Apresentação


Marcos Antonio Alves1


Com alegria, apresentamos o terceiro número de 2023 da Revista Trans/Form/Ação. Continuando nosso processo de melhorias da revista, este fascículo também já oferece diferentes formatos dos textos publicados (PDF, HTML, MOBI e ePUB), dando maior visibilidade e possibilidade de acesso ao conhecimento socializado. O processo de inserção desses formatos também está sendo implementado em todos os fascículos da revista. A propósito, em 2024, a Trans/Form/Ação completa 50 anos de existência. Estamos programando uma série de atividades comemorativas, para festejar nosso jubileu de ouro. Em breve, anunciaremos mais novidades.

Este fascículo está composto de uma entrevista, nove artigos originais e sete comentários a esses artigos, uma modalidade inovadora já consagrada da revista, conforme aponta Alves (2023). Os autores nacionais estão vinculados a instituições localizadas no Distrito Federal, Minas Gerais, Piauí, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Já os estrangeiros estão vinculados a instituições na Argentina, Chile e China. Quatro dos textos estão escritos em português, outros quatro em inglês e três em espanhol.

Iniciamos esta edição com uma entrevista concedida por John Danaher a Murilo Mariano Vilaça e Murilo Karasinski, intitulada “On axiological futurism: in pursuit of a better understanding of the relationship between new technologies, risks, and ethics considering value changes”. John Danaher é professor sênior na School of Law, NUI Galway, University Road, Galway, Ireland. Possui um amplo conjunto de publicações em revistas de prestígio internacional (Neuroethics; Law, Innovation and Technology; Science and Engineering Ethics; American Journal of Bioethics; Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics; Bioethics, Futures, entre outras). Muitas publicações se relacionam especificamente com análises de novas tecnologias e suas aplicações. Nessa entrevista, Danaher, a partir de um breve resgate de sua trajetória, aborda pontos centrais do conceito de futurismo axiológico, apresentando exemplos de valores cambiantes, esclarecendo a sua proposta sobre o assunto. Além disso, indica seus próximos passos no desenvolvimento de sua abordagem, bem como autores que a influenciaram ou que, de alguma forma, dialogaram com ela. Além de contribuir para que o futurismo axiológico se torne conhecido, no Brasil, os autores dizem esperar que a entrevista ajude na reflexão sobre a relação entre novas tecnologias, riscos e ética, considerando o fator mudança de valor.

O segundo texto é “A moral nas técnicas de memória: Nietzsche e os comentários sobre a mnemotécnica de Tomás de Aquino”, escrito por Adilson Felicio Feiler e comentado por Herivelto P. Souza. O autor desenvolve uma hermenêutica da memória nos textos da maturidade de Nietzsche, à luz das contribuições de Aristóteles e Tomás de Aquino. Na Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral, Nietzsche introduz a influência que a memória exerce sobre a capacidade de reflexão e de ação. O procedimento mnemotécnico que o filósofo alemão analisa é o comentário de Tomás de Aquino sobre a reminiscência de Aristóteles. O aquinate identifica a ordenação daquilo que se quer, o investimento do espírito, a meditação frequente e a tomada da cadeia de pendências como pontos fundamentais para a atividade da memória. Nesses pontos, Nietzsche identifica a moral como componente-chave no processo de memorização. Feiler analisa algumas aproximações e distanciamentos entre as teses nietzschiana e tomista, e em que medida a moral opera no sentido de detectar a atividade da memória.

O terceiro texto é “G. Canguilhem lector de Politzer: respecto del problema de la acción, de la filosofía práctica y de la psicología como ciencia concreta”, de Alejandro Bilbao e Daniel Jofré. Os autores examinam as repercussões do pensamento de G. Politzer na filosofia da vida elaborada por G. Canguilhem. Durante os primeiros trinta anos do século XX, os textos de Politzer fornecem material importante para a filosofia que Canguilhem constrói sobre o tema da individualidade humana e sua autonomia, afirmam Bilbao e Jofré. A leitura de Politzer constitui, para Canguilhem, uma fonte de inspiração para suas propostas axiológicas, morais e políticas. Associando as ideias da psicologia concreta, que exalta a existência do homem-ator, Canguilhem concilia duas séries de argumentos: a). a filosofia da vida não pode prescindir de uma abordagem relativa à ação humana; b). a presença da ação humana torna-se indissociável dos pressupostos que debatem sua existência entre a singularidade de suas produções e a apreensão que dela se pode fazer, por meio dos universais propostos pela ciência.

Liberdade contextualizada e sentidos normativos em Foucault”, de Bruno Sciberras de Carvalho, comentado por Juan Horacio de Freitas, é publicado em seguida. A questão da liberdade em Foucault torna-se problematizada, quando relacionada com os impedimentos, previstos pelo autor, para os sujeitos se situarem fora das redes de poder. Todavia, Foucault também destaca potencialidades de resistências e uma noção de liberdade envolvida pelas circunstâncias históricas, o que sugere questões normativas originais. De modo a analisar a tensão entre dominação e liberdade, em sua obra, e o que se reflete normativamente, notam-se duas direções principais: a ideia de liberdade como algo inerente às relações de poder e como fundamento do exercício crítico do conhecimento. Busca-se argumentar que a valorização de dimensões de liberdade, elaborada por Foucault, gera implicações singulares de avaliação das condições sociais, embasadas em uma temperança normativa.

O quinto texto é o artigo “A metafísica dos costumes como um sistema de deveres: a distinção entre direito e ética em Thomasius e Kant”, de Diego Kosbiau Trevisan. O artigo apresenta uma breve contribuição ao estudo das fontes históricas da filosofia prática de Kant, discutindo o projeto kantiano de uma metafísica dos costumes enquanto uma doutrina dos deveres, à luz do direito natural alemão dos séculos 17 e 18. Em um primeiro momento, Trevisan expõe a distinção de Christian Thomasius entre obrigação interna e obrigação externa, como base para a diferenciação entre deveres jurídicos e deveres éticos. Na sequência, discute a oposição kantiana entre uma doutrina do direito e uma doutrina da virtude, sob o pano de fundo da recepção de Thomasius, por parte de Alexander Baumgarten e Gottfried Achenwall.

Escrito por Diego Fernández H. e comentado por Marcela Oliveira, publicamos “‘Ohne Gewalt’. Justicia y dislocación en el proyecto ‘Gewalt’ de 1921 y ‘Kafka’ de 1934 de Walter Benjamin”. As relações entre "Por uma crítica da violência" (1921) e a obra de Franz Kafka foram bem estabelecidas por diversos estudos críticos dedicados a Walter Benjamin. No entanto, é surpreendente que o próprio Benjamin, conhecedor já em 1921 da obra do escritor tcheco, tenha se privado de qualquer referência à obra de Kafka, no referido ensaio, e, mais amplamente, em qualquer um dos múltiplos produtos que cercam áreas que compõem o projeto em torno da violência. A partir disso, o autor desse texto examina um conjunto de noções (Entstellung, Entsühnung, Zurechstellen) capazes de estabelecer uma relação conceitualmente mediada entre o ensaio de 1921 e os textos que Benjamin dedica a Kafka, no contexto da década de 1930. Tal relação remete, por sua vez, ao único lugar em que Benjamin realizou um tratamento autônomo sobre a "categoria da justiça", em 1916, que ele identificou - como aconteceria dezoito anos depois, no ensaio sobre Kafka, de 1934 – o locus da justiça na “não violência”. Com isso, acaba desfazendo o laço que liga, talvez indiscernivelmente, as noções de “messianismo” e “violência”, dentro da tradição judaica.

Em seguida vem “La temporalidad de la imagen y su función crítica, de María Victoria Dahbar, comentado por Ianina Moretti Basso. A imagem é dita de muitas maneiras. Diante do equívoco, poderíamos desobstruir seu caminho analítico, restaurar seu trânsito histórico, desistir. Em vez disso, alerta a autora, esse texto encontra uma alternativa numa reflexão sobre a imagem atenta à sua dimensão temporal. Para isso, lança mão de duas reflexões nodais: a noção benjaminiana de imagem dialética e a ligação entre imagem e emoções, trabalhada contemporaneamente pela teoria queer. A noção de imagem dialética possibilita, mesmo para além do seu autor, uma outra articulação entre imagem e história, a qual permite entendê-la não só enquanto fenômeno linguístico, mas também na sua dimensão visual e audiovisual. A teoria queer, em sua virada afetiva, apresentou uma possível ligação entre imagens e afetos que enseja a composição de um arquivo efêmero, que desclassifica nossas categorias temporais, conforme Cvetkovich, e a questão ética sobre nossas respostas primárias à imagem, a partir de Butler. Dahbar argumenta que a viagem por ambas as noções aborda, em última instância, a temporalidade das imagens em seu poder crítico, aquela velha insistência em pensar imagens que contenham sua própria destruição.

Virtue: Catholic humanism in the Consilium de emendanda ecclesia”, de Ming Yin, é o próximo texto. O artigo focaliza a questão da possibilidade de ver a reforma da Igreja Católica, no século XVI, e sua relação com a virtude como uma questão importante no estudo da filosofia humanista. Os humanistas enfatizam que a educação das virtudes é a base para cultivar a personalidade e acreditam que restaurar as virtudes da Igreja é a “cura” para os males da Igreja moderna primitiva. O Consilium de emendanda ecclesia (1537) é a prática da virtude dos humanistas católicos. Isso se reflete em propostas para fortalecer as normas educacionais e as disciplinas sociomorais e enfatizar o aperfeiçoamento da virtude clerical, como força motriz da reforma. Além disso, sob a orientação da ética das virtudes, a política das virtudes torna-se a ideologia orientadora da prática política desses humanistas, na qual reconhecem a autoridade do Papa e da Igreja, associando a virtude à legitimidade do poder. A filosofia da virtude, em Consilium, forma o fundamento ideológico para a reforma da Igreja Católica. O antigo erudito chinês Dong Zhongshu (179-104 a.C.) praticava uma política de virtude semelhante. Em Luxuriant Gems of the Spring and Autumn, ele combinou a legitimidade do governo com a virtude baseada no direito divino dos reis, perpetuando assim o conceito confucionista de “sábio”. Ming Yin mostra que tanto os humanistas católicos quanto Dong enfatizaram a importância da virtude dos governantes como agentes de Deus.

O oitavo texto é “Compreensão, aprendizagem e linguagem: uma crítica à abordagem hermenêutica”, de Rainri Back, comentado por Gustavo Silvano Batista. Back propõe uma crítica à concepção de linguagem de Hans-Georg Gadamer, com base na qual ele justifica por que a aprendizagem somente é possível pela conversação. Para Gadamer, a linguagem é fundamentalmente palavra, embora ele considere linguagem formas não verbais de comunicação, como gestos, expressões fisionômicas e olhares. Porém, ele não elabora uma concepção não verbal de linguagem, a fim de explicar por que tais expressões e tantas outras deveriam ser consideradas linguagem. Enfim, os aspectos fundamentais do desenvolvimento dessa crítica podem ser reunidos em um problema relacionado à compreensão e aprendizagem. Uma vez que a linguagem deve ser compreendida e aprendida, se ela é palavra, como é possível aprendê-la, antes de se dominar a palavra, durante a infância? Para respondê-lo, primeiro, em um exame amplo de ensaios de Gadamer escritos em cinco décadas, Back evidencia a ausência de uma concepção pré-predicativa de linguagem, em seu pensamento. Então, elabora um esboço de uma concepção pré-predicativa de linguagem, pela qual pretende mostrar como é possível aprender a linguagem, antes mesmo de dominar a palavra.

Em penúltimo, publicamos “Examining Tang and Song Yingtang image halls from a clan sacrificial perspective”, de Wanli Cheng, com comentário em conjunto produzido por Yang Zhao, Qingfeng Shi, Boyu Liang e Wei Sun. Conforme lembra Cheng, nas Dinastias Tang e Song, o clã patriarcal dos oficiais comuns gradualmente dominou a comunidade do clã. Esse fenômeno destruiu o estrito sistema de sacrifício hierárquico. Portanto, como uma nova forma de sacrifício privado, o yingtang image hall aparece na residência dos funcionários comuns ou nas casas das pessoas comuns. Atualmente, quando uma estátua é substituída por uma imagem, este novo símbolo cultural conduzirá cada fiel ao alcance do reconhecimento social, psicológica e emocionalmente. Cheng busca demonstrar que, através das imagens ou retratos pendurados no salão, os fiéis podem confirmar se podem criar um reino espiritual visualmente, para que sejam capazes de se comunicar com seus ancestrais ou fazer suas orações.

Por fim, publicamos o artigo escrito por Zijie Liu e comentado em conjunto por YanLing Mei e Pengcheng Li, intitulado “The Marxist Philosophical Basis of Socialist Literature and Art”. Zijie Liu argumenta que a literatura e a arte socialistas são construídas com base na filosofia marxista. O “caráter do povo” da literatura e arte socialista é baseado no fato de que a filosofia marxista abandona o individualismo e se concentra na liberdade e na felicidade de uma população mais ampla. Assim, a literatura e a arte socialistas consideram as pessoas, e não os indivíduos, como sujeitos de expressão. O realismo, princípio básico da criação literária e artística socialista, baseia-se no materialismo da filosofia marxista. O “ambiente típico e os personagens típicos”, propostos pelos escritores clássicos marxistas, para a criação literária e artística socialista, são o método e o princípio formados pela aplicação dos conceitos filosóficos da combinação orgânica do mundo objetivo e da subjetividade humana, e a combinação orgânica da natureza e história social à criação literária e artística concreta na teoria marxista. A filosofia marxista considera a sensibilidade e a estética como elementos importantes, para que a literatura e a arte desempenhem um papel prático. Zijie Liu expõe a defesa de que a sensibilidade e a estética não se limitam ao mundo subjetivo das pessoas, mas têm a possibilidade de se conectar com o mundo objetivo externo. Daí, conclui que a literatura e a arte socialistas devem prestar atenção à estética.

Desejamos boa leitura e discussão dos textos aqui socializados.


Referência

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 07-14, 2023.


Recebido: 24/05/2023

Aceito: 30/05/2023


1 Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.