Gustavo Silvano Batista1
Referência ao artigo comentado: Back, Rainri. Compreensão, aprendizagem e linguagem: uma crítica à abordagem hermenêutica. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 3, p. 201- 224, 2023.
Desde a aparição das palestras reunidas sob o título O Problema da Consciência Histórica, realizadas em Louvain, em 1957, como também em Verdade e Método, sua principal obra, publicada em 1960, e em textos posteriores, Gadamer faz referência à linguagem como a esfera básica do acontecimento da compreensão. Tal referência é o desdobramento da investigação ontológica sobre o acontecer compreensivo como a questão-chave da hermenêutica filosófica; trata-se de uma questão insistente e devidamente aprofundada, em seus escritos, pois se encontra diretamente ligada à experiência humana do mundo e da práxis da vida. É nesse contexto que Gadamer nos lembra que não é possível pensarmos as condições de possibilidade do compreender, sem considerarmos a linguagem, tomada a partir das contribuições da fenomenologia e da tradição hermenêutica, tomada em seu caráter vivo e efetivo, do qual também, desde já, participamos.
Desse modo, Gadamer pensa a relação entre compreensão e linguagem, em função da premissa segundo a qual o compreender é essencialmente linguístico. Ou seja, o processo compreensivo, base de todo ou qualquer discurso, é, ao mesmo tempo, um processar linguístico-dialógico.
Atentos à terceira parte de Verdade e Método, “A virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem”, podemos perceber que a pergunta pela compreensão se apresenta marcada por, pelo menos, duas exigências: 1) a garantia, a partir do “solo” linguístico, da universalidade da experiência hermenêutica, que tem como modelo nossa relação com os textos e, por conseguinte, com os outros, no âmbito prático da vida; e 2) a tarefa de esclarecimento das condições de possibilidade de reflexão dos pressupostos imanentes à vida mesma, tendo em vista uma outra postura representativa, a qual concebe a estrutura básica do compreender ainda no esquema sujeito e objeto, ainda que reivindique o protagonismo do objeto. Tais exigências têm seu sentido, à medida que tais questionamentos se situam no âmbito original da mediação linguística de sentido, âmbito no qual é possível tematizar a conexão entre vida e reflexão em novas bases. Podemos dizer que é nesse âmbito que se situa a célebre afirmação gadameriana “O ser que se pode compreender é linguagem” (GADAMER, 2003, p. 23).
Talvez possamos discutir o argumento gadameriano, no qual toda compreensão é essencialmente linguística, afirmar que é da natureza da linguagem a estrutura da compreensão e por outro lado, é da natureza da compreensão a estrutura da linguagem. Para analisarmos tal afirmação, é necessário esclarecer o que se entende tanto por compreensão quanto por linguagem, como também a sua relação.
Para tal esclarecimento, citarei a seguir duas passagens de Gadamer, as quais poderão contribuir para nossa reflexão. Cito a primeira passagem:
Quando compreendemos um texto, não nos colocamos no lugar do outro, nem é o caso de pensar que se trata de penetrar a atividade espiritual do autor; trata-se, isto sim, de apreender simplesmente o sentido, o significado, a perspectiva daquilo que nos é transmitido. Trata-se, em outros termos, de apreender o valor intrínseco dos argumentos apresentados, e isto da maneira mais completa possível. Encontramo-nos, de súbito, na esfera de uma perspectiva já compreensível em si mesma, sem que isso implique debruçarmo-nos sobre a subjetividade do outro. O sentido da investigação hermenêutica é revelar o milagre da compreensão, e não a misteriosa comunicação entre as almas. Compreender é o participar de uma perspectiva comum. (GADAMER, 1998, p. 59).
Essa primeira citação aponta para o entendimento de o evento compreensivo necessitar estar vinculado à linguagem, para além do processo comunicativo. Quando Gadamer argumenta que a compreensão é um “milagre” a ser revelado, ele traz uma nova perspectiva para o processo. A compreensão, portanto, não é mais um estágio metodológico através do qual lemos ou deciframos corretamente algum texto; considerando a herança de Heidegger, Gadamer explica o compreender como um evento básico da condição histórico-ontológica humana.
Ou seja, porque há originalmente compreensão, há também filosofia, ciência artes, religião, educação etc. A compreensão, antes entendida como um momento fundamental para a leitura e a interpretação de textos, passa a ser considerada como um momento básico de ser-no-mundo-com-os-outros, não podendo ser ignorada por uma filosofia de cunho eminentemente interpretativo.
Cito agora a segunda passagem:
A linguagem é o medium universal em que se realiza a própria compreensão. A forma de realização da compreensão é interpretação. [...] Todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete. (GADAMER, 2003, p. 503).
A estreita relação entre compreensão e linguagem realiza-se através do diálogo, aspecto fundamental de nosso ser compreensivo, especialmente em relação aos outros. Toda compreensão pressupõe um diálogo entre o intérprete-sujeito e o objeto a ser interpretado. Contudo, não é simplesmente uma relação entre um sujeito exegeta ou técnico e um objeto a ser decifrado ou dominado; é, antes, uma relação recíproca entre o sujeito e o objeto, na qual os próprios participantes da conversação têm algo a revelar, assim como algo a modificar. Ou seja, há, na situação compreensiva, um encontro entre intérprete e objeto, no qual os dois se manifestam. Podemos perceber tal conversação quando, por exemplo, estudamos um texto filosófico: temos uma expectativa de sentido que se encontra com aquilo que o texto quer dizer.
É na interação linguístico-dialógica onde ocorre o que Gadamer aponta como “fusão dos horizontes”, tendo como modelo a relação entre intérprete e obra, que a compreensão se realiza. Isto é, só há interação linguístico-dialógica entre intérprete e texto porque também, anteriormente, há algo em comum: a linguagem. Dessa forma, compreender é pôr-se em diálogo na linguagem, a qual, essencialmente nos constitui. O que não significa simplesmente uma transferência de conteúdo ao outro, porém, o compartilhamento de experiências a partir de algo em comum. É no diálogo – fundamentalmente compreensivo – que a linguagem desvela e torna possível o novo.
Assim, não é possível pensarmos a compreensão, sem levarmos em conta esse solo comum, a linguagem; ela pressupõe uma condição comunitária, na qual a compreensão se revela em função do caráter dialógico, no modelo de pergunta e resposta.
É nesse horizonte que Gadamer vai apontar dois aspectos fundamentais da relação entre linguagem e compreensão: a relação com a tradição, na qual o compreender se insere, primordialmente, através do diálogo entre intérprete e texto, ou melhor, entre presente e passado; e a linguisticalidade (Sprachlichkeit) da estrutura universal da compreensão. Esses dois aspectos contribuem para a discussão acerca da linguagem e suas implicações no horizonte de acontecimento compreensivo, que se dá na vida prática, onde a compreensão e a linguagem estão mutuamente relacionadas. Este é o nosso comentário ao texto de Back (2023).
Referências
Back, Rainri. Compreensão, aprendizagem e linguagem: uma crítica à abordagem hermenêutica. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 3, p. 201- 224, 2023.
GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica. Trad. de Paulo Cesar Duque-Estrada. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. 5. ed. rev. Trad. de Flávio Paulo Meurer, nova revisão de Enio Paulo Giachini e Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003.
Recebido: 10/04/2023
Aprovado: 17/04/2023
1 Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina, PI – Brasil. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia – UFPI e do PROF-Filo – Núcleo UFT. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9399-2541. Email: gustavosilvano@ufpi.edu.br.