O Homo Profanum e a potência do uso: uma proposição conceitual a partir de Giorgio Agamben[1]

 

Caio Paz[2]

 

Resumo: Este artigo pretende apresentar uma proposição conceitual a partir dos escritos do filósofo italiano Giorgio Agamben. Uma das noções centrais na filosofia política dele é a de Homo Sacer, utilizada como figura paradigmática para tecer críticas à violência do direito. A partir disso, neste artigo, propõe-se um jogo com essa noção, por intermédio do sintagma Homo Profanum. Esse jogo está referido ao papel que o conceito de profanação tem, no pensamento ético agambeniano. Por meio dessa proposição conceitual, mostra-se como Agamben realiza uma crítica à tradição e à maneira como ela concebeu a noção de sujeito. Além disso, ressalta-se também como, através dos conceitos de potência e uso, o filósofo italiano oferece apontamentos para abrir o horizonte ético da modernidade. Assim, caracteriza-se a figura que se chama de Homo Profanum, com base no modo como o filósofo italiano concebe as noções de ingovernável, de uso e de forma-de-vida, que, orbitando em torno do conceito de potência, formam uma constelação conceitual a partir da qual Agamben faz indicações para pensar sua ética da profanação.

 

Palavras-chave: Homo Profanum. Potência. Uso. Sujeito. Ética.

 

 

Introdução

            Em “O que é um dispositivo?”, Giorgio Agamben afirma: “As questões terminológicas são muito importantes para a filosofia. Como disse uma vez um filósofo por quem tenho o maior respeito, a terminologia é o momento poético do pensamento” (2009, p. 27). Gostaria de partir dessas palavras para tratar o problema do sujeito, no pensamento dele. Talvez a formulação mais adequada para introduzir a questão seja a seguinte pergunta: o sujeito é efeito de um conjunto de práticas históricas de sujeição ou, antes, aquele que cria, age e rompe historicamente essas práticas? A dificuldade de responder a essa pergunta se deve ao fato de ela ser, como escreveu Butler (2017, p. 22-23), “[...] uma pedra de tropeço inevitável da teoria social”. Acolhendo a dificuldade dessa questão, penso que o conceito de Homo profanum ajuda a compreender a maneira como a questão do sujeito é tratada pelo filósofo italiano. Essa noção, que não está presente nos escritos agambenianos, mas que estou propondo, neste artigo, é uma tentativa de realizar uma experiência poética do pensamento.

            Na obra de Agamben, a palavra “poético” pode assumir diferentes significados. Um deles seria aquele que o filósofo italiano apresenta. em O homem sem conteúdo, no qual a palavra “poética” é tomada como uma tradução de poiesis e, desse modo, um dos seus significados seria produzir (Agamben, 2012b, p.117). Por um lado, este é um dos sentidos da “experiência poética do pensamento” a que fui conduzido pela expressão Homo Profanum, o qual não aparece em nenhum dos textos de Agamben, mas que formulei para melhor explicitar o problema ético do sujeito, no seu pensamento. No entanto, em vez de entendermos por “poético” apenas criação, gostaria que avançássemos em direção a outro significado, que tem a ver com a relação entre verso e prosa, sobre a qual encontramos a seguinte formulação:

A versura, que, embora não seja referenciada nos tratados de métrica, constitui o cerne do verso (e cuja manifestação é o enjambement), é um gesto ambíguo que se orienta ao mesmo tempo para duas orientações opostas, para trás (verso) e para diante (prosa). Essa suspensão, essa sublime hesitação entre sentido e som, é uma herança poética que o pensamento deve levar até o fim (Agamben, 2012a, p. 31-32).

 

O enjambement é a manifestação do verso, porque ele é, no poema, a partição de uma frase sem respeitar as suas fronteiras sintáticas; refere-se, portanto, ao efeito de “encavalgamento” que se produz de um verso para o outro. Do ponto de vista estrutural, o enjambement não é possível na prosa, ele é, antes, uma ideia de prosa (Magalhães, 2018, p. 167). Para Agamben, o enjambement traz à luz o hibridismo de todo discurso humano, o qual não é nem totalmente poético nem totalmente prosaico. É a partir dessa caracterização que Danielle Magalhães articula o verso e o anjo da história de Walter Benjamin:

O gesto do verso me faz lembrar do anjo da história de Benjamin, cujo corpo é impelido para frente, com os olhos, porém, presos à catástrofe que se acumula atrás. Impelido para frente, “vira as costas”, porém, para isso que se apresenta à frente. O anjo da história é um gesto em torção, um corpo torcido, instaurado no impasse. É nesse impasse e nessa torção que ele é o anjo da história. Ele não salva o futuro, ele é arrastado, sem escolha, pela tempestade do futuro que chega a galope, ao mesmo tempo em que encara fixamente o que está às suas costas: que não é uma “cadeia de acontecimentos”, uma série, mas, ao contrário do que vemos, uma “catástrofe única”, irredutível. Penso o desastre do verso como o gesto do anjo da história, esse que também está inclinado para o desastre (Magalhães, 2018, p. 168).

 

Essa articulação permite que possamos vislumbrar a experiência poética do pensamento, aqui referida pelo verso, não simplesmente como criação – isto é, a produção de um conceito –, mas também como aquela experiência que nos coloca, em um movimento para trás, em contato com que está às nossas costas. Esse movimento, tal como o do anjo da história, possibilita olharmos as catástrofes do passado, para torná-lo novamente possível. Por isso, benjaminianamente, Agamben pode situar o canteiro conceitual de sua arqueologia filosófica no tempo do agora, no qual [...] o passado (o acabado) reencontra atualidade e se torna inacabado e o presente (o inacabado) adquire uma espécie de completude” (Agamben, 2016, p. 92). A partir disso, é possível afirmar que o termo Homo Profanum realiza uma experiência poética do pensamento, uma vez que, através dele, é possível apresentar os “escombros” que as diferentes concepções de sujeito produziram. Agambenianamente, essa produção não significa outra coisa senão a impraticabilidade de uma experiência ética. Mais precisamente, o sintagma Homo Profanum permite indicar a profanação do sujeito que está em jogo nas proposições éticas de Giorgio Agamben.

 

1 A profanação do sujeito

No pensamento de Agamben, a profanação define o gesto por excelência da ética agambeniana, cujo propósito é questionar os sentidos canônicos daquilo que a tradição transmitiu e sacralizou. Para ele, sacralização, religião, secularização se opõem à profanação, assim como também a exceção se opõe ao exemplo. A principal característica da exceção é a captura do seu fora, ou seja, o que o mecanismo excepcional exclui ou separa não configura uma mera exclusão ou separação. De modo simétrico, a separação perpetrada pela religião, isto é, a sacralização, se deve à meticulosidade que os homens devem observar com as coisas entregues aos deuses. A partir disso, pode-se perceber que o que foi separado não foi simplesmente excluído das relações humanas.

Ao contrário, por determinar certo tipo de comportamento, por imprimir uma subtração da negligência no comportamento dos homens, a religião, ao mesmo tempo que separa, governa e dirige os gestos humanos. A relação consiste justamente em manter separado, em garantir a observância cuidadosa que se deve ter, para manter as coisas sagradas em seu devido lugar. De maneira diversa, a profanação se identifica com o funcionamento do exemplo. O exemplo é simetricamente oposto à exceção. A simetria se deve ao fato de ele mobilizar, assim como ela, a inclusão e a exclusão, o dentro e o fora, mas a oposição aparece justamente no modo como essas dimensões são mobilizadas e articuladas. Enquanto a religião exclui as coisas do uso comum para, assim, fazer com que elas sejam incluídas na esfera religiosa, a profanação inclui as coisas novamente no uso comum, todavia, ao fazê-lo, exclui os sentidos que elas tinham antes de serem sacralizadas. Isso significa que, mesmo devolvido ao uso comum, o que foi profanado não tem o seu uso anterior restituído, pois a restituição ao uso provocada pela profanação faz emergir um novo uso (Agamben, 2009, p. 67-68).

Se, nesse sentido, para Agamben, a religião é o domínio que procura estabelecer um governo total sobre a vida e as ações humanas, a profanação é, precisamente, o gesto que abre espaço para o ingovernável.  Por isso, Agamben faz um “acerto de contas” com Foucault, já que, para o primeiro, uma experiência ética implica a profanação dessas atividades de governos e, para o segundo, ela se dá como “governo de si”. Assim, o filósofo italiano estabelece uma correspondência entre a estrutura da governamentalidade e a lógica excepcional da política ocidental, sustentando que a dicotomia entre governante e governado, soberano e súdito, é uma marca daquilo que a transmissão da tradição ocidental nos legou. Nessa perspectiva, para Agamben, o pensamento foucaultiano estaria preso a essa cisão do sujeito, a qual pode ser identificada com uma figura central nos seus escritos políticos, o Homo sacer.

O sintagma Homo Sacer tem um sentido estratégico no pensamento político agambeniano, porque traz à luz a conexão entre a vida nua e o poder soberano. Essa conexão, por sua vez, é simétrica à homonímia implicada na palavra sujeito, que, por um lado, se refere ao portador de um “poder soberano”, que legisla universalmente sobre as condições de apreensibilidade do mundo, aquele que “mata” o caráter coisal do mundo com a sua palavra. Por outro, a noção de sujeito está relacionada àquele que sofre uma sujeição, ou seja, àquele que aparece enquanto tal, mediante um processo de subjetivação, ao qual corresponde imediatamente um processo de dessubjetivação.

A estratégia argumentativa do filósofo consiste em conduzir o problema do sujeito ao jogo entre subjetivação e dessubjetivação, a fim de exibir a cisão-articulação a partir da qual a noção de sujeito foi concebida. Além disso, ela busca também abrir um horizonte ético que não esteja referido nem a uma concepção de um sujeito soberano, isto é, a uma pré-condição de toda a experiência possível, nem simplesmente ao resultado da sujeição a um processo de subjetivação. À concepção kantiana de um sujeito transcendental como condição a priori de conhecimento corresponde uma ética do dever, na qual não há outro caminho senão a formulação de um princípio universal para a ação humana. Opondo-se a essa concepção, ao longo dos anos 1970, Foucault procurou depor a soberania desse sujeito, pensando-o como efeito de uma série de processos de subjetivação que não eram outra coisa senão práticas de sujeição. No entanto, nos cursos conduzidos no Collège de France, no início dos anos 1980, e publicados anos depois, o foco de seus estudos se deslocou para os processos de subjetivação, os quais, ao invés de produzir um sujeito por meio de práticas de sujeição, o produziam por práticas de liberação, também chamadas de práticas de si.

Em O uso dos corpos, Agamben parte da compreensão foucaultiana segundo a qual o sujeito se constitui por meio de uma prática de si e identifica no filósofo francês uma aporia, que é, na verdade, de acordo com ele, a aporia na qual está fundada a tradição ocidental. Para o filósofo italiano, essa aporia se refere ao problema do fundamento pressuposto. Na perspectiva agambeniana, a tradição filosófica fundada por Aristóteles distinguiu as ousiai primeiras das segundas. Na leitura que Agamben faz das formulações aristotélicas sobre a ontologia, a ousia primeira é o hypokeimenon, o existente que não é dizível, mas que, ao ser pressuposto, garante a dizibilidade dos seus atributos, a ousia segunda. Decisivo na argumentação de Agamben não é apenas que a ontologia se tornou possível pela cisão do ser em duas ousiai, mas também que o pressuposto funcione conforme a lógica da exceção, que captura o seu fora. É a essa estrutura pressuponente a que Agamben remete o problema da constituição do sujeito, o qual, para ele, pode ser pensado também a partir da distinção entre poder constituinte e poder constituído.

Nesse sentido, agambenianamente, seria possível dizer que o sujeito foucaultiano resulta constituído das práticas de si, que agem de modo constituinte. Certamente, Foucault afirmou que o sujeito não tem nenhuma consistência substancial, que ele coincide apenas com essa relação de constituir a si e que é nela imanente. No entanto, para Agamben, essa formulação foucaultiana coloca o seguinte problema: “[...] como esse si, que nada mais é que uma relação, pode constituir-se sujeito das próprias ações a fim de governá-las?” (2017c, p. 130). Para o filósofo italiano, se o “si” corresponde à relação, ele não pode se identificar nem com o sujeito que constitui (cria) nem com o sujeito que resulta constituído (criado) por essa relação. Em decorrência disso, Agamben (2017c, p. 130) escreve:

Para a relação entre si e o sujeito moral, acontece algo semelhante ao que Sartre descrevia a respeito da relação entre a consciência e o ego: o si, que constituiu o sujeito, deixa hipnotizar-se e reabsorver nela e por ela. Ou, ainda, aquilo que, segundo Rudolf Boehm, acontece na cisão aristotélica entre essência e existência: estas que deveriam definir a unidade do ser, em última análise, o cindem em uma essência inexistente e uma existência inessencial, remetendo incessantemente uma à outra e caindo sem fim uma fora da outra. Sendo assim, si e sujeito estão ligados circularmente em uma relação constituinte e, ao mesmo tempo, justo por isso, se encontram na impossibilidade de coincidirem uma vez por todas. O sujeito, que deve governar e conduzir suas ações numa forma de vida, se constituiu numa prática de si que nada mais é do que essa constituição e essa forma de vida.

 

Agamben vê na saída foucaultiana a repetição da estrutura de cisão-articulação da tradição e, desse modo, mesmo que ele procure depor a soberania do sujeito, pensando-o como resultado de processos de subjetivação, ele acaba repetindo-a. Isso está relacionado à dimensão ética na qual está implicada essa prática de si. O argumento agambeniano é que essa cisão se dá, no pensamento foucaultiano, por ele não ter levado para o plano da ética todas as consequências da perfeita imanência entre as práticas de si e o sujeito. Para o filósofo italiano, a imanência do sujeito à prática de si se esvai, devido à compreensão foucaultiana da ética como governo de si. A aporia que Agamben atribui a Foucault é a manutenção, por meio da noção de governo, da estrutura originária da subjetividade, de um lado, o soberano, e do outro, o súdito. Essa estrutura é simétrica à lógica da soberania, a qual cinde e articula o poder soberano e a vida matável do Homo sacer. Por isso, as proposições éticas de Agamben evocam um ingovernável.

Se a ética agambeniana se dirige à ingovernabilidade, o sintagma “sujeito ético”, que o filósofo emprega, não apenas em O uso dos corpos, mas também em “O autor como gesto”, significa uma profanação da relação de governo que conecta e separa soberano e súdito. Nesse sentido, à absoluta matabilidade do Homo Sacer produzida pela lógica da soberania, Agamben responde com a dissociação entre governo e ética, dando lugar a uma ingovernável ética do uso, a partir da qual é possível falar em um Homo Profanum. Mais explicitamente: o “sujeito ético” agambeniano é um Homo Profanum, na medida em que ele exibe e desloca o que o filósofo chama de estrutura originária da subjetividade. Se a profanação é aquela atividade ética que abre a um novo uso o que havia sido separado pelo processo de sacralização, é possível sustentar que Agamben profana a maneira como o problema do sujeito foi tratado pela tradição.

Para Agamben, do hypokeimenon aristotélico ao sujeito transcendental de Kant, o que se manteve de forma sacralizada é o lugar do sujeito como fundamento pressuposto. O gesto profanatório evocado pelo pensamento agambeniano consiste em exibir os pressupostos do que foi sacralizado e canonizado pela tradição, de sorte a abri-lo a novos usos possíveis. Desse modo, é importante destacar que é com a noção de uso que Agamben apresenta uma definição de “sujeito ético”, segundo a qual “[...] ‘usar o corpo’, significará a afeição que se recebe enquanto se está em relação com um ou mais corpos. Ético – e político – é o sujeito que se constitui nesse uso, o sujeito que dá testemunho da afeição que recebe enquanto está em relação com um corpo” (Agamben, 2017c, p. 48). Esse sujeito que se constitui no uso dá testemunho da sua própria dessubjetivação, do próprio desconcerto e da desapropriação de si. Compreendendo o uso de maneira singular, Giorgio Agamben questiona a centralidade da noção de ação para a política e propõe substituí-la pela noção de uso.

Nessa perspectiva, o “uso do corpo” não é a dimensão na qual um sujeito se assenhora de si para comandar despoticamente o seu corpo e as suas ações, mas o lugar onde ele encontra um limite para esse assenhoramento. Para o filósofo, no uso do corpo, o sujeito testemunha o seu próprio desconcerto, fazendo aparecer, na intimidade, a vergonha que o expõe ao que não pode ser apropriado. A eticidade desse sujeito profanado, do Homo Profanum, consiste justamente na inapropriabilidade que o uso do corpo traz à luz. É precisamente essa dimensão inapropriável que torna possível articular a profanação do sujeito à potência, que é um conceito fundamental do pensamento agambeniano. Há, portanto, uma íntima relação entre inapropriabilidade e a ingovernabilidade, já que o poder não consegue governar o que não pode ser apropriado por ele. Essa articulação ajuda a melhor caracterizar essa profanação do sujeito que chamo de Homo Profanum, uma vez que a ruptura do paradigma de governo e da apropriação permite compreender outras duas dimensões fundamentais para ele, o uso e a vida.

Em “O que é um dispositivo?”, a noção de ingovernável aparece explicitamente articulada ao gesto ético da profanação. Nessa passagem, o filósofo escreve:

O problema da profanação dos dispositivos – isto é, da restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e separado nesses – é, por isso, tanto mais urgente. Ele não se deixará colocar corretamente se aqueles que dele se encarregarem não estiverem em condições de intervir sobre os processos de subjetivação, assim como sobre os dispositivos, para levar à luz aquele Ingovernável, que é o início e, ao mesmo tempo, o ponto de fuga de toda política (Agamben, 2007, p. 50-51, grifo meu).

 

Destaco a última frase da passagem, para evocar o seguinte problema: se o ingovernável é o ponto de fuga, mas também o início de toda política, como é possível pensar o seu estatuto em função das formulações agambenianas acerca da homonímia presente no vocábulo arché? Mais explicitamente: se a arché é aquilo que inicia e, ao mesmo tempo, aquilo que comanda o destino da tradição, qual o sentido de colocar a noção de ingovernável nesse lugar? Remeter o ingovernável ao lugar de início não faz com que essa noção repita o gesto que o filósofo insistentemente denuncia na tradição?

Há uma passagem, em “Che cos’è un comando?”, que ajuda a desenvolver os problemas suscitados por essas questões:

[...] na tradição filosófica e nas ciências humanas [...] existe um nexo constitutivo entre a origem de algo e a sua história, entre isto que funda e inicia e isto que guia e governa. Nesse sentido, pense-se na função decisiva que o conceito de Anfang, “início”, tem no pensamento de Heidegger. O início não pode aqui nunca se tornar um passado, não cessa nunca de ser presente, porque ele determina e comanda a história do ser.  [...] Gostaria somente de mencionar aqui o fato que o problema da conexão entre origem e comando produziu no pensamento pós-heideggeriano dois interessantes desenvolvimentos. O primeiro – que poderíamos definir a interpretação anárquica de Heidegger – é o belo livro de Reiner Schürmann, Le principe d’anarchie (1982), que é uma tentativa de separar origem e comando, para alcançar algo como uma pura origem, um simples “vir à presença” separado de todo comando. O segundo – que não será ilegítimo chamar de interpretação democrática de Heidegger – é a tentativa de Jacques Derrida de neutralizar a origem para alcançar um puro imperativo, sem outro conteúdo senão a injunção: interpreta! (A anarquia sempre me parece mais interessante que a democracia, mas nem é preciso dizer que todos são livres para pensar como acreditam) (Agamben, 2017b, p. 94-95, grifo meu).

 

Seria enganoso tomar a preferência agambeniana pela leitura anárquica de Heidegger, feita por Reiner Schürmann, como apontamento seguro de sua posição sobre o ingovernável. Em O uso dos corpos, Agamben afirma explicitamente que o gesto de Schürmann de separar na arché princípio e comando foi insuficiente, pois, conforme o filósofo italiano, ainda que este tenha procurado pensar a anarquia, ele o fez evocando um “princípio da anarquia”. No entanto, na perspectiva agambeniana, a anarquia não pode ser um princípio ou início (2017c, 307-308).

Recorrendo a uma formulação benjaminiana, segundo a qual não há nada mais anárquico que a ordem burguesa, Agamben a complementa com as palavras de uma das personagens do filme Salò, de Pasolini, em que um dos hierarcas afirma: “[...] a verdadeira anarquia é a do poder”. Agamben retoma essas afirmações, para sustentar que a relação entre o poder (o governo) e a anarquia (o ingovernável) não é outra senão a ex-ceptio, isto é, uma relação de exclusão inclusiva. O governo precisa pressupor o ingovernável e, ao mesmo tempo que o pressupõe como a origem de onde provém, ele o “contém”. O sintagma Homo Profanum se refere à profanação do poder, isto é, à dissolução da captura e da contenção que o poder faz da anarquia, a qual, assim capturada, se estabelece pela limitação do caráter anárquico da potência.

A proposta agambeniana de substituir a primazia da ação na esfera política pela do uso está diretamente ligada à liberação dessa dimensão anárquica da potência. De acordo com o filósofo, a centralidade da ação serviu não apenas para ofuscar o papel da potência, na esfera prática, como também levou à produção de um dispositivo da finalidade. Por seu turno, este funciona a partir da absoluta oposição entre meios e fins, instaurando, com isso, um círculo vicioso com base no qual as ações humanas estão irrevogavelmente fadadas ao cumprimento de um destino. O objetivo de Agamben, ao propor que a ação seja substituída pelo uso na reflexão política, é, a um só tempo, questionar a oposição absoluta de meios e fins e restituir à potência o seu lugar na política. Para ele, o uso habitual é a maneira como a potência deixa de ser destinada à ação e, assim, aparece no seu sempre já estar em uso. No entanto, se a ética agambeniana é uma ética do uso, esse uso não se confunde com a utilidade e nem com a instrumentalidade, que, segundo o filósofo, determinam o modo como o homem moderno entende o seu fazer. Se assim fosse, o uso seria um meio para um fim.

Dessa forma, o uso é purificado, no sentido que Walter Benjamin empresta à palavra “puro”, nos ensaios “Para uma crítica da violência” e “Sobre a linguagem em geral, e sobre a linguagem do homem”. O uso é puro, não porque é um meio para um fim (mittel), um instrumento, porém, porque é um meio (medium) sem fim. Essa nova figura do uso, esse novo uso, não é outra coisa senão aquilo que Agamben chama frequentemente de contradispositivo ou, ainda, de profanação. Acerca desse novo uso que resulta da profanação, Oswaldo Giacoia Jr. escreveu: “Trata-se de uma tentativa de desativação de procedimentos e comportamento cristalizados, atrelados de uma forma rígida a uma finalidade inveterada, liberando-os para a invenção, necessariamente coletiva (vale dizer, política) de novos usos” (Giacoia Jr, 2018, p. 171).

É através da profanação que a matável vida nua, figura paradigmática que Agamben não cessa de exibir, no seu diagnóstico sobre o mundo ocidental, perde a sua efetividade. Com isso, ele procura deslocar a maneira como a tradição atuou sobre a vida, indicando uma vida inseparável da sua forma, isto é, uma vida em que não se pode isolar algo como a vida nua. Trata-se, para o filósofo, de ressaltar que a vida nunca se reduz inteiramente a fatos, mas que ela é sempre e sobretudo possibilidades (Agamben, 2017c, p. 233). O problema do sujeito está associado à questão da vida, porque, em ambos os casos, está em jogo a questão do poder como governo ou como sujeição. Mais explicitamente: uma forma-de-vida não é a vida cuja liberação do desnudamento pode ser atribuída à ação de um sujeito soberano. A dimensão potencial da forma-de-vida implica a profanação daquela estrutura originária da subjetividade, identificada com os dois polos evocados pela figura do homo sacer, a sujeição e a soberania. Com isso, a forma-de-vida pressupõe uma profanação do sujeito. Ela é, na verdade, um novo uso da vida. Isso se coaduna com o que afirmou Stefano Marchesoni, em “Dell’inappropriabile: Agamben e la deposizione del soggetto”: “Forma-de-vida não é nem um sujeito nem uma substância, mas sim um certo modo de estar na linguagem, de fazer uso dela” (Marchesoni, 2017, p. 125). Nessa linha, ele ressalta o seguinte: “Se a vida nua é uma vida separada da própria potência, reduzida à mera cobaia sobre a qual o biopoder atua os seus experimentos, a forma-de-vida se configura como aquela instância que, por ser improdutiva e inoperosa, desarticula os dispositivos agidos para geri-la” (Marchesoni, 2017, p. 125).

As três dimensões mencionadas anteriormente, a saber, a ingovernabilidade, o uso e a forma-de-vida constituem esse âmbito ético que caracterizo por meio do sintagma Homo Profanum, já que todos eles resultam da atividade profanatória que restitui a potência daquilo que havia sido contido ou capturado pelo poder.

 

2 A potência e o uso

No pensamento de Giorgio Agamben, a questão do sujeito está vinculada à maneira como o filósofo trata a vida enquanto problema filosófico e ao modo como ela se vincula à questão do ser. Em ambos os casos, ele retoma algumas formulações aristotélicas para sustentar o seu elogio à potência. Como pretendo demonstrar a seguir, isso ocorre porque essas questões agambenianas são formuladas a partir de uma releitura da forma como Aristóteles pensou o problema ontológico da potência e da sua relação com o ato. Para iluminar essa relação, é preciso evocar duas formulações de Agamben. Uma delas está presente não apenas em O que resta de Auschwitz, mas também em O uso dos corpos. Trata-se, na verdade, de uma afirmação de Aristóteles, em De anima, retomada pelo filósofo italiano no contexto de suas investigações, segundo a qual “[...] ser, para todos os seres vivos, é viver” (Aristóteles, 2013, p. 51). Em O uso dos corpos, Agamben sustenta que essa afirmação aristotélica foi feita pelo estagirita de maneira cursiva (2017c, p. 247). Nesse caso, isso significa que não lhe foi dada a atenção que a tradição depois veio a lhe conferir. Já em O que resta de Auschwitz, o filósofo interpreta a afirmação de Aristóteles, sustentando que ela significa: “Que o ser se dá em modalidades [...], que ele implica um sujeito vivente” (Agamben, 2008, p. 148).

A outra formulação agambeniana que gostaria de destacar está presente no texto “Che cos’è un comando?”, no qual ele assevera que a filosofia se define como a “ciência do ser”, mas, logo em seguida, acrescenta: “[...] isto só é verdadeiro sob a condição de se precisar que o ser é sempre pensado segundo as suas modalidades, isto é, que ele é sempre já dividido em ‘possibilidade, contingência, necessidade” (Agamben, 2017b, p. 108). Integrando essas duas formulações, é possível compreender a estratégia agambeniana de propor uma redefinição das categorias modais, para tratar o problema do sujeito, no último capítulo de O que resta de Auschwitz. Para ele, estas não são categorias lógicas que estruturam uma faculdade de conhecimento de um sujeito transcendental ou universal, mas sim operadores ontológicos.

Em outras palavras, não é no sujeito e nem a partir dele que essas categorias encontram seu fundamento, mas, em vez disso, o sujeito é “[...] o que se põe em jogo nos processos em que elas interagem. Elas cindem e separam em um sujeito o que ele pode do que ele não pode, o ser vivo em relação ao ser que fala” (Agamben, 2008, p. 148).  Com isso, Agamben concebe as categorias modais como operadores da subjetivação e operadores da dessubjetivação. Enquanto a possibilidade (poder ser) e a contingência (poder não ser) são compreendidas como operadores da subjetivação, a impossibilidade (não poder ser) e a necessidade (não poder não ser) são concebidas como operadores da dessubjetivação.

O filósofo italiano conduziu o problema do sujeito à tensão entre uma subjetivação e uma dessubjetivação. Para definir esses dois polos dos quais resulta o sujeito, Agamben evoca uma questão fundamental, em suas obras: o problema da divisão interna da potência. Antes de avançar sobre o significado dessa redefinição proposta por ele, é importante evocar e ressaltar essa divisão interna da potência como um ponto nodal do seu pensamento. A referência agambeniana para o tratamento dessa questão é a formulação de Aristóteles frente aos megáricos, segundo a qual o estagirita busca definir o âmbito da potência. O argumento do filósofo grego visava a questionar a ideia megárica de que só se podia conhecer a potência no ato.

Nesse sentido, Aristóteles divide a potência em um poder passar ao ato e um poder não passar ao ato, a fim de justificar ontologicamente a sua existência. É pela observação aristotélica de que a potência é aberta aos seus contrários que Agamben define a sua posição em relação à filosofia de Aristóteles e à herança que ela transmitiu à tradição. Em outras palavras, a filosofia agambeniana é inteiramente atravessada pela questão da potência e, nessa perspectiva, o pensamento do italiano poderia ser compreendido como uma retomada e um desenvolvimento (Entwicklungsfähigkeit) desse problema.

Se, por um lado, Agamben retoma do filósofo grego a divisão interna da potência, por outro, ele desenvolve a questão de um modo diverso.  O filósofo italiano argumenta que, na filosofia aristotélica, apesar de a divisão interna da potência garantir a esta uma realidade ontológica, o seu destino não é outro senão a realização em ato. No entanto, diferente dos megáricos, ele sustentou que a potência tinha uma existência, mesmo se não estivesse em ato. Segundo o argumento aristotélico, tal como reconstruído por Agamben, há, porém, uma distinção entre uma potência genérica e uma potência de quem tem uma héxis (hábito).[3] Enquanto, no primeiro caso, ela se refere à possibilidade de uma criança, por exemplo, vir a ser um arquiteto ou um chefe de Estado, no segundo, ela concerne àqueles que têm a héxis de um saber. Esta, para seguir o mesmo exemplo dado por Agamben, está associada à possibilidade e à capacidade de quem toca um instrumento musical conservar a potência, mesmo quando não está tocando (em ato). 

No texto “A potência do pensamento”, o filósofo italiano traduziu héxis por “faculdade” e intitulou uma das seções do texto com a seguinte pergunta: “o que é uma faculdade?” Ele responde a essa pergunta, frisando que o termo faculdade exprime a maneira como uma atividade é separada de si mesma e atribuída a um sujeito. Agamben afirma textualmente que, de fato, na Grécia antiga, não se concebia a sensibilidade ou a inteligência como uma faculdade de um sujeito, tal como Kant (2015, p. 244-245) veio a compreender ambos os termos. O uso seguido das aspas na tradução de héxis por “faculdade” serve para mostrar essa impropriedade. Entretanto, o que ele busca ressaltar é como a doutrina aristotélica da potência contém uma “arqueologia da subjetividade”, fazendo com que o problema do sujeito se anunciasse a esse pensamento que não conhecia essa noção (Agamben, 2015, p. 245).

Agamben procura ressaltar que, nos escritos aristotélicos, a héxis está em uma relação estratégica com a steresis, palavra que ele traduz por “privação”. No contexto do pensamento agambeniano, essa privação é chamada também de “potência de não” e se refere, justamente, à possibilidade de não passar ao ato. No entanto, argumenta Agamben, essa divisão interna da potência (o fato de que ela pode a si mesma e o seu contrário) fez aparecer um outro problema: o que determina que haja ou não essa passagem ao ato (2017c, p.82-83)?

Em Karman, no capítulo dedicado às “Aporias da vontade”, Agamben se debruça precisamente sobre essa questão e sustenta que, na resposta que Aristóteles (2017a, p. 76) dá a esse problema aporético, “[...] se pode vislumbrar algo como germe – ou, sobretudo, o lugar lógico – a partir do qual os teólogos elaboraram a doutrina da liberdade e da responsabilidade das ações humanas”. Agamben cita uma passagem do livro nono da Metafísica, no qual o filósofo estagirita responde ao problema da divisão interna da potência e da sua passagem ao ato, assegurando que é necessário que o “princípio soberano” seja outro. A expressão encontra-se entre aspas, para marcar que essa é a tradução dada por Agamben à palavra grega kyrion. Para ele, este é um termo que, na política, indica autoridade soberana. Com isso, ele considera que Aristóteles não tinha em mente algo como o livre arbítrio dos modernos, mas destaca o fato de que ele tenha precisado introduzir na cisão da potência um “princípio soberano” que decide entre a potência e a potência de não (Agamben, 2017a, p. 77).[4]

Procurando deslocar o problema, o filósofo italiano propõe pensar o uso habitual como uma forma de neutralizar a oposição entre sujeito e objeto, a qual não faça aparecer o lugar para um sujeito que tenha a posse do hábito e, assim, decida soberanamente colocá-lo em ato ou não (Agamben, 2017c, p. 83). Essa proposição agambeniana busca deslocar a primazia do ato em relação à potência, estabelecida na tradição filosófica e política como herança aristotélica. Mais ainda, a tradição se afirmou como uma tentativa de tornar governável a relação indecisa entre um poder passar e um poder não passar ao ato. Para ele, essa é uma das consequências da superioridade e da anterioridade que Aristóteles garantiu à energeia, na sua relação com a dynamis.

Agamben encontra no linguista francês Émile Benveniste um modo de neutralizar uma dicotomia. Dessa vez, ele recorre ao texto “‘Ser’ e ‘ter’ em suas funções linguísticas”, no qual o linguista francês salienta que ambos os verbos são de estado. Verbos de estado se caracterizam por terem um sujeito que não é nem agente nem paciente nem causativo. Todavia, apesar de ambos serem verbos de estado, como tais, indicam estados diferentes. Enquanto o verbo “ser” é o estado do “sendo” e, por isso, estabelece uma relação de identidade em um estado de consubstancialidade, o ter é o estado do “tendo” e, desse modo, a relação instaurada por ele é de distinção entre os dois termos ligados.  Nesse sentido, ter seria uma variante de “ser-de” (Benveniste, 2005, p. 217).

Agamben propõe estender os limites da investigação de Benveniste para além do âmbito linguístico e procura, dessa forma, pensar a héxis. Ou seja, pensa que o que se tem no hábito é um modo de ser. O argumento agambeniano sustenta que, em Aristóteles, o modo como se tem a héxis precisa fazer recurso a “algo diferente” da potência que possa decidir o seu passar ou não ao ato. O kyrion. Sobre esse funcionamento, ele escreve: “O hábito é o ponto em que uma subjetividade procura tornar-se senhora do ser, o lugar em que, com perfeita circularidade, o ter, que deriva do ser, se apropria deste. Ter nada mais é do que uma apropriação do ser” (Agamben, 2017c, p. 84).

Com base em Benveniste, Agamben procura compreender o hábito de uma maneira diferente do modo como Aristóteles o compreendeu, a fim de garantir, no seu argumento contra os megáricos, uma existência da potência, mesmo quando ela não estivesse em ato. Permanecendo no âmbito dos textos aristotélicos, ele encontra uma outra concepção de hábito. Para tanto, o filósofo italiano cita um trecho do livro quinto da Metafísica, no qual Aristóteles trata do hábito, pensando-o na tensão entre posse ou estado e, assim, afirma que não é possível ter a posse do hábito, porque, se fosse possível ter posse da posse, se poderia ir ao infinito (Aristóteles, 2002, p. 247). A tese de Agamben é que o pensamento moderno sobre o sujeito irá se situar, justamente, nesse lugar inapreensível e em fuga, pensando o sujeito como proprietário do hábito. No entanto, na perspectiva agambeniana, o hábito é inapropriável. Com isso, o filósofo sustenta, de modo distinto da escolástica, de acordo com a qual o uso da potência é propriedade daquele a quem pertence o hábito, o seguinte: “O uso, assim como o hábito, é uma forma-de-vida e não o saber ou a faculdade de um sujeito” (Agamben, 2017c, p. 85).

Para Colby Dickinson, essa concepção agambeniana de hábito “[...] contém a chave para o entendimento de como podemos romper os impasses dualistas que caracterizam o pensamento Ocidental” (Dickinson, 2020, p. 248). Por meio do uso, a estratégia da argumentação agambeniana é deslocar do sujeito as faculdades que lhe foram atribuídas como propriedade. Assim, aqueles que sabem tocar algum instrumento musical, por exemplo, são viventes que, no uso do seu corpo e do mundo, fazem experiência de si e se constituem como usuários de si e do mundo. Diferente de Aristóteles, Agamben não entende a obra como fim da potência e do hábito, mas como a casa do hábito, isto é, como lugar em que ele habita e incessantemente reabre a novos usos possíveis. Nesse caso, habitar não significa outra coisa senão “[...] estar em relação de uso intensa com algo a ponto de poder perder-se e esquecer-se nela, a ponto de constituí-la como inapropriável” (Agamben, 2017c, p. 111). No pensamento agambeniano, o uso, incessantemente reaberto a novos possíveis, não predetermina a finalidade e o destino das atividades dos viventes, mas se endereça à revogação da utilidade, entendida como o télos do uso.

Essa noção de uso formulada por Agamben está diretamente relacionada às críticas que ele dirige à maneira como Aristóteles concebeu a ação e ao papel que o estagirita deu a ela, na definição do humano. O filósofo italiano argumenta que, quando Aristóteles se pergunta sobre a obra humana, ele o faz a partir da comparação entre uma atividade que seria aquilo que os humanos podem fazer melhor e a atividade dos artesãos, a fim de mostrar que, enquanto da atividade destes, a poiesis, resulta uma obra externa à sua realização, da atividade humana não resulta nenhuma obra externa à realização. Por isso, nessa comparação, o homem seria argos, isto é, sem obra. Sobre esse ser-sem-obra, que define o âmbito da inoperosidade humana na ética aristotélica, Francisco Moraes e Mário Máximo escreveram:

Por natureza, o homem é uma inoperosidade e fora da pólis não floresceria. A inoperosidade constitutiva que seria preciso superar não equivale a uma pura inércia ou apatia. Muito pelo contrário. A inoperância que Aristóteles tem em vista é antes aquela que constitui a marca da dispersão em múltiplas atividades, sem que se torne possível a dedicação a nenhuma delas. O inoperante é aquele que faz muitas coisas, que se interessa por múltiplas possibilidades, que deseja uma infinidade de coisas, mas não se encontra em nenhuma delas e assim não realiza nada. A marca do inoperante é a sua insensatez. Por isso, Aristóteles pode dizer, na Ética a Eudemo, que “é sinal de grande insensatez não orientar sua vida a um fim” (EE I.2 1214 b 10) (Moraes; Máximo, 2020, p. 257).

 

Se, em Aristóteles, a inoperosidade define o âmbito da potência humana com uma abertura e dispersão às diversas atividades possíveis ao homem, a superioridade e a anterioridade do ato em relação à potência marcam como uma “insensatez” o manter-se nessa dimensão puramente potencial. A partir disso, é possível perceber que, aristotelicamente, a abertura e a dispersão da potência não podem se manter enquanto tais, precisam passar ao ato. Aqui é possível vislumbrar como Agamben pretende deslocar o “ativismo” da perspectiva aristotélica. Na visão agambeniana, é por isso que Aristóteles remete à ausência de obra do homem (a sua inoperosidade) à práxis, pensando-a como o ser-em-ato [energeian] da alma e das ações acompanhadas de logos. É precisamente nesse aspecto que Agamben se contrapõe à abordagem aristotélica, em uma passagem de A comunidade que vem. Nela, Agamben recusa aceitar a ideia de que o homem tenha alguma tarefa ou seja ontologicamente determinado por uma essência, por conseguinte, jogando com a afirmação de Aristóteles segundo a qual o ser-em-ato define a obra humana, o filósofo italiano compreende a potência como morada habitual da ética e, por isso, como aquilo que o homem é:

O fato do qual deve partir todo discurso sobre a ética é que o homem não é e nem há de ser ou realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico [...] Há, de fato, algo que o homem é e tem de ser, mas este algo não é uma essência, não é, aliás, propriamente uma coisa: é o simples fato da própria existência como possibilidade ou potência (Agamben, 2013a, p. 45).

 

No pensamento agambeniano, o uso é um tipo de atividade que poderia substituir a ação exatamente pela relação que ele estabelece com a potência. Nesse sentido, o uso nada mais é do que uma forma-de-vida. Enfatiza Matías Saidel (2019, p. 527): “Agamben desenvolve tal ideia indicando como paradigma um uso habitual na contemplação enquanto, ele afirma, ela não tem nem sujeito nem objeto. A vida que contempla a sua potência de viver, vive unicamente a sua vivibilidade”. A esse respeito, Pedro Oliveira (2020, p. 202) escreveu instrutivamente o seguinte: “[...] o sufixo ‘-bilidade’ confere ao radical um caráter potencial, a partir do qual a referência não é ao agir, ao viver, ou à comunicação, mas àquilo que, em todo agir, em todo viver, e em toda comunicação torna possível que se aja, viva, ou comunique”. A vivibilidade da forma-de-vida é o seu caráter potencial, isto é, o que abre no viver a possibilidade de ele não se esgotar nas condições fatídicas e ser a sua própria potência. Tal como concebido pelo filósofo, se a forma-de-vida é um uso habitual, não há nela um esgotamento da potência, mas a sua incessante abertura.  

 

3 A redefinição dos modais

Na perspectiva agambeniana, essa dimensão indecisa da potência, isto é, a sua divisão entre um poder e um poder não, foi obstinadamente ofuscada pela tradição. Por isso, a crítica do filósofo italiano ao problema do sujeito passa pela retomada da divisão e indecisão da potência. Assim, é possível retomar a redefinição das categorias modais e compreender o estatuto que Agamben assegura à contingência. Sobre esta, o filósofo sustenta:

A contingência não é uma modalidade entre tantas, ao lado do possível, do impossível e do necessário: é o dar-se efetivo de uma possibilidade, o modo no qual uma potência existe enquanto tal. Ela é o acontecimento (contingit) considerado do ponto de vista da potência, o dar-se de uma cisão entre um poder ser e um poder não ser. Este dar-se encontra, na língua, a forma de uma subjetividade. A contingência é o possível posto à prova para um sujeito (Agamben, 2008, p. 147).

 

A maneira como Agamben se refere à contingência mostra a conexão que ela tem com a divisão interna da potência, pois sua caracterização consiste no “poder não”, isto é, na abertura que a potência tem para o seu contrário. Essa disponibilidade define o modo de ser da potência, porque é a possibilidade mesma de ela se manter enquanto potência é que garante existência a ela, porque a sustenta numa dimensão puramente potencial. É a realização da potência, entendendo por realização não um devir ato, mas o próprio acontecimento da potência enquanto potência. Essa primazia que Agamben dá à contingência remete à argumentação aristotélica contra os megáricos, que formulou de maneira inaugural a justificação ontológica da potência. No entanto, para o italiano, diferente de Aristóteles, o contingente é pensado como o próprio “ato” da potência. Com esse jogo de palavras, o qual Agamben usa, em O que resta de Auschwitz, é possível vislumbrar que ele evoca uma realização da potência enquanto potência, ou seja, uma instância na qual ela mantém aberta a sua disponibilidade aos contrários, permitindo que, dessa forma, a potência toque o real sem que essa abertura se esgote em um fechamento.

Brincando com as palavras, talvez pudéssemos pensar que a contingência é o desfecho da potência. Em português, desfecho pode ser um substantivo masculino, que significa fim ou conclusão e, na mesma medida, também pode não ser isso. A conjugação do verbo desfechar, na primeira pessoa do presente do indicativo, não significa somente encerrar ou concluir, mas também abrir, disparar, soltar. Nessa tensão entre os dois sentidos opostos, a tonalidade expressiva da palavra desfecho ajuda a pensar a relação entre potência e contingência. Se esta é “o fim” daquela, se esse “fim” é uma abertura, na verdade, não se trata exatamente de um fim. Em outras palavras, dizer que a contingência é o fim da potência significa dar corpo à potência e sustentá-la como uma pura potência, sem que ela se destine a um ato. Com isso, Agamben parece jogar o argumento aristotélico contra o próprio Aristóteles. Se, para este, toda potência se destina a um ato, a contingência como “ato” da potência interrompe essa destinação.

Sobre as categorias modais que Agamben redefine, para tratar o problema do sujeito, ele escreve:

Possibilidade (poder ser) e contingência (poder não ser) são os operadores da subjetivação, do ponto em que um possível chega à existência, se dá por meio da relação com uma impossibilidade. A impossibilidade, como negação da possibilidade [não (poder ser)], e a necessidade, como negação da contingência [não (poder não ser)], são operadores da dessubjetivação, da destruição e da destituição do sujeito, ou seja, dos processos que nele estabelecem a divisão entre potência e impotência, entre possível e impossível. As duas primeiras [possibilidade e contingência] constituem o ser como na sua subjetividade, ou melhor, em última análise, como um mundo que é sempre meu mundo, pois nele a possibilidade existe, toca (contingit) o real. Necessidade e impossibilidade definem, por sua vez, o ser na sua integridade e compacidade, pura substancialidade sem sujeito – ou seja, em última instância, um mundo que nunca é meu mundo, pois nele a possibilidade não existe (Agamben, 2008, p. 148).

 

Na perspectiva agambeniana, poder ser e poder não ser definem o âmbito de uma familiaridade na qual o sujeito reconhece e constitui a si como uma inoperosidade, compreendida como a dispersão em diferentes possibilidades de usar a si e ao mundo.  Não poder ser e não poder não ser definem a dessubjetivação, no sentido de que ela imprime no sujeito uma tarefa que se apresenta como se tivesse um caráter necessário que não pode ser recusado. No entanto, ele sustenta que a preponderância dessa dimensão necessária e de dever-ser tornou a experiência ética impraticável. De acordo com filósofo italiano, “[a] forma do viver humano nunca é prescrita por uma vocação biológica específica nem é marcada por qualquer necessidade, mas por mais costumeira, repetida e socialmente obrigatória que seja, conserva sempre o caráter de uma possibilidade real” (Agamben, 2017a, p. 233-234).

Ora, se a forma de viver do humano é sempre aberta à sua inoperosidade constitutiva, isto é, às diversas possibilidades que o uso de si e do mundo oferecem, a submissão dessa forma de viver a uma necessidade extrema e capaz de anular a potência e a contingência, as quais definem agambenianamente o modo de ser e viver do humano, é, segundo Agamben, totalmente compatível com a definição que Goebbels (2008, p. 149) deu de política: “[...] a arte de tornar possível o que parece impossível”. Essa frase representa o ponto limite no qual subjetivação e dessubjetivação rompem o seu nexo constitutivo e o impossível é introduzido no real à força.

A partir dos exemplos que Agamben fornece sobre o uso do corpo, sobre a íntima estranheza que o sujeito experimenta, no uso que faz de si, no âmbito das necessidades corpóreas, é possível vislumbrar essa tensão entre subjetivação e dessubjetivação de outro modo:

A natureza contraditória da relação com o corpo atinge a sua massa crítica na necessidade. No momento em que sinto um impulso incontrolável para urinar, é como se toda a minha realidade e a minha presença se concentrassem naquela parte do meu corpo, da qual provém a necessidade. Ela aparece como absoluta e implacavelmente própria; contudo, precisamente por isso, porque eu estou nela pregado sem saída, ela se torna a coisa mais estranha e inapropriável. Sendo assim, o instante da necessidade põe a nu a verdade do corpo: esse é um campo de tensões polares cujos extremos acabam definidos por um “ser entregue a” e por um “não poder assumir”. Meu corpo me é dado como a coisa mais própria só na medida em que se revela absolutamente inapropriável (Agamben, 2017c, p. 109).

 

A tensão entre subjetivação e dessubjetivação, no âmbito das necessidades corpóreas, interessa a Agamben, porque evidencia o corpo como algo absolutamente inapropriável. No estar pregado a uma necessidade, na impossibilidade de se desvencilhar dela, na assunção dessa dimensão necessária como aquilo a que se está entregue mas que não se pode assumir, o corpo surge como matéria ética. Não porque nele não haja nada de necessário, porém, porque as necessidades fisiológicas do corpo levam ao reconhecimento de que meu corpo só é meu no uso absolutamente inapropriável que faço dele. Isso significa que, no uso do corpo, o sujeito experimenta tanto uma subjetivação quanto uma dessubjetivação, já que é a partir do reconhecimento dessa dimensão inapropriável do corpo que a possibilidade e a contingência se mostram disponíveis nos modos diversos de usá-lo.  Nesse sentido, o conceito de uso é um operador fundamental do seu pensamento, o qual enseja a ele reformular a questão da potência e abrir um novo âmbito na esfera prática.

 

Considerações finais

Por meio do sintagma Homo profanum, procurei mostrar não apenas a crítica que Agamben faz à tradição e ao modo como ela tratou a questão do sujeito. Formulei essa noção a partir da expressão Homo Sacer, com a qual Agamben exibe tanto a violência que constitui o direito quanto a própria estrutura da subjetividade (a soberania e a sujeição) que governou as diferentes concepções de ética. Para a realização do seu projeto ético-filosófico, o filósofo procura depor essa estrutura, propondo que a ética não seja pensada nem como o âmbito no qual um sujeito se assenhora soberanamente das suas ações, nem como a simples obediência a um comando.

Mais do que expor a estrutura originária da subjetividade, o sintagma Homo Sacer explicita como esse problema está revestido por uma estrutura religiosa, cuja resposta ética agambeniana é a profanação. Por isso, propus que é possível fazer frente ao Homo Sacer com um Homo Profanum, figura política que, reivindicando a potência como morada habitual da ética, permite abrir um novo horizonte político por meio do uso.

 

HOMO PROFANUM AND THE POTENCY OF USE: A CONCEPTUAL PROPOSITION BASED ON GIORGIO AGAMBEN

Abstract: This article aims to present a conceptual proposition based on the writings of the Italian philosopher Giorgio Agamben. One of the central notions in his political philosophy is that of Homo Sacer, used as a paradigmatic figure to criticise the violence of law. From this, in this article, I propose a game with this notion, through the syntagma Homo Profanum. This game refers to the role that the concept of profanation plays in Agambenian ethical thought. Through this conceptual proposition, I show how Agamben criticises tradition and the way it conceives the notion of subject. In addition, I also show how, through the concepts of potency and use, the Italian philosopher offers notes to open the ethical horizon of modernity. Thus, I characterise the figure I call Homo Profanum from the way the Italian philosopher conceives the notions of ungovernable, use and life-form, which, orbiting around the concept of potentiality, form a conceptual constellation from which Agamben makes notes to think his ethics of profanation.

 

Keywords: Homo profanum. Potentiality. Use. Subject. Ethics.

 

Referências

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Recebido: 11/05/2023 - Aprovado: 26/07/2023 - Publicado: 13/11/2023



[1] Este artigo é fruto da minha pesquisa de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ. A pesquisa da qual ele resultou foi financiada pela FAPERJ.

[2] Doutor em Filosofia e pesquisador de pós-doutorado no pelo PPGF da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9102-0338. Email: Caiocnp@gmail.com.

[3] É possível problematizar a tradução que Agamben faz do termo grego héxis por hábito. De acordo com Francisco Moraes e Mário Máximo, hábito seria uma prática reiterada, responsável por garantir uma disposição àquele que insiste nela. Nesse sentido, a tradução mais apropriada para héxis seria disposição (aquilo que resulta de determinadas práticas habituais) e não hábito, como sugere Agamben (Moraes; Máximo, 2020, p. 252). Segundo Loïc Wacquant, a tradução da palavra grega héxis para a latina habitus foi realizada no século XIII por Tomás de Aquino. Habitus é o particípio passado do verbo latino habere, que significa ter ou possuir. Nesse sentido, Wacquant afirma que, na Summa Theologiae de Tomás de Aquino, à concepção aristotélica de héxis foram acrescentados os seguintes sentidos: capacidade para crescer, através da atividade e disposição suspensa entre a potência e uma ação voluntária (Wacquant, 2007, p. 5-6). Apesar da relevância desses apontamentos, o texto seguirá usando a tradução agambeniana de héxis (hábito), porque é a partir dessa tradução que Agamben propõe pensar a noção de uso habitual, com a qual questiona a primazia da ação, no âmbito político.

[4] A passagem do texto aristotélico em que se encontra a palavra em questão é 1048 a, 10-11.