José Gladstone Almeida Júnior1
Referência do artigo comentado: PESSOA JR., O. Leis de ponte na filosofia da mente e nas ciências físicas. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 405-420, 2023.
A reflexão a respeito do reducionismo ocupa lugar de destaque na Filosofia da Mente, por ser uma estratégia, construída a partir de diferentes concepções, para responder ao problema mente-corpo. Este é um claro indicativo da pertinência da discussão suscitada pelo artigo de Osvaldo Pessoa Junior (2023), mas esse texto é particularmente relevante para pesquisadores dessa temática, por não se limitar à exposição do estado da arte dessa discussão. O autor avança argumentos em favor de uma abordagem que busca conciliar o caráter essencialmente subjetivo da mente com uma explicação reducionista, ao traçar um paralelo com casos observados na Física. Seu objetivo consiste em demonstrar que o conhecimento completo sobre a atividade eletroquímica que ocorre no córtex cerebral não é suficiente para explicar o surgimento de estados mentais. Na verdade, tais estados se caracterizam por serem fenômenos sui generis que emergem da atividade cerebral, contudo, que não são idênticos a essa base física, de modo que sua explicação requer o exame de leis de ponte conectando o substrato físico aos estados emergentes. Pessoa (2023) denomina esse tipo de explicação “reducionismo indutivo”.
No que se segue, pretendo dar continuidade ao debate proposto pelo autor, com foco no que está em jogo na noção de “leis de ponte”, em como devemos compreendê-la e qual o seu alcance explicativo, no problema mente-corpo. Antes disso, porém, é importante discorrer sobre o emergentismo.
A teoria emergentista remonta à filosofia britânica desenvolvida no início do século XX e tem como cerne a relação de superveniência. Esta pretende retratar uma relação de dependência/determinação entre dois conjuntos de propriedades – o primeiro composto pelas propriedades de base e o segundo, pelas propriedades supervenientes –, em que o primeiro conjunto determina as propriedades supervenientes e estas, por sua vez, dependem das propriedades de base. As propriedades pertencentes ao segundo conjunto sobrevêm às propriedades pertencentes ao primeiro, de sorte que qualquer alteração no nível superveniente implica necessariamente uma alteração no nível básico. Em decorrência, é comum afirmar que, uma vez fixadas todas as propriedades e relações básicas, todas as propriedades e relações no nível superveniente estarão determinadas. É importante destacar, como o autor fez, no artigo, que a relação de superveniência é compatível tanto com a redutibilidade quanto com a irredutibilidade das propriedades supervenientes.
Em linhas gerais, o emergentismo consiste na ideia de que o processo evolutivo tornou certos sistemas físicos extremamente complexos, de tal forma que dão origem a propriedades genuinamente novas, as quais não são possuídas pelos componentes mais básicos do sistema (cf. KIM, 2010, p. 67). Em outras palavras, o emergentismo está alicerçado em duas teses fundamentais: (I) as propriedades emergentes são dependentes desse sistema físico, no entanto, (II) não são dedutíveis a partir dos componentes do sistema. Isso quer dizer que, por um lado, essa perspectiva assume um compromisso minimamente fisicista, ao pressupor a primazia do domínio físico e, por outro lado, reconhece a natureza subjetiva e irredutível do domínio mental. Embora sejam formuladas em diferentes versões, na literatura2, estas são teses comuns a todas as propostas emergentistas.
Isto nos põe diante do problema da lacuna explicativa, discutido por Joseph Levine (1983). Por mais detalhado que seja, o conhecimento sobre os processos neurofisiológicos ocorridos no cérebro não é suficiente para explicarmos por que estão associados a certo estado mental. Apesar de sabermos haver uma conexão entre a ativação das fibras nervosas do tipo C e a experiência de dor, assim como a conexão existente entre a liberação do neurotransmissor adrenalina e o estado de euforia, não está clara a razão de esses processos cerebrais estarem conectados especificamente com tais estados mentais. Quer dizer, há uma expressiva diferença epistêmica entre o relato reducionista fundamentado apenas nas condições físicas de base e os estados mentais supervenientes. Nem mesmo o conhecimento completo sobre os processos neurofisiológicos, como no experimento de pensamento do demônio psicofisiológico (PESSOA, 2023), seria capaz de explicar sua correlação com determinados estados mentais subjetivos. Em decorrência dessa irredutibilidade, somos levados a afirmar a existência de uma lacuna explicativa entre o domínio físico e o mental.
Pessoa (2023) argumenta que essa limitação da abordagem reducionista seria superada com a incorporação de leis de ponte descobertas empiricamente pelas neurociências. Essas leis estabeleceriam a correlação físico-mental, ao vincular cada descrição dos processos cerebrais aos seus respectivos estados mentais associados, ou seja, indicariam os correlatos neurais da consciência, as propriedades físicas de base relacionadas aos estados conscientes supervenientes. Leis de ponte não são obtidas a partir apenas da análise das propriedades de base: são construtos moldados por experimentos, os quais, de modo semelhante ao que ocorre com frequência, na Física, possibilitariam “cálculos aproximados” e permitiriam a passagem entre os domínios, prevendo seu comportamento através de um procedimento com menor grau de acurácia.
Portanto, as leis de ponte atuam como premissas auxiliares que, ao afirmarem a ligação psicofísica constatada empiricamente, ensejariam derivar descrições do nível superveniente, em função das descrições do nível físico básico. O conhecimento sobre a atividade cerebral complementado por leis de ponte permitiria prever (inferir) o estado mental instanciado pelo indivíduo. Pessoa chama essa abordagem de reducionismo indutivo.
A pergunta que parece oportuna é a seguinte: quais são exatamente as informações veiculadas pelas leis de ponte? A depender da resposta dada a essa questão, podemos vislumbrar qual o alcance explicativo do reducionismo indutivo. Se compreendermos as leis de ponte como limitadas a ratificar uma relação de superveniência, então, a teoria supramencionada terá reduzida capacidade explicativa. A noção de superveniência desperta forte interesse filosófico, especialmente por se tratar de uma tentativa de atribuir uma relação de dependência à covariação estabelecida entre conjuntos de propriedades, embora não se comprometa com a redução de um ao outro. Contudo, a covariação de propriedades, por vezes, ocorre na ausência de qualquer tipo de relação de dependência. Nem todos os casos de covariação ou correlação entre propriedades de base e propriedades supervenientes implica um caso de dependência. Vejamos esta passagem de Jaegwon Kim (2000, p. 14):
Outro modo de pôr este ponto seria este: superveniência não é um tipo de relação de dependência – não é uma relação que pode ser colocada ao lado da dependência causal, dependência redutiva, dependência mereológica, dependência fundamentada na definibilidade ou implicação, e semelhantes. Ao invés, qualquer uma destas relações de dependência gera a covariação de propriedades requerida por meio da qual se qualifica como uma relação de superveniência.
A superveniência indica apenas a existência de um padrão de covariação entre determinados conjuntos de propriedades, sem, contudo, explicitar que tipo de dependência a fundamenta. Aliás, emergentistas como Samuel Alexander, por exemplo, defendiam que a superveniência psicofísica consistia em um fato bruto regido por “leis de emergência” primitivas. De acordo com Kim:
Portanto, as demandas do emergentismo tornam a relação de superveniência envolvida na emergência necessariamente inexplicável; não podemos saber qual tipo de dependência fundamenta e explica a relação de superveniência envolvida na emergência. (KIM, 2010, p. 79, 80)
Assim, cabe perguntar: o que informam as leis de ponte? Em que consiste a erudição nomológica que elas expressam? Se a ligação que instauram se limitar a indicar apenas uma correlação, o reducionismo indutivo ficará, pois, aquém de superar a lacuna explicativa. Nesse caso, a previsibilidade indutiva será possível em algumas situações, porém, possuiria pouco alcance explicativo, uma vez que a relação de superveniência permaneceria um fato bruto, o qual meramente supõe haver uma conexão nomológica ainda desconhecida. A explicação exige mais do que a simples previsibilidade.
Por outro lado, as leis de ponte possuiriam importante relevância explicativa, se esclarecessem o porquê dessa correlação, isto é, se esclarecessem qual o fundamento sólido subjacente à superveniência. É preciso que as leis de ponte explicitem qual a conexão nomológica entre as condições físicas de base e os estados mentais, qual mecanismo possibilita a determinados processos cerebrais darem origem a estados subjetivos, e não apenas assumir que há tal conexão, devido à constatação reiterada de sua coocorrência. Esse entendimento da erudição nomológica superaria a lacuna explicativa. Nas palavras de Kim: “Pois é a explicação das leis de ponte, uma explicação de por que existem apenas estas correlações mente-corpo, que está no cerne da demanda por uma explicação da mentalidade. ” (KIM, 2000, p. 96).
Em suma, o artigo de Osvaldo Pessoa Junior contribui de modo considerável ao debate, na medida em que esboça uma abordagem que visa a explicar a mente, sob um viés reducionista, o qual, ainda assim, preservaria seu caráter emergente. Não obstante, a noção de “leis de ponte”, central para o reducionismo indutivo, permanece ambígua. De acordo com a interpretação que assumirmos, o reducionismo poderá ter sua capacidade explicativa comprometida.
Referências
KIM, Jaegwon. Mind in a physical world: an essay on the mind-body problem and mental causation. Cambridge: MIT Press, 2000.
KIM, Jaegwon. Emergence: core ideas and issues. In: KIM, Jaegwon. Essays in the metaphysics of mind. New York: Oxford University Press, 2010. p. 66-84.
LEVINE, Joseph. Materialism and qualia: the explanatory gap. Pacific philosophical quarterly, v. 64, p. 354-361, 1983.
PESSOA Jr., Osvaldo. Emergência e redução: uma introdução histórica e filosófica. Ciência & Cultura, v. 65, n. 4, p. 22-26, 2013.
PESSOA Jr., Osvaldo. Leis de ponte na filosofia da mente e nas ciências físicas. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. esp. “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 405-420, 2023.
Recebido: 12/05/2023
Aceito: 21/05/2023
1 Professor adjunto da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Juazeiro do Norte, CE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4267-8146. Email: jose.gladstone@ufca.edu.br.
2 Pessoa (2013) apresenta diferentes definições de “emergência”.