Paul Feyerabend: realista e antirrealista

 

Eder Corbanezi[1]

 

Resumo: Intensamente discutidos na filosofia da ciência nos séculos XX e XXI, os temas do realismo e do antirrealismo perpassam a obra de Feyerabend. No entanto, discernir a posição do autor sobre esses assuntos constitui um problema para estudiosos de sua filosofia. Sinal dessa dificuldade é que eles atribuem a Feyerabend a adesão a (ou a rejeição de) diferentes concepções de realismo e de antirrealismo. Apesar das divergências, porém, estudiosos abordam o tema de modo semelhante, detectando elementos das posições realistas e antirrealistas de Feyerabend que são incompatíveis entre si e que se sucedem no decorrer de sua obra. Embora tais pesquisas sejam valiosas, propomo-nos explorar outra abordagem, que também nos parece pertinente. Examinando escritos de Feyerabend, buscamos discernir condições que tornam possível ao autor assumir, sem contradição, posições realistas e antirrealistas. Por fim, procuramos depreender da concepção de ciência de Feyerabend características do realismo prescrito pelo autor, assim como características do realismo por ele proscrito.

 

Palavras-chave: Paul Feyerabend. Realismo. Antirrealismo. Existência. Conhecimento.

 

Introdução

Amplamente debatidos na filosofia da ciência nos séculos XX e XXI, os temas do realismo e do antirrealismo são objetos de reflexão centrais para Paul Feyerabend (cf. Oberheim, 2006, p. 180). Contudo, a tarefa de discernir sua posição sobre o realismo e o antirrealismo, que designam visões opostas sobre a existência do mundo e sobre o conhecimento do mundo, constitui um problema: “Entre os especialistas em Feyerabend” — faz ver Gargiulo (2015, p. 185) — “[...] existe uma discussão para saber se este defende um realismo científico ou um antirrealismo”.

Como sugere essa citação, uma das maneiras de abordar o problema do realismo e do antirrealismo na filosofia de Feyerabend consiste em formulá-lo como uma disjunção: assim, trata-se de saber se o autor “[...] defende um realismo científico ou um antirrealismo”[2]. Tal é, por exemplo, o tratamento dado por Preston (1997). Nessa abordagem, a nosso ver, destacam-se três pontos. Primeiro, Preston reduz o realismo ao realismo científico. Depois, o autor sugere a disjunção entre, de um lado, o realismo, na figura do realismo científico, e, de outro lado, o antirrealismo. Por fim, ele defende a tese de que inicialmente Feyerabend adere ao realismo científico, mas, após um período de transição, assume uma posição antirrealista.

Criticando essa abordagem, Oberheim (2006, p. 180-205) afirma que Preston confunde o realismo de Feyerabend com o realismo científico. Embora Oberheim (2006, p. 182 e 195) reconheça que o realismo científico é caracterizado de diversas maneiras pelos realistas científicos contemporâneos, o autor (2006, p. 196-197) considera que, com frequência, a adesão ao realismo científico se caracteriza pela admissão de três posições, a saber: 1) da tese metafísica de que existe um mundo objetivo independente da mente; 2) da tese epistemológica de que o conhecimento científico acerca desse mundo é pelo menos aproximadamente verdadeiro; 3) por fim, da teoria da verdade como correspondência. Para Oberheim, dessas três posições admitidas pelo realismo científico, Feyerabend aceita somente a primeira, como mera norma metodológica e não como fato, e rejeita as duas últimas. Assim, opondo-se a Preston (1997), Oberheim assevera que em nenhum momento Feyerabend adere ao realismo científico. Em vez do realismo científico, assegura Oberheim, Feyerabend adota na década de 1950 um realismo metodológico e normativo que não visa a descrever a natureza do conhecimento científico, mas se propõe apenas indicar o modo de proceder mais vantajoso para a ciência. De acordo com esse realismo metodológico e normativo, é mais vantajoso para a ciência interpretar suas teorias como tentativas de descrever a realidade, em vez de interpretá-las como meros instrumentos para sistematizar a experiência. Segundo Oberheim, no final da década de 1950 e no início da década de 1960, esse realismo metodológico e normativo cede lugar a uma forma de antirrealismo em parte kantiana e em parte historicista. Para Feyerabend, assim como para Kant, nossa experiência da realidade é produto de categorias. À diferença de Kant, porém, Feyerabend considera tais categorias como históricas e não como transcendentais. Em resumo, portanto, para Oberheim, em vez de encampar o realismo científico, Feyerabend propõe um realismo metodológico e normativo que, em seguida, cede espaço para um antirrealismo em parte kantiano e em parte historicista.

            Do exposto no parágrafo anterior, depreende-se que, em sua crítica à abordagem de Preston (1997), Oberheim (2006) entende que o realismo científico é somente uma forma de realismo. Logo, podendo manifestar-se sob outras formas, o realismo não se reduz ao realismo científico. Por outro lado, como também indicado no parágrafo anterior, quando rejeita a tese de que Feyerabend teria aderido ao realismo científico, Oberheim (2006, p. 196-197) assume como referência uma concepção de realismo científico que, segundo ele, é frequente e que considera o conhecimento científico como verdade adequada ao mundo que existe independentemente daquele que conhece. Entretanto, ao afirmar que tal concepção de realismo científico é frequente, Oberheim reconhece que ela não é necessária e que, portanto, são concebíveis outras formas de realismo científico. Por isso, podemos dizer que, assim como o realismo pode manifestar-se sob diferentes formas e não se reduz ao realismo científico, o realismo científico, por sua vez, também pode assumir diferentes formas e não se reduz àquela concepção de realismo científico.

            Essa é a perspectiva adotada por Baertschi (1986). Ele indica que, quando se pergunta se alguma concepção de realismo é compatível com a filosofia de Feyerabend, é relevante levar em conta as diferentes formas que o realismo científico pode ter. Baertschi (1986, p. 281-282) diferencia duas formas principais. A primeira é um realismo forte, que concebe a teoria como reflexo da realidade ontológica; a segunda, por sua vez, é um realismo fraco, que considera a teoria como interpretação da realidade ontológica. Tais concepções de realismo só implicam dogmatismo, rejeitado por Feyerabend, quando se julga bem-sucedida, potencial ou efetivamente, a proposta de ser o reflexo adequado ou a interpretação verdadeira da realidade[3]. No entanto, adverte Baertschi, a ideia de êxito, possível ou efetivo, não é necessária em nenhuma das duas concepções de realismo científico mencionadas. Portanto, o dogmatismo, recusado por Feyerabend, também não é consequência necessária de nenhuma dessas duas formas de realismo. Essas observações são relevantes para apreciar a posição de Feyerabend quanto ao realismo.

            De acordo com Baertschi (1986, p. 269-276), num primeiro momento Feyerabend julga que o realismo favorece a proliferação de teorias, enquanto o instrumentalismo a obstrui. Por isso, Feyerabend (1981a [1964], p. 201)[4] prefere o realismo. Contudo, Baertschi (1986, p. 283) ressalta que posteriormente Feyerabend critica o realismo. Perguntando-se pelas razões dessa crítica, Baertschi faz ver que, embora às vezes Feyerabend apresente o realismo forte, que considera possível o conhecimento da realidade objetiva, como apenas uma forma de realismo, em outros momentos Feyerabend (1978, p. 69) observa o realismo forte como a essência do realismo. Para Baertschi (1986, p. 283), é essa errônea redução do realismo ao realismo forte que motiva a crítica de Feyerabend ao realismo. No entender de Baertschi, Feyerabend poderia ter adotado um modo de realismo fraco, o qual não implica dogmatismo e é compatível com sua filosofia.

            O que expusemos até aqui indica que a tarefa de discernir as posições de Feyerabend quanto ao realismo e ao antirrealismo suscita, entre os comentadores, a formulação de perguntas e de teses diversas. Todavia, apesar dessas diferenças, os estudiosos se aproximam na medida em que buscam identificar e analisar sobretudo elementos das posições realistas e antirrealistas de Feyerabend que são incompatíveis entre si e que se sucedem no decorrer da obra do filósofo. Tal estratégia é fecunda, como atestam as relevantes contribuições mencionadas acima. Entretanto, outra abordagem também nos parece profícua. É ela que pretendemos explorar.

            Em vez de nos concentrarmos na incompatibilidade e na sucessão das posições realistas e antirrealistas de Feyerabend, propomo-nos examinar aspectos dessas posições que nos parecem compatíveis e que, assim, podem ser assumidos ao mesmo tempo. Analisando os escritos de Feyerabend, pretendemos discernir as condições que tornam possível ao autor adotar, sem contradição, posições realistas e antirrealistas. Esperamos mostrar que tais condições dizem respeito a diferenciações dos objetos a que se referem posições realistas ou antirrealistas, a distinções dos significados que essas posições adquirem, bem como ao estabelecimento de dois níveis hierarquizados de reflexão sobre o tema.

            Para realizar nosso objetivo, estruturamos este artigo em três seções. Na primeira, investigaremos as reflexões de Feyerabend sobre realismo e antirrealismo relacionadas à existência do mundo e ao estatuto do conhecimento do mundo. Na segunda seção, estudaremos suas considerações sobre realismo e antirrealismo ligadas não só ao estatuto como também à elaboração do conhecimento do mundo. Por fim, na terceira seção, buscaremos depreender da concepção de ciência de Feyerabend características do realismo prescrito pelo autor, assim como características do realismo por ele proscrito.

 

1 Feyerabend, realista e antirrealista: a existência do mundo e o estatuto do conhecimento do mundo

            Para Feyerabend, o termo “realismo” pode ter diferentes significados, que se deixam distinguir conforme diversos critérios. Um dos critérios é o âmbito em que o termo é utilizado. Considerando os âmbitos da filosofia e da ciência, Feyerabend (1981b, p. 3-16) distingue primeiramente o “realismo filosófico” do realismo científico”. Depois, ele faz notar que também o “realismo científico” se diferencia, adquirindo significados variados. Ao delimitar o significado de uma das formas do realismo científico, Feyerabend (1981b, p. 3) afirma:

Realismo científico é uma teoria geral do conhecimento (científico). Em uma de suas formas, ele presume que o mundo é independente de nossas atividades de aquisição de conhecimento e que a ciência é o melhor meio para explorá-lo. A ciência não produz só previsões, ela também diz respeito à natureza das coisas; ela é ao mesmo tempo metafísica e teoria de engenharia.

 

            Nessa passagem, o termo “realismo” comporta pelo menos dois significados. O primeiro significado é atinente ao mundo ou, mais exatamente, à existência do mundo. Por isso, tal significado de realismo pode ser qualificado de existencial. Nesse caso, realismo designa a posição conforme a qual, descontado o mundo imaginado pelo ser humano, existe um mundo independente de nosso conhecimento do mundo.

            A nosso ver, esse significado de realismo é subscrito por Feyerabend. É o que se pode depreender da posição defendida pelo autor em “Materialism and the Mind-Body Problem”. Nesse texto, afirma Feyerabend (1963a, p 55): “[…] eu pressuponho um mínimo de razão nos meus leitores; eu presumo que eles sejam realistas. E, presumindo isso, tento indicar que o realismo deles não precisa limitar-se a processos exteriores às suas peles […]”. Essa afirmação sugere que Feyerabend compreende como razoável adotar uma posição realista não só em relação ao mundo exterior como também em relação ao mundo interior. Em nosso entender, a passagem citada indica que assumir uma posição realista significa considerar que é razoável admitir que tanto o mundo exterior como o mundo interior existem independentemente de nosso conhecimento deles[5]. Adotando essa posição, Feyerabend distancia-se da visão idealista de que a existência do mundo depende da mente.

            Enquanto o primeiro significado de realismo é, como dissemos, existencial, o segundo significado pode ser denominado epistemológico. Além disso, enquanto o primeiro significado de realismo diz respeito à existência do mundo, o segundo significado refere-se ao conhecimento científico do mundo ou, mais precisamente, à capacidade de conhecimento da ciência e ao estatuto de tal conhecimento. É esse segundo significado que Feyerabend (1981b, p. 3) parece atribuir ao termo “realismo” na passagem citada mais acima, quando explica que, segundo uma determinada forma de realismo científico, “[...] a ciência não produz só previsões, ela também diz respeito à natureza das coisas; ela é ao mesmo tempo metafísica e teoria de engenharia”. Nesse sentido, assumir uma posição realista significa julgar que a ciência é capaz de conhecer a “natureza das coisas”.

            A nosso ver, essa concepção de realismo pertence à classe de realismo que Feyerabend  (1981b, p. 8) denomina “realismo ingênuo”[6]. Feyerabend (1981b, p. 8) classifica de realistas ingênuos cientistas e filósofos que “[...] presumem que existem certos objetos no mundo e que algumas teorias conseguem representá-los corretamente”. Para tais cientistas e filósofos, complementa Feyerabend (1981b, p. 8), “[...] essas teorias falam sobre a realidade […], […] sobre a natureza das coisas”. Assim, realista ingênuo é quem acredita não só que existe uma realidade independente de nós (primeiro significado de realismo), mas também que as melhores teorias da ciência e da filosofia conhecem ou podem vir a conhecer a realidade tal como ela existe independentemente de nós (segundo significado de realismo). Na visão de um realista ingênuo, portanto, o conhecimento produzido por essas teorias corresponde à realidade tout court.

            Esse realismo ingênuo é rejeitado por pensadores que Feyerabend (1981b, p. 8-11) reúne sob a denominação de “criticismo científico”. Entre eles, estão Ernst Mach, Ludwig Boltzmann, Heinrich Hertz, Pierre Duhem e Albert Einstein. Por certo, cada um deles rejeita a seu próprio modo a tese típica do realismo ingênuo. Mas, apesar de suas especificidades, esses pensadores aceitam igualmente a ideia básica de que as teorias são necessariamente ficções e convenções. Embora possam ser aprimoradas, tais ficções e convenções não correspondem à realidade tal como ela existe independentemente do modo pelo qual ela é concebida por essas ficções e convenções. Assim, o objeto de determinado conceito no interior de determinada teoria não existe como tal senão na concepção da realidade segundo esse conceito, no interior dessa teoria.

            Feyerabend parece aprovar essa posição básica do criticismo científico[7], de acordo com a qual nenhuma teoria produz conhecimento que corresponda à realidade tal como ela existe independentemente da teoria que a concebe. Por isso, podemos dizer que, para Feyerabend, o que se costuma chamar de realidade é, a rigor, uma determinada realidade, tal como concebida por determinada teoria.

            Como se nota, quando se fala em “realidade”, emprega-se uma expressão elíptica, só aparentemente indeterminada e simples. As determinações e a complexidade da expressão elíptica realidadeevidenciam-se quando se explicita o que está oculto. O conteúdo oculto na expressão elíptica “realidade” pode ser explicitado de duas perspectivas diferentes, a saber, tanto da perspectiva do realismo ingênuo como da perspectiva do criticismo científico. Conforme se trate de uma ou de outra perspectiva, o conteúdo oculto varia. Da perspectiva do realismo ingênuo, quando se fala elipticamente em “realidade”, o que se oculta é a pretensa referência à realidade tout court, isto é, à realidade tal como ela existe independentemente de nosso modo de percebê-la e de concebê-la. Já da perspectiva do criticismo científico, quando se fala elipticamente em realidade”, não se pretende fazer referência à realidade que existe independentemente de nós, mas a uma condicionada e determinada concepção de realidade. Nesse caso, a expressão elíptica “realidade” designa, a cada vez, uma concepção de realidade que resulta de condições determinadas e determinantes ligadas necessariamente a certo modo de perceber e de conceber. Por conseguinte, contrastando a perspectiva do criticismo científico com a perspectiva do realismo ingênuo, podemos dizer que, da perspectiva do criticismo científico, a expressão elíptica “realidade”, entendida no sentido do realismo ingênuo como “realidade tout court”, envolve, oculta, uma contradictio in adjecto, já que nunca se trata de “realidade tout court”, mas sempre de uma determinada e condicionada concepção de realidade. A referida contradictio in adjecto evidencia-se quando se explicita e se contrasta o conteúdo oculto da expressão elíptica “realidade” conforme, respectivamente, a perspectiva do realismo ingênuo e a perspectiva do criticismo científico. Como já apontamos, Feyerabend rejeita o realismo ingênuo e adere ao criticismo científico. Assim, ele rejeita o conteúdo oculto do uso elíptico do termo “realidade”, conforme a perspectiva do realismo ingênuo, ao passo que aceita o conteúdo oculto do uso elíptico do termo “realidade”, segundo a perspectiva do criticismo científico.

            No início deste tópico, examinamos o primeiro significado de realismo, que concerne à existência do mundo e, nesse sentido, pode ser qualificado de existencial. Ali, buscamos mostrar que Feyerabend assume uma posição realista, ao entender que é razoável admitir que o mundo existe independentemente de nosso conhecimento dele. Em seguida, porém, ao analisarmos o segundo significado de realismo, que é de caráter epistemológico e se refere à determinação do estatuto do conhecimento científico do mundo, procuramos fazer ver que Feyerabend, adotando uma posição contrária ao realismo ingênuo e compatível com o criticismo científico, assume uma visão antirrealista. De acordo com essa visão antirrealista, nenhuma teoria pode ser classificada de realista em sentido forte e estrito, isto é, de conhecimento adequado à realidade tout court ou de conhecimento adequado à realidade tal como ela existe independentemente daquele que a conhece. Desse modo, quando considera o realismo em sentido forte e estrito, e quando se situa num primeiro nível de análise, o nível mais fundamental e incontornável, Feyerabend, ao determinar o estatuto do conhecimento do mundo, assume uma posição antirrealista e classifica todas as teorias como não realistas.

            Como se observa, Feyerabend assume duas posições: uma realista e outra antirrealista. Essas posições seriam contraditórias? Em nosso entender, essas posições não são contraditórias, mas compatíveis, porque o realismo e o antirrealismo de Feyerabend se direcionam a objetos diferentes. Com efeito, de um lado, seu realismo diz respeito à existência do mundo: essa posição realista considera que o mundo existe independentemente do conhecimento do mundo. De outro lado, o antirrealismo de Feyerabend diz respeito à determinação do estatuto do conhecimento do mundo: conforme essa posição antirrealista, o conhecimento científico não corresponde à natureza do mundo, mas é determinado por condições determinadas ligadas àquele que conhece. Assim, o realismo existencial, segundo o qual o mundo existe independentemente daquele que conhece, é compatível com o antirrealismo epistemológico, de acordo com o qual é impossível conhecer o mundo tal como ele existe independentemente daquele que conhece.

 

2 Feyerabend, realista e antirrealista: a elaboração e o estatuto do conhecimento do mundo

            O antirrealismo epistemológico apontado na seção anterior deste artigo tem consequências para o modo como Feyerabend entende a relação entre realismo e antirrealismo. Como vimos, no tocante à determinação do estatuto do conhecimento, quando Feyerabend se situa num primeiro nível de análise, mais fundamental, em que atribui ao termo realismo o sentido forte e estrito de conhecimento adequado à realidade tout court, o autor assume uma posição antirrealista e classifica todas as teorias de não realistas. Logo, quando se situa num primeiro nível de análise, em que confere ao termo realismo um sentido forte e estrito, Feyerabend não concebe realismo e não realismo como duas espécies coordenadas e opostas de classificação de teorias. Em vez disso, em nosso entender, Feyerabend faz o não realismo operar como um gênero que engloba como espécies até mesmo as teorias pretensamente realistas, pois nem mesmo essas teorias, a despeito de sua pretensão, produzem um conhecimento que corresponda à realidade tal como ela existe independentemente daquele que busca conhecê-la.

            No entanto, a nosso ver, no âmbito do conhecimento, a relação entre realismo e antirrealismo não se restringe a essa subsunção do (pretenso) realismo ao não realismo. Enquanto, num primeiro nível de análise, entendendo realismo em sentido forte e estrito, Feyerabend considera que existem apenas teorias não realistas e subsume até mesmo o pretenso realismo ao não realismo; num segundo nível de análise, entendendo realismo em sentido enfraquecido e mais amplo, a saber, como consistência teórica e suporte factual que permitam considerar determinado conhecimento como se fosse uma descrição da realidade, o autor diferencia teorias realistas e não realistas, fazendo operar realismo e não realismo como espécies coordenadas de classificação de teorias.

            A diferenciação entre teorias realistas e não realistas se evidencia quando analisamos as reflexões de Feyerabend (1981a [1964], p. 176-202) sobre realismo e instrumentalismo, sendo este último compreendido pelo autor como uma posição não realista. Se, como apontamos acima, num primeiro nível de análise, o mais fundamental, Feyerabend prescreve a adoção de uma posição antirrealista quando se trata de determinar o estatuto do conhecimento do mundo, num segundo nível de análise, o autor preconiza uma posição realista, em vez de uma posição instrumentalista (isto é, não realista), quando se trata de determinar o ideal que deve orientar a elaboração de tal conhecimento. É nesse sentido que entendemos a afirmação de Feyerabend (1981a [1964], p. 176) segundo a qual o “[...] realismo é preferível ao instrumentalismo”: tal afirmação, em nosso entender, não vale para determinar o estatuto do conhecimento, mas somente para determinar a orientação heurística que deve ser adotada na elaboração do conhecimento. A seguir, indicaremos por que, a nosso ver, é no âmbito da elaboração do conhecimento do mundo que Feyerabend preconiza uma orientação realista, concebendo realismo em sentido enfraquecido e mais amplo.

            Observando realismo e instrumentalismo como “[...] duas interpretações alternativas da ciência e do conhecimento factual em geral”, Feyerabend (1981a [1964], p. 176) os define da seguinte maneira: “Segundo o realismo, tal conhecimento é descritivo de características (gerais ou particulares) do universo. Segundo o instrumentalismo, mesmo uma teoria completamente correta não descreve nada, mas serve como instrumento para prever os fatos que constituem seu conteúdo empírico”. Contra Ernest Nagel (1961), Feyerabend (1966) assegura que a apresentação de uma teoria como realista ou instrumentalista não constitui mera distinção verbal. Feyerabend (1981a [1964], p. 176, 177 e 181, nota 10) argumenta que, para apresentar uma teoria como realista ou instrumentalista, é preciso observar certos requisitos, o que pode influenciar a elaboração da teoria.

            Os requisitos admitidos normalmente para se qualificar uma teoria de realista, indica Feyerabend (1981a [1964], p. 195, 201 e 202), são a coerência teórica e o suporte factual. Esse suporte factual pode ser fornecido pela própria teoria, como uma novidade, ou pode ser atestado pela concordância da nova teoria com observações já consideradas válidas. No entanto, adverte Feyerabend (1981a [1958], p. 33-34), questões ligadas ao realismo não são propriamente factuais: como veremos na terceira seção deste artigo, fatos não podem funcionar como critérios indiscutíveis porque, entre outras razões, dependem da teoria que pretendem confirmar e, pior, dependem de elementos de teorias refutadas ou não verificáveis[8]. Questões ligadas ao realismo, precisa Feyerabend (1981a [1958], pp. 33-34), dizem respeito apenas ao ideal formal de nosso conhecimento.

            Já os requisitos para se classificar uma teoria de instrumentalista são diferentes dos requisitos realistas. Para ser qualificada de instrumentalista, uma teoria precisa apenas ter bom desempenho em suas previsões. Feyerabend (1981a [1964]) faz ver que, satisfazendo a tal requisito, a teoria será considerada instrumentalista mesmo se contiver conjecturas implausíveis, mesmo se não oferecer suporte factual próprio e mesmo se for incompatível com fatos e teorias avaliados como bem estabelecidos. Dito de outro modo, uma teoria pode ter valor instrumental mesmo que tal teoria se mostre falsa do ponto de vista realista, isto é, mesmo que seja julgada falsa à luz do que se considera — adotando-se como critério teorias e fatos avaliados como bem estabelecidos — aceitável conceber como realidade.

            Assim, pode-se dizer que os requisitos a serem satisfeitos por uma teoria passível de ser classificada de realista são mais estritos do que os requisitos a serem satisfeitos por uma teoria passível de ser classificada de instrumentalista. Com efeito, se, como apontado acima, o realismo diz respeito ao ideal formal do conhecimento, então, para Feyerabend (1981a [1964], p. 200), as teorias que possam ser consideradas “[...] como descrições da realidade em vez de meros instrumentos de previsões bem-sucedidos” atingem “[...] a sua forma mais forte possível”. Inversamente, Feyerabend (1981a [1964], p. 190) afirma que não se deve ficar contente com uma teoria que, no máximo, seja passível de uma interpretação instrumentalista, mas que se torne falsa quando interpretada realisticamente”. A nosso ver, o caráter mais estrito dos requisitos a serem satisfeitos por uma teoria passível de ser considerada realista, bem como a ideia de que, exatamente por isso, uma teoria atinge sua forma mais forte quando se torna passível de ser classificada de realista, constitui argumento para que Feyerabend (1981a [1964], p. 176-177) prefira a adoção de uma orientação realista à adoção de uma orientação meramente instrumentalista no processo de elaboração do conhecimento.

            Mas há outro argumento. De acordo com Feyerabend (1981a [1964], p. 196), “[...] a posição realista encoraja a pesquisa e estimula o progresso, enquanto o instrumentalismo é mais conservador e propenso à petrificação dogmática”. Em nossa leitura, esse argumento pode ser considerado como decorrente do argumento anterior. De fato, se os requisitos a serem satisfeitos por uma teoria realista são mais estritos do que os requisitos a serem satisfeitos por uma teoria instrumentalista, então a tentativa de tornar uma teoria passível de ser considerada como realista tende a encorajar a pesquisa e a estimular o progresso de modo mais intenso do que ocorreria se o objetivo último se restringisse a formular teorias bem-sucedidas em suas previsões. Um exemplo de encorajamento da pesquisa e de progresso decorrentes da adoção de uma orientação realista é dado pela elaboração da visão de mundo copernicana. Feyerabend (1981a [1964], p. 184) lembra que, de início, essa visão de mundo foi interpretada predominantemente como instrumentalista e não como realista. Posteriormente, contudo, “[...] a posição realista triunfou — argumenta Feyerabend (1981a [1964], p. 196) — como o resultado de uma laboriosa pesquisa e pareceu desse modo provar-se como essencialmente correta”. O realismo, portanto, deve funcionar como ideal regulador durante a elaboração de uma teoria porque impõe requisitos mais estritos do que os do instrumentalismo, exige de modo mais acentuado a pesquisa, encoraja mais intensamente o progresso e, dessa maneira, tende a conduzir uma teoria à sua forma mais forte possível.

            Nesse ponto, tocamos em outro argumento favorável à adoção do realismo durante a elaboração das teorias. Como acabamos de realçar, a busca por tornar uma teoria realista tende a conduzir essa teoria à sua forma mais forte possível. Isso equivale a levar uma teoria ao seu limite. Levar uma teoria ao seu limite, por sua vez, amplia a testabilidade de tal teoria, o que, para Feyerabend, contribui para explorar o mundo e para descobrir suas características[9]. É por isso que o autor (1981c, p. 145) compreende a busca pelo aumento da testabilidade como um imperativo epistemológico”. Prescrevendo os meios para se realizar tal imperativo, ele (1981c, p. 145) exorta: “[...] melhore a testabilidade levando suas visões ao limite!”. Assim, a testabilidade é um imperativo epistemológico e aumenta quando as teorias são levadas ao limite. Ora, o realismo, tomado como ideal formal do conhecimento, leva as teorias ao limite e, por isso, favorece a testabilidade delas. Portanto, em nosso entender, também por essa razão Feyerabend prescreve a adoção de uma orientação realista na elaboração das teorias. É nesse sentido que compreendemos sua afirmação de que podemos ser realistas científicos tanto em atos como em palavras” porque o mundo está construído de tal modo que a exigência de xima testabilidade nos ajuda a explorá-lo e a descobrir suas características” (1981c, p. 145).

            Em resumo, portanto, o realismo deve operar como um imperativo durante a elaboração do conhecimento na medida em que impõe requisitos mais estritos do que os requisitos do instrumentalismo, de modo que encoraja mais a pesquisa e o progresso, conduz as teorias à sua forma mais forte possível e, assim, amplia sua testabilidade.

            Por isso, aponta Feyerabend (1981a [1964], p. 190, nota 32, e p. 200), é indesejável contentar-se com uma teoria passível de ser considerada apenas como instrumentalista. Em vez disso, deve-se buscar desenvolver tal teoria, para que ela possa ser considerada também como realista[10]. Assim, embora seja possível, como ressaltamos acima, que realismo e instrumentalismo operem como espécies coordenadas de classificação de teorias, também é possível, como acabamos de nuançar, que a mesma teoria satisfaça a critérios instrumentalistas e realistas.

            De todo modo, a relação entre realismo e instrumentalismo, como categorias classificatórias de conhecimento, é complexa porque, conforme mencionado, a relação entre realismo e instrumentalismo pode ser considerada em dois níveis de análise, em cada um dos quais se entende realismo em sentido diferente. No primeiro nível de análise, mais fundamental, no qual realismo tem sentido forte e estrito, o estatuto de nenhum conhecimento pode ser classificado de realista, isto é, de adequado à realidade tout court. Nesse nível de análise, Feyerabend adota uma posição antirrealista, contrária ao realismo ingênuo e compatível com o criticismo científico. Dessa perspectiva fundamentalmente antirrealista, o estatuto de um conhecimento pode ser classificado, no máximo, de instrumentalista, mesmo que, apresentando consistência teórica e suporte factual, atenda aos requisitos para, num segundo nível de análise, ser classificado de realista num sentido enfraquecido e mais amplo do termo, isto é, como adequado não à realidade tout court, mas à realidade tal como esta é concebível segundo determinado enquadramento teórico e factual avaliado como consistente[11].

***

            Em resumo, os resultados da primeira e da segunda seções deste artigo são os seguintes.

            A nosso ver, as reflexões de Feyerabend sobre o realismo referem-se a três objetos diferentes: a existência do mundo, o estatuto do conhecimento do mundo e o ideal orientador da elaboração do conhecimento do mundo.

            Conforme cada objeto a que se aplique, a posição denominada realismo pode assumir três significados diferentes. Aplicado ao primeiro objeto (isto é, à existência do mundo), realismo designa a posição conforme a qual existe um mundo independente daquele que o conhece ou busca conhecê-lo. No tocante a esse primeiro objeto, Feyerabend assume uma posição realista. Aplicado ao segundo objeto (isto é, ao estatuto do conhecimento do mundo), realismo designa a posição conforme a qual nosso conhecimento se adequa ao mundo tal como ele existe independentemente do sujeito cognoscente. No tocante a esse segundo objeto, Feyerabend considera tal realismo impossível e assume uma posição antirrealista. Aplicado ao terceiro objeto (isto é, ao ideal orientador da elaboração do conhecimento do mundo), realismo designa uma posição conforme a qual se deve buscar elaborar o conhecimento de maneira que, coerente nos planos teórico e factual, possa ser tomado como se fosse uma descrição da realidade e não mero instrumento de sistematização e de previsão. No tocante a esse terceiro objeto, Feyerabend assume uma posição realista, em vez de instrumentalista.

            Além de diferenciar os três objetos e os três sentidos de realismo indicados nos dois parágrafos acima, Feyerabend estabelece, a nosso ver, uma hierarquia entre os dois últimos objetos, assim como entre os dois sentidos de realismo que lhes são aplicáveis. Tal hierarquia se expressa na diferenciação de dois níveis de reflexão. A reflexão sobre o estatuto de nosso conhecimento do mundo, isto é, sobre a adequação ou não de nosso conhecimento à realidade tout court, situa-se num primeiro nível de análise, mais fundamental, em que opera um sentido forte e estrito de realismo, entendido como correspondência do conhecimento à realidade tal como ela existe independentemente do sujeito cognoscente. Em virtude do caráter mais fundamental desse primeiro nível de análise, bem como em virtude do sentido forte e estrito de realismo, a posição não realista aí adotada por Feyerabend é fundamental e incontornável. Já a reflexão sobre o ideal regulador da elaboração do conhecimento do mundo situa-se num segundo nível de análise, em que opera um sentido enfraquecido e mais amplo de realismo, compreendido como mera coerência teórica e factual. Esse segundo nível de análise e esse sentido enfraquecido e mais amplo de realismo subordinam-se ao primeiro nível de análise e ao sentido forte e estrito de realismo. Em função dessa hierarquia, a posição realista que Feyerabend adota no segundo nível de análise, no qual realismo tem sentido enfraquecido e mais amplo, não anula o antirrealismo assumido pelo autor no primeiro nível de análise, mais fundamental, em que se entende realismo em sentido forte e estrito. Assim, é possível a Feyerabend afirmar — adotando uma posição antirrealista no primeiro nível de análise, mais fundamental, em que se entende realismo em sentido forte e estrito — que nosso conhecimento não corresponde à realidade tout court, mas — assumindo uma posição realista no segundo nível de análise, em que se entende realismo em sentido enfraquecido e mais amplo — que se deve buscar elaborar um conhecimento coerente, passível de ser considerado como se fosse uma descrição da realidade.

            Diferenciando três significados de realismo e dois níveis de reflexão, buscamos mostrar que, na filosofia de Feyerabend, realismo designa posições diversas. Ademais, diferenciando três objetos aos quais são aplicáveis as posições designadas realistas e não realistas, procuramos fazer ver que as posições realistas e não realistas assumidas pelo autor se aplicam a objetos diversos e, desse modo, são compatíveis entre si. Dessa forma, em suma, tentamos indicar que as diferenciações de objetos, de significados e de níveis de análise ligados ao realismo permitem a Feyerabend adotar, sem contradição, posições realistas e não realistas.

            Por certo, é relevante discernir, como fizeram comentadores em importantes contribuições, aspectos das posições realistas e antirrealistas de Feyerabend que são incompatíveis e que estão presentes, sob a forma de realismo e de antirrealismo sucessivamente, em momentos diferentes de seu pensamento[12]. Entretanto, na primeira e na segunda seções deste artigo, procuramos mostrar que também parece possível encontrar aspectos das posições realistas e antirrealistas compatíveis e, assim, passíveis de serem assumidos ao mesmo tempo.

 

3 Características do realismo prescrito e do realismo proscrito por Feyerabend

            Acima, buscamos evidenciar que Feyerabend recomenda o realismo como ideal a ser seguido na elaboração do conhecimento, ao passo que desaconselha a adesão ao realismo ingênuo quando se trata de determinar o estatuto de tal conhecimento. Agora, cumpre perguntar quais seriam as características do realismo prescrito por Feyerabend na elaboração do conhecimento, bem como quais seriam as características do realismo proscrito pelo autor. É a essas perguntas que procuraremos responder a seguir.

            O realismo prescrito por Feyerabend tem de ser compatível com sua concepção de ciência. Sem tal compatibilidade, com efeito, sua filosofia conteria contradições. Dessa forma, as características do realismo prescrito por Feyerabend não precisam resumir-se àquelas mencionadas nas passagens em que o termo “realismo” é empregado; tais características podem ser depreendidas de sua concepção de ciência. Eis o que intentamos fazer abaixo.

            Feyerabend opõe-se ao que se costuma denominar a ciência”. Essa denominação pode sugerir que a ciência existe como uma entidade una, isto é, coerente[13]. Mas esse não é o caso. A falta de unidade na ciência deixa-se notar sob diferentes aspectos. De um ponto de vista amplo, no Prefácio à terceira edição” de Contra o método, redigido em 1992, Feyerabend (2011 [1975a], p. 13) aponta a falta de unidade na ciência, ao afirmar que não há uma entidade chamada ciência, com princípios claramente definidos”; para ele, ao contrário, “[...] a ciência compreende uma grande variedade de abordagens (em alto nível teóricas, fenomenológicas, experimentais)”. De modo semelhante, na Introdução à edição chinesa”, Feyerabend (2011 [1975a], p. 19) formula a tese de seu livro com as seguintes palavras: Os eventos, os procedimentos e os resultados que constituem as ciências não têm uma estrutura comum”. De pontos de vista mais específicos, a falta de unidade revela-se na variedade e na oposição das abordagens presentes mesmo em áreas particulares da ciência. No acima mencionado Prefácio à terceira edição” de Contra o método, Feyerabend (2011 [1975a], p. 13) assevera que “[…] mesmo uma ciência particular como a física não passa de uma coleção dispersa de assuntos (elasticidade, hidrodinâmica, reologia, termodinâmica etc.), cada um deles contendo tendências contrárias”. A incongruência das posições científicas atinge até mesmo o estabelecimento de “fatos”, que, na concepção racionalista de ciência, funcionam como critérios para selecionar e descartar teorias. Em Art as a Product of Nature as a Work of Art”, Feyerabend (1994, p. 93) salienta, após mencionar diversas epistemologias e abordagens científicas:

Ora, o interessante é que muitas dessas diferentes abordagens foram bem-sucedidas no sentido de que elas produziram fatos, leis e teorias aceitáveis. Mas isso significa que, sendo construídas de diferentes maneiras, diferentes posições do conhecimento científico não podem ser facilmente combinadas e a ideia de um coerente “corpo de conhecimento científico” é uma quimera.

 

            Se existem concepções, teorias e fatos científicos divergentes, mas aceitáveis, então a ciência não é uma entidade una e coerente. Ademais, na medida em que a realidade, quando investigada, suscita concepções, teorias e fatos científicos divergentes, mas aceitáveis, é preciso considerá-la como plurívoca. E importa notar que, por razões que exporemos abaixo, Feyerabend assegura que na ciência não se deve evitar, mas sim fomentar a proliferação de concepções diversas e divergentes da realidade[14].

            Assim, parece-nos possível sustentar que a concepção de ciência de Feyerabend, tanto do ponto de vista descritivo como do ponto de vista prescritivo, implica uma concepção de realismo que compreenda a realidade como multívoca, isto é, como capaz de suscitar concepções de realidade múltiplas, não só diversas como também divergentes, mas aceitáveis. Se o realismo prescrito por Feyerabend na elaboração do conhecimento científico precisa compreender a realidade como multívoca, então, inversamente, o autor proscreve um realismo científico que conceba a realidade como unívoca, isto é, como suscetível de acomodar uma única concepção científica válida de realidade. Em vez da diversidade e da divergência, tal realismo tenderia a promover a uniformidade. Como esse realismo unívoco não condiz com a situação efetiva da ciência, tal como a descreve Feyerabend, semelhante realismo é inconsistente. Ademais, como esse realismo unívoco é incompatível com o que, segundo Feyerabend, a ciência deve ser (por razões que apresentaremos abaixo), tal realismo, além de inconsistente, afigura-se como nocivo do ponto de vista epistemológico.

            Em nosso entender, Feyerabend julga que, além de não ser una ou coerente, a ciência não é simples[15]. Ela é complexa, ou seja, é composta de elementos de naturezas diversas. Assim como a ausência de unidade, a complexidade da ciência também se deixa notar sob diferentes aspectos. Um desses aspectos é a coexistência, tanto na ciência em geral como em teorias científicas particulares, de elementos compatíveis e incompatíveis entre si. Ademais, tendo em vista especialmente os elementos incompatíveis entre si, Feyerabend assegura que uma parte deles é conhecida, enquanto a outra parte passa despercebida. O autor sustenta ainda que elementos incompatíveis despercebidos estão presentes tanto nas teorias quanto nos fatos estabelecidos por posições científicas admitidas. De um lado, as teorias científicas, inclusive as admitidas, sempre têm pressupostos, princípios, propriedades, contradições, limitações e consequências absurdas despercebidos. De outro lado, igualmente despercebido costuma ser o desacordo quantitativo e qualitativo entre fatos e teorias admitidas. No tocante ao desacordo quantitativo, Feyerabend sustenta que normalmente as teorias são incapazes de explicar todos os fatos de seus respectivos âmbitos. No que tange ao desacordo qualitativo, Feyerabend, assegurando que não há separação estrita entre fato e teoria, afirma que todo fato supõe uma teoria ou, mais precisamente, afirma que todo fato supõe não só elementos da teoria que o fato pretensamente confirma, como também elementos despercebidos de teorias alternativas e, muitas vezes, incompatíveis com a teoria supostamente confirmada.

            Com base no que indicamos no parágrafo acima sobre o entendimento de ciência de Feyerabend, podemos discernir outras três características da concepção de realismo ali implicadas. Em primeiro lugar, se, de acordo com a visão de ciência de Feyerabend, as teorias científicas explicam apenas uma parte dos fatos de seus respectivos âmbitos, então o realismo prescrito por Feyerabend implica a ideia de que a ciência só é capaz de conceber a realidade incompletamente. Por conseguinte, o autor proscreve um realismo que pretenda que a ciência possa representar a realidade integralmente. Em segundo lugar, se, de acordo com o entendimento de ciência de Feyerabend, a concepção de realidade contida em teorias e fatos científicos inclui elementos incompatíveis entre si, então o realismo prescrito por Feyerabend não pode considerar como obtenível uma concepção totalmente coerente da realidade. Em terceiro lugar, se, de acordo com a concepção de ciência de Feyerabend, as posições científicas contêm elementos despercebidos, inclusive os incompatíveis, então o realismo prescrito pelo autor não pode considerar possível que a ciência tenha consciência integral da própria concepção de realidade, pois tal concepção será inevitavelmente composta de elementos despercebidos. Assim, no realismo implicado pela concepção de ciência proposta por Feyerabend, a imagem obtenível da realidade será caracterizada pela incompletude, pela incoerência, ao menos parcial, e pela presença de elementos despercebidos. Mais do que isso: se as posições científicas se caracterizam pela incompletude, pela incoerência, ao menos parcial, e pelo desconhecimento de uma porção de seus elementos, então não só a imagem científica da realidade como também, de um ponto de vista reflexivo, a imagem científica da imagem científica da realidade — isto é, a imagem que a ciência faz a respeito da imagem que a ciência faz da realidade — será caracterizada pela incompletude, pela incoerência, ao menos parcial, e pelo desconhecimento de alguns de seus elementos.

            Nesse ponto, cumpre fazer duas ressalvas quanto ao que dissemos na segunda seção deste artigo. A primeira ressalva é a seguinte. Ali, indicamos que, num segundo nível de análise, Feyerabend recomenda a adoção de uma orientação realista na elaboração do conhecimento, entendendo por realismo, em sentido enfraquecido e amplo, a busca pela coerência teórica e pelo suporte factual, de maneira que o conhecimento produzido possa ser considerado como se fosse uma descrição da realidade. Ora, se, como acabamos observar, Feyerabend assume que teorias e fatos sempre contêm inconsistências, ainda que despercebidas, então o que se chama de coerência é invariavelmente mera coerência aparente, não efetiva. Por conseguinte, levando-se em conta essa incontornável, embora nem sempre detectada, incoerência, nenhuma posição científica poderia a rigor ser classificada de realista, nem mesmo quando se entende realismo, em sentido enfraquecido e amplo, como coerência teórica e suporte factual.

            A segunda ressalva é a seguinte. Na segunda seção deste artigo, assinalamos que, num segundo nível de análise, no qual o realismo tem um sentido enfraquecido e amplo de coerência teórica e suporte factual, uma posição que não é qualificada de realista pode vir a receber tal qualificação, caso passe a atender aos requisitos correspondentes. Agora, em sentido inverso, convém acrescentar que uma posição qualificada de realista, porque, em dado momento, considerada consistente nos planos teórico e factual, pode vir a ter reveladas suas inconsistências até então despercebidas e, assim, passar a ser classificada de não realista. A rigor, como Feyerabend assume que todas as posições teóricas e factuais têm inconsistências, ainda que despercebidas em dado momento, parece-nos que, no tocante à classificação de posições em realistas e em não realistas, é necessário considerar as teorias classificadas de realistas em dado momento como sendo também potencialmente não realistas. Essas teorias potencialmente não realistas se revelarão efetivamente não realistas se suas inconsistências despercebidas forem detectadas.

            Para detectar elementos despercebidos nas teorias e nos fatos estabelecidos por posições científicas admitidas, não basta analisá-las[16]. Um meio profícuo é comparar essas posições científicas admitidas com outras posições científicas, inclusive com as incipientes, as pouco promissoras e até mesmo as falsificadas e refutadas. Além disso, as posições científicas admitidas devem ser comparadas com ideias provenientes de fora da ciência, como de mitos, de religiões e do universo leigo. Para tornar essa comparação ainda mais profícua a fim de detectar elementos despercebidos em posições científicas admitidas, convém não só conservar como também aprimorar posições científicas incipientes e pouco promissoras, falsificadas e refutadas, assim como ideias oriundas do exterior da ciência. Comparadas e contrastadas com posições perdedoras no âmbito científico e com ideias não científicas, as posições científicas admitidas aumentam a extensão e a exatidão de seu autoconhecimento, o qual, como apontamos acima, é necessariamente incompleto. Com isso, essas posições científicas admitidas têm mais chance de detectar pressupostos, princípios, propriedades, limitações, contradições e consequências absurdas antes despercebidos. Feyerabend (2011 [1975a], p. 44) denomina “metodologia pluralista” esse procedimento de conservar e de aprimorar posições científicas perdedoras e ideias estranhas à ciência a fim de compará-las com teorias científicas admitidas[17]. Como se nota, tal metodologia pluralista é inclusiva não só porque não exclui posições científicas perdedoras nem ideias não científicas, como também porque, positivamente, confere-lhes um papel epistemológico relevante no desenvolvimento da ciência. Propiciadora da diversidade, essa metodologia pluralista e inclusiva opõe-se a uma metodologia excludente que, rejeitando ou depreciando teorias científicas perdedoras e ideias não científicas, favoreça a uniformidade. Um exemplo de metodologia excludente e uniformizadora é a metodologia racionalista de Popper, amplamente criticada por Feyerabend[18].

            Com base no que apontamos no parágrafo acima a respeito da concepção de ciência de Feyerabend, podemos discernir outra característica do realismo nela implicado. Se Feyerabend prescreve à ciência uma metodologia pluralista e inclusiva, então o realismo recomendado por ele na elaboração do conhecimento científico também deve ser pluralista e inclusivo. Esse realismo deve ser pluralista em dois sentidos pelo menos. Em primeiro lugar, esse realismo é pluralista na medida em que, como já mencionado, considera a realidade como multívoca e, por isso, como capaz de suscitar concepções de realidade diversas e divergentes, embora aceitáveis. Em segundo lugar, a orientação realista a ser adotada na elaboração do conhecimento científico deve ser pluralista também na medida em que não só tolera concepções de realidade diversas e divergentes, mas, mais do que tolerar, reconhece o valor de levá-las em conta na construção do conhecimento. Assumindo e combinando esses dois sentidos de pluralismo, o realismo será também inclusivo. Assim entendido, esse realismo pluralista e inclusivo faz ver que adotar uma orientação realista ao elaborar uma concepção de mundo não implica desconsiderar, tampouco depreciar e menos ainda tentar extinguir outras concepções de mundo. Pelo contrário, a adesão ao realismo pluralista e inclusivo permite valorizar concepções de mundo diversas e mesmo divergentes. Se, na concepção de ciência de Feyerabend, a metodologia pluralista e inclusiva se opõe a uma metodologia excludente e uniformizadora, então o realismo pluralista e inclusivo, implicado na concepção de ciência de Feyerabend, também se opõe a um realismo excludente e uniformizador.

            A metodologia pluralista e inclusiva tem ainda outra consequência para a concepção de realismo implicada na concepção de ciência de Feyerabend. Na segunda seção deste artigo, assinalamos que, para Feyerabend, uma teoria inicialmente considerada não realista pode, posteriormente, vir a ser classificada de realista. Para que uma teoria considerada não realista passe a ser qualificada de realista, pode ser necessária a realização de diferentes tipos de condições. Entre essas condições, pode figurar o aprimoramento, pela retificação ou pelo desenvolvimento, de uma teoria considerada em si mesma. Mas pode figurar também como condição necessária a realização de fatores exteriores a tal teoria, como o incremento de conhecimentos auxiliares e o surgimento de um novo modo de perceber o mundo[19]. Ora, a metodologia pluralista e inclusiva pode contribuir de diferentes maneiras para a realização desses diferentes tipos de condições. Com efeito, se levada em conta essa metodologia, conservam-se e aprimoram-se — em vez de se descartarem, talvez precoce e indevidamente — até mesmo posições científicas incipientes e pouco promissoras, as quais, posteriormente, podem vir a atender aos requisitos para serem classificadas de realistas. De igual modo, a implementação da metodologia pluralista e inclusiva pode propiciar a realização de condições necessárias exteriores à própria teoria, como o desenvolvimento de conhecimentos auxiliares. Dessa forma, a metodologia pluralista e inclusiva pode contribuir para fazer com que uma posição inicialmente qualificada de não realista passe a ser classificada de realista.

            Por outro lado, como indicamos mais acima, a metodologia pluralista e inclusiva também pode contribuir para detectar elementos inconsistentes até então despercebidos e, nesse caso, fazer com que uma teoria qualificada de realista passe a ser classificada de não realista. Portanto, a metodologia pluralista e inclusiva é capaz de produzir efeitos em duas direções contrárias: ao ajudar a detectar inconsistências numa teoria classificada de realista, a referida metodologia pode levar a teoria a ser considerada não realista; inversamente, ao promover o desenvolvimento ou a retificação de uma teoria inicialmente qualificada de não realista, a metodologia pluralista pode fazer com que tal teoria passe a ser considerada realista. Nos dois casos, a metodologia pluralista e inclusiva enriquece o conhecimento científico.

            Levando em conta os parágrafos precedentes, é possível discernir outras duas características do realismo implicado na concepção de ciência de Feyerabend. Na perspectiva desse realismo, a concepção de realidade contida em toda teoria é, ao menos em potência, alterável e, portanto, provisória. Ademais, como essa alteração pode ocorrer pela descoberta de inconsistências (o que pode levar uma teoria considerada realista a ser qualificada de não realista) ou, ao contrário, pela retificação e pelo desenvolvimento (o que, inversamente, pode levar uma teoria considerada não realista a ser qualificada de realista), então também a classificação de uma teoria (em realista ou em não realista) é, ao menos em potência, alterável e provisória. Assim, tanto as concepções de realidade quanto a classificação dessas concepções de realidade são, ao menos em potência, alteráveis e provisórias. Nesse ponto, o realismo implicado pela concepção de ciência de Feyerabend se opõe a um realismo fixista, que admita como possível ou alcançada uma concepção definitiva da realidade.

            Em resumo, portanto, o modo como Feyerabend compreende a ciência implica uma concepção de realismo que considere a realidade como multívoca, isto é, como capaz de suscitar concepções de realidade diversas e divergentes, mas aceitáveis. Além disso, esse realismo é pluralista e inclusivo, na medida em que valoriza as concepções diversas e divergentes de realidade na elaboração do conhecimento do mundo. Na perspectiva desse realismo, ademais, toda concepção de realidade é incompleta, incoerente, composta de elementos despercebidos, ao menos potencialmente alterável e, por isso, provisória.

            Esse realismo se opõe a uma concepção de realismo que considere a realidade como unívoca, isto é, como suscetível de acomodar uma única concepção válida de realidade. Opõe-se ainda a um realismo que, admitindo uma única concepção válida de realidade, seja excludente em relação às outras concepções de mundo e uniformizador. Opõe-se, por fim, a um realismo que assuma como obtenível ou obtida uma concepção de realidade completa, absolutamente coerente e definitiva.

            Embora os adeptos desse realismo proscrito por Feyerabend possam, franca ou astuciosamente, apresentar sua concepção de mundo como sendo a única legitimamente válida, completa, totalmente coerente e definitiva, Feyerabend frisa que tal realismo é produto de circunstâncias e interesses específicos. A nosso ver, é contra semelhante realismo que Feyerabend (1981e, p. XI) afirma que “[...] realismo apenas reflete o desejo de certos grupos de ter suas ideias aceitas como as fundações de uma civilização inteira e até da vida ela mesma”.

            Parece-nos que, para Feyerabend (1999 [1975b], p. 182-183), esse realismo por ele proscrito corre o risco de incorrer em[...] compromisso com a Verdade de uma ideologia”, que implica sua “defesa dogmática”. Segundo Feyerabend, porém, todas as ideologias, inclusive a ciência, contêm mentiras. Se entendida literalmente, se considerada como “a Verdade” e se (im)posta como exclusiva, uma ideologia se torna totalitária, chauvinista e opressora no âmbito do conhecimento e na sociedade. Por outro lado, nuança Feyerabend (1999 [1975b], p. 188), se colocada em perspectiva e se conviver com outras, uma ideologia pode ser libertadora.

 

Conclusão

            É multifacetada a posição de Feyerabend quanto ao realismo e ao antirrealismo.

            Na primeira e na segunda seções deste artigo, tentamos fazer ver que as reflexões de Feyerabend sobre realismo e antirrealismo se referem a três objetos diferentes: a existência do mundo; o estatuto do conhecimento do mundo; o ideal orientador da elaboração do conhecimento do mundo. Além disso, de acordo com o objeto a que se refira, a posição realista ou não realista adquire três significados diferentes. Ora, as posições realistas e antirrealistas de Feyerabend, bem como os sentidos delas, variam conforme os diferentes objetos. No que tange à existência do mundo, Feyerabend assume uma posição realista, pois estima razoável admitir que existe um mundo independente de quem busque conhecê-lo. Já no que tange ao estatuto do conhecimento do mundo, Feyerabend coloca-se como antirrealista, julgando impossível um conhecimento adequado àquele mundo. Por fim, no que concerne ao ideal orientador da elaboração do conhecimento do mundo, Feyerabend prescreve o realismo, isto é, a busca por um conhecimento coerente, que possa ser considerado como se fosse descrição da realidade. Além de diferenciar três objetos e três sentidos de realismo, as reflexões de Feyerabend ocorrem em dois níveis diferentes e hierarquizados. O antirrealismo quanto ao estatuto do conhecimento situa-se num nível fundamental e incancelável, no qual o antirrealismo, entendido em sentido forte e estrito, significa a impossibilidade de adequação do conhecimento à realidade tal como ela existe independentemente de quem busque conhecê-la. Já o realismo adotado como ideal norteador do conhecimento situa-se num segundo nível, em que se entende realismo, em sentido enfraquecido e amplo, como mera coerência. Combinados os dois níveis, tem-se a ideia de que se deve buscar um conhecimento coerente, o qual, todavia, não corresponderá ao mundo tal como ele existe independentemente do cognoscente.

            Assim, procuramos fazer notar que, multifacetadas, as reflexões de Feyerabend diferenciam, no tocante ao realismo, pelo menos três objetos, três significados e dois níveis de análise hierarquizados. Essas diferenciações permitem a Feyerabend assumir posições realistas e não realistas sem contradição, já que tais posições dizem respeito, a cada vez, a um objeto diferente, a um significado diferente e a um determinado nível de reflexão.

            Por fim, na terceira seção deste artigo, examinando a concepção de ciência de Feyerabend, discernimos características do realismo que o autor prescreve como ideal orientador da elaboração do conhecimento. Inversamente, identificamos também características do realismo proscrito por Feyerabend. Tentamos evidenciar que a concepção de ciência de Feyerabend implica uma concepção de realismo que considere a realidade como multívoca, ou seja, apta a suscitar concepções de realidade variadas, mas aceitáveis. Além disso, esse realismo é pluralista e inclusivo, já que, na elaboração do conhecimento do mundo, valoriza essas concepções variadas de realidade. De acordo com esse realismo, toda concepção de realidade é incompleta, incoerente, composta de elementos despercebidos, ao menos potencialmente alterável e, por isso, provisória. Esse realismo prescrito por Feyerabend se opõe a um realismo que considere sua concepção de mundo como a única legitimamente válida, como completa, como totalmente coerente e como definitiva. Em vez de favorecer a diversidade, como é o caso do realismo implicado na concepção de ciência de Feyerabend, esse outro realismo tende ao dogmatismo e à uniformidade.

            Como se percebe, o antirrealismo de Feyerabend não consiste apenas em assumir posições não realistas e, assim, em situar-se fora do realismo. O antirrealismo de Feyerabend significa também, no interior do âmbito realista, opor-se a um determinado tipo de realismo, dogmático, excludente e uniformizador, em favor de outro realismo, não dogmático, inclusivo e propiciador da diversidade.

 

PAUL FEYERABEND: REALIST AND ANTI-REALIST

Abstract: Intensely discussed in the philosophy of science in the 20th and 21st centuries, the themes of realism and anti-realism pervade Feyerabend’s work. However, discerning the author’s position on these subjects poses a problem for scholars. One sign of this is that they attribute to Feyerabend the adherence to (or the rejection of) different conceptions of realism and anti-realism. Despite the divergences, however, scholars approach the topic in a similar way, detecting elements of Feyerabend’s realist and anti-realist positions that are incompatible with each other and that follow one another in the course of his work. Although such studies are of great value, we propose to explore another approach, which also seems pertinent. Examining Feyerabend’s writings, we seek to discern conditions that make it possible for the author to assume, without contradiction, realist and anti-realist positions. Finally, we seek to infer from Feyerabend’s conception of science features of the realism prescribed by the author as well as features of the realism proscribed by him.

 

Keywords: Paul Feyerabend. Realism. Anti-realism. Reality. Existence. Knowledge.

 

Referências

BAERTSCHI, B. Le réalisme scientifique de Feyerabend. Dialogue, v. 25, p. 267-289, 1986.

Feyerabend, P. Materialism and the Mind-Body Problem. The Review of Metaphysics, v. 17, p. 49-66, 1963a.

Feyerabend, P. Erkenntnislehre. By Viktor Kraft [Review]. The British Journal for the Philosophy of Science, v. 13, p. 319-323, 1963b.

Feyerabend, P. The Structure of Science [Review]. The British Journal for the Philosophy of Science, v. 17, p. 237-349, 1966.

Feyerabend, P. Science in a free Society. Londres: New Left Books, 1978.

FEYERABEND, P. An Attempt at a Realistic Interpretation of Experience [1958]. In: Feyerabend, P. Realism, Rationalism & Scientific Method. Cambridge: Cambridge University Press, 1981a (Philosophical Papers I. Volume I). p. 17-36.

Feyerabend, P. Realism and Instrumentalism: Comments on the Logic of Factual Support [1964]. In: Feyerabend, P. Realism, Rationalism & Scientific Method. Cambridge: Cambridge University Press, 1981a (Philosophical Papers I. Volume I). p. 176-202.

Feyerabend, P. Realism, Rationalism & Scientific Method. Cambridge: Cambridge University Press, 1981a (Philosophical Papers I. Volume I).

Feyerabend, P. Introduction: Scientific Realism and Philosophical Realism [1981b]. In: Feyerabend, P. Realism, Rationalism & Scientific Method. Cambridge: Cambridge University Press, 1981a (Philosophical Papers I. Volume I). p. 3-16.

Feyerabend, P. Introduction: Proliferation and Realism as Methodological Principles [1981c]. In: Feyerabend, P. Realism, Rationalism & Scientific Method. Cambridge: Cambridge University Press, 1981a (Philosophical Papers I. Volume I). p. 139-145.

Feyerabend, P. Problems of Empiricism. Cambridge: Cambridge University Press, 1981d (Philosophical Papers . Volume 2).

Feyerabend, P. Introduction to Volumes 1 and 2 [1981e]. In: Feyerabend, P. Problems of Empiricism. Cambridge: Cambridge University Press, 1981d (Philosophical Papers I. Volume 2). p. VII-XII.

Feyerabend, P. Realism and the Historicity of Knowledge. The Journal of Philosophy, v. 86, p. 393-406, 1989.

Feyerabend, P. Art as a Product of Nature as a Work of Art. World Futures, v. 40, p. 87-100, 1994.

Feyerabend, P. Paul K. Feyerabend: Knowledge, Science and Relativism. Editado por John Preston. Cambridge: Cambridge University Press, 1999 (Philosophical Papers I. Volume 3).

Feyerabend, P. How to Defend Society Against Science [1975b]. In: Feyerabend, P. Paul K. Feyerabend: Knowledge, Science and Relativism. Editado por John Preston. Cambridge: Cambridge University Press, 1999 (Philosophical Papers I. Volume 3). p. 181-191.

Feyerabend, P. Conquest of Abundance. A Tale of Abstraction versus the Richness of Being. Editado por Bert Terpstra. 2. ed. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2001 [1999].

Feyerabend, P. Realism [1994b]. In: Feyerabend, P. Conquest of Abundance. A Tale of Abstraction versus the Richness of Being. Editado por Bert Terpstra. 2. ed. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2001. p. 178-196.

Feyerabend, P. Historical Comments on Realism [1992]. In: Feyerabend, P. Conquest of Abundance. A Tale of Abstraction versus the Richness of Being. Editado por Bert Terpstra. 2. ed. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2001. p. 197-205.

Feyerabend, P. What Reality [1995]. In: Feyerabend, P. Conquest of Abundance. A Tale of Abstraction versus the Richness of Being. Editado por Bert Terpstra. 2. ed. Chicago/London: The University of Chicago Press, 2001. p. 206-216.

Feyerabend, P. Contra o método. Tradução de Cezar Augusto Mortari. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011 [1975a].

GARGIULO, M. T. El realismo normativo de Paul Karl Feyerabend y su defensa de la metafísica. Eidos, v. 23, p. 182-212, 2015.

HACKING, I. Representing and Intervening. Introductory Topics in the Philosophy of Natural Science. Cambridge: Cambridge University Press, 1983 (25. printing 2010).

KRAFT, V. Erkenntnislehre. Viena: Springer-Verlag, 1960.

MILL, J. S. On Liberty: Three Essays. Londres: Oxford University Press, 1971.

NAGEL, E. The Structure of Science. Problems in the Logic of Scientific Explanation. New York: Harcourt, Brace & World, 1961.

OBERHEIM, E. Feyerabend’s Philosophy. Berlim: Walter de Gruyter, 2006.

PARASCANDALO, P.; HÖSLE, V. Three Interviews with Paul Feyerabend. Telos, v. 102, p. 115-148, 1995.

PRESTON, J. Feyerabends Retreat from Realism. Philosophy of Science, v. 64, p. 421-431, 1997.

 

Recebido: 15/05/2023 - Aprovado: 25/07/2023 - Publicado: 13/11/2023



[1] Professor substituto de Filosofia no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP - Brasil. Pós-doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP – Brasil e bolsista (Pós-Doutorado Júnior) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Brasil.  ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7916-5788. E-mail: edercorbanezi@hotmail.com.

[2] Gargiulo (2015), todavia, não reduz o realismo ao realismo científico nem aborda o tema do realismo e do antirrealismo de forma disjuntiva.

[3] Nesse contexto, a noção de verdade é considerada no âmbito científico e não em outros domínios, como o jurídico. Fazendo essa diferenciação em uma entrevista concedida em 1992, Feyerabend pergunta: Para além do uso concreto da palavra verdade, a ciência tem a verdade?”. E responde:  Minha dificuldade é com a noção de verdade. Assim como todo mundo, eu entendo o que significa dizer a verdade diante de um juiz: a verdade, toda a verdade e nada senão a verdade. Isso é muito claro; espera-se que não mintamos. Espera-se que tentemos lembrar e não deixar de fora nada que possa ser relevante. Quanto à verdade na ciência, toda disciplina científica contém abordagens que conflitam entre si. [] Não apenas os métodos, mas também os resultados e as assunções básicas são diferentes em diferentes áreas das ciências. Não existe uma entidade coerente, ciência, que tenha a verdade ou que se suponha ter a verdade” (Parascandalo; Hösle, 1995, p. 120-121).

[4] Indicamos entre colchetes a data da primeira publicação dos textos. Nas “Referências”, ao final do artigo, os textos de Feyerabend são apresentados em ordem cronológica, considerando-se a primeira data de publicação.

[5] Daí não se segue que uma posição realista se apoie necessariamente em fundamentos confiáveis; ela pode ser meramente metodológica e normativa, como indica Feyerabend (1963b, p. 319-323), ao resenhar o livro Erkenntnislehre, de Victor Kraft (1960).

[6] Nos capítulos 6 e 11 de Contra o método, Feyerabend (2011 [1975a]) examina como se explicita e se desconstrói o realismo ingênuo envolvido na tese de que a Terra seria imóvel.

[7] No “Prefácio” redigido em 1987 para uma nova edição de Contra o método, Feyerabend (2011 [1987], p. 9) explicita sua filiação a esses pensadores.

[8] Ian Hacking (1983, 174 e ss.) apresenta reservas em relação à tese de Feyerabend segundo a qual observações contêm admissões teóricas.

[9] Conforme a primeira seção deste artigo, trata-se do mundo tal como podemos concebê-lo a partir de condições determinadas.

[10] Rejeitar uma teoria sem que se realizem as condições para seu desenvolvimento, assegura Feyerabend (1963a, p. 49-66), significa descartá-la precocemente.

[11] Em Contra o método, Feyerabend (2011 [1975a], p. 178) pontua que, em determinados campos da ciência, cientistas “[...] encaram todas as teorias como instrumentos de prevenção e rejeitam o falar sobre verdade como metafísico e especulativo”. Para eles, “[...] uma inferência direta de teoria a realidade é, portanto, bastante ingênua”.

[12] Sobre como as posições realistas e antirrealistas se sucedem e são incompatíveis, cf., por exemplo, Baertschi (1986) e Preston (1997). Sobre a passagem do realismo normativo e metodológico ao antirrealismo, cf. Oberheim (2006, p. 180-205).

[13] Feyerabend (2011 [1975a]) se contrapõe à tese de que a ciência é una, por exemplo, no “Prefácio à terceira edição”, na “Introdução à edição chinesa”, na “Introdução” e nos Capítulos 1, 4 e 11 de Contra o método.

[14] “Ciência não é uma coisa, é muitas, e sua pluralidade não é coerente, é repleta de conflitos. Até mesmo assuntos específicos são divididos em escolas. Eu acrescento que a maior parte das abordagens conflitantes, com seus métodos, mitos, modelos, expectativas, dogmas muito diferentes, têm resultados. Elas encontram fatos que se conformam às suas categorias (e, portanto, são incomensuráveis com os fatos que emergem de abordagens diferentes) e leis que ordenam conjuntos de fatos desse tipo. Mas isso significa que, sendo abordada de diferentes maneiras, [a] Natureza dá diferentes respostas e que projetar nela uma única resposta, como se descrevesse sua forma verdadeira, é uma triste ideia, não ciência” (Feyerabend, 1994, p. 97). Em vários textos da década de 1990, Feyerabend afirma que a realidade — também denominada “Ser” (2001 [1992], p. 205), “Natureza” (2001 [1994b], p. 195), “Realidade Última” (2001 [1995], p. 214) ou “Realidade Básica” (2001 [1995], p. 215) — responde a diversas abordagens (inclusive não científicas) bem-sucedidas. Ele assegura ainda que formas de vida e de interesse é que determinam as concepções de realidade, de modo que diferentes formas de vida e de interesse implicam diferentes concepções de realidade — nem todas bem-sucedidas, cumpre advertir. É um erro identificar uma concepção particular da realidade com a realidade última. E muitos cientistas, na visão de Feyerabend (2001 [1995], p. 214), cometem esse erro.

[15] Sobre as posições de Feyerabend (2011 [1975a]) articuladas neste parágrafo, cf. os Capítulos 2, 3, 4, 5 e 11 de Contra o método.

[16] As ideias de Feyerabend (2011 [1975a]) relacionadas neste parágrafo estão presentes nos Capítulos 2, 3, 4, 5, 11 e 13 de Contra o método.

[17] Amiúde, Feyerabend (1999 [1975b], p. 181-191) se apoia em On Liberty, de John Stuart Mill (1971 [1859]), para argumentar em favor de conservar, aprimorar e comparar diferentes posições, em vez de descartá-las.

[18] Cf. Feyerabend, 2011 [1975a], Prefácio”,Introdução à edição chinesa” e Capítulos 3, 4, 5, 13, 14 e 15.

[19] Sobre o caso da visão de mundo copernicana, cf. Feyerabend, 2011 [1975a], capítulos sexto ao décimo.