justificar a distinção anterior, também não vejo bem como dissociar essas duas relações, no momento em que se dá a percepção enquanto tal. Por que não bastaria aqui apenas uma relação “perceptiva”? Se nos ativermos à oposição entre “causa” e “ação”, penso que, a rigor, não é algo trivial determinar as causas das percepções das cores, e elas não se reduzem a algo que parte do objeto em direção à pessoa. Elas envolvem, segundo teorias da visão hoje aceitas, também elementos presentes na própria experiência perceptiva subjetiva e na relação que se estabelece entre as próprias cores, concebidas como elementos visuais. Por outro lado, deixando de lado o fato de que uma pessoa age, e nesse curso de ação ela pode mover seus olhos diante dos objetos, o fenômeno da percepção das cores pareceria ele mesmo ser basicamente passivo. Se ele pode sofrer transformações conforme as ações daquele que percebe, parece que essas ações deveriam, em vez disso, ser compreendidas como parte das relações causais que determinam a percepção.

3. Por fim, Smith procura demarcar o campo da investigação metafísica e o da investigação científica sobre as cores: “Não vejo nenhuma oposição entre os resultados alcançados pelas ciências e nossa concepção comum de percepção.” (SMITH, 2003, p. 497). Decerto, a ciência não permitirá negar os fatos perceptivos enquanto percepções subjetivas, mas entendo que ela não se acomoda tão facilmente com a “nossa concepção comum de percepção”. Como usualmente ocorre, o que a ciência e as teorias artísticas sobre as cores nos dizem é bastante contraintuitivo. Nós identificamos, na nossa percepção comum, uma diversidade de cores – azul, verde, magenta – com seus diversos tons e podemos mesmo estar em dúvida sobre como denominar certa cor. Mas, especialmente no que diz respeito à atribuição das cores aos objetos, a ciência nos indica, a partir de considerações sobre o funcionamento dos bastonetes oculares e as frequências de onda pelas quais a luz provoca a percepção de cores, que algumas cores, como magenta ou marrom, são apenas percebidas pela nossa mente (subjetivamente), sem corresponderem a algo de objetivo (isto é, uma frequência específica do espectro da luz branca). (v. p. ex., TOMA et alii., 2005; KÜPPERS, 2005). Gostaria de saber tanto o que a metafísica cética diria sobre esse caso específico quanto, principalmente, sobre sua tese de que a percepção comum das cores não está de fato em conflito com o que dizem as ciências. Não seria o seu projeto mesmo um exemplo de uma proposta dogmática que se precipitaria diante do que a ciência pode vir nos propor, a esse respeito?

A mim me parece particularmente curioso (talvez por conhecer esse debate de forma limitada ou não tê-lo suficientemente compreendido) que a discussão metafísica sobre as cores tenha o hábito de partir de um exemplo trivial (a maçã é verde) e supor, sem mais, que ele possa ser generalizado para o fenômeno da percepção colorida como tal. Em mais de uma ocasião, os exemplos se referem à percepção de cores nas melhores circunstâncias: é o que os estoicos alegavam em favor do seu critério de verdade e é o que Descartes nega, na primeira Meditação, através do argumento do sonho, que nos possa garantir conhecimento objetivo.

Deixando isso de lado, seriam propriamente irrelevantes para essa discussão os casos em que as percepções não se dão nas melhores circunstâncias? Tem-se, por vezes, a impressão de que a discussão como um todo avança sem perceber que pressupõe uma teoria “comum” sobre a objetividade das cores, a qual pode simplesmente não estar correta. Talvez a metafísica descritiva cética se mova num mundo que se assemelha mais a um quadro renascentista, onde cada objeto tem uma cor específica e delimitada, do que às descrições pictóricas do mundo, o barroco, o impressionismo e o expressionismo, que posteriormente questionaram esse modelo.


Referências

EVA, L. A. A. Neopirronismo e Estruturalismo. In: SILVA FILHO, W. J.; SMITH, P. J. (org.). Ensaios sobre o Ceticismo. São Paulo: Alameda, 2007. p. 91-106.

EVA, L. A. A. Filosofia da Visão Comum de Mundo e Neopirronismo: Pascal ou Montaigne? Sképsis, Ano II, n. 3-4, p. 29-66, 2008.

KÜPPERS, H. Fundamentos de la teoría de los colores. México: Gustavo Gili, 2005.

PEDROSA, I. Da cor à cor inexistente. São Paulo: SENAC, 2009.

SMITH, P. J. Sobre o status metafísico das cores. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 473-500, 2003.

TOMA, H. E.; BONIFÁCIO, L. da S.; ANAISSI, F. J. Da cor à cor inexistente: uma reflexão sobre espectros eletrônicos e efeitos cromáticos. Química Nova, v. 28, n. 5, p. 897-900, 2005. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-40422005000500030.



Recebido: 12/05/2023

Aceito: 21/05/2023



1 Professor titular da Universidade Federal do ABC (UFABC), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6814-0518. E-mail: luizeva@hotmail.com.