Apresentação

 

Marcos Antonio Alves[1]

 

Algo vem mudando na comunidade filosófica nacional. A tradição de pesquisa baseada em análises hermenêuticas e de comentários de grandes nomes da história da filosofia, embora ainda permaneça dominante e seja de grande valia e relevância, vem abrindo espaço para o surgimento, no Brasil, de uma área de reflexão filosófica feita em primeira pessoa. De início modesta e reservada a pequenos nichos, essa área vem se ampliando, nos últimos anos.

Os adeptos dessa metodologia não visam a comentar as propostas de filósofos, incluindo os considerados tradicionais, sem, no entanto, desmerecê-los ou menosprezá-los, nem mesmo dar suas respostas, através das citações de outros. Buscam, em boa parte das vezes, a partir de uma abordagem interdisciplinar e com o uso de ferramentas conceituais contemporâneas, oferecer respostas próprias a questões filosóficas, muitas delas tradicionais. Nesse sentido, são as suas propostas que devem ser comentadas, analisadas e avaliadas.

Foi nesse contexto que, em 24 de junho de 2020, Gustavo Leal Toledo, coeditor desta edição, me envia a seguinte pergunta, via redes sociais:

A Trans/Form/Ação não estaria interessada em fazer um número bem diverso dos especiais que são padrão na academia brasileira? Eu pensei em um fascículo sobre Filosofia Brasileira, no sentido de Pensadoras e Pensadores nacionais que realizam estudos mais livres e autorais, que se constituem em propostas próprias ao desenvolvimento de problemas filosóficos.

 

A minha resposta, de imediato, expressou minha admiração pela excelente ideia, observando a sua harmonia com o que já estávamos realizando, na revista. Lembrei que, naquele momento, já estávamos organizando o “Especial Filosofias do Sul”, o qual se identificava com esse estilo autoral, valorizando e apoiando a reflexão própria sobre questões filosóficas, em função de uma perspectiva de pensadoras e pensadores do Hemisfério Sul. Tal edição especial, lançada em 2022, chamava para publicação de textos com pensamento em primeira pessoa, sem que se baseassem na citação, interpretação ou divulgação de outros autores ou de suas ideias. O próximo passo seria pensar em algo especificamente brasileiro, o que veio a calhar com a proposta do professor Toledo.

Dada a convergência da proposta com os intuitos recentes da linha editorial da Trans/Form/Ação, passamos a conceber este fascículo, ora apresentado. Por questões diversas, decidimos compô-lo não por chamada aberta, mas por convite aos autores. Elaboramos, pois, uma lista de possíveis contribuidores, cerca de trinta. Nossa escolha tomou como ponto de partida a mais equânime distribuição possível de gênero e de proveniência geográfica. De alguma forma, tais critérios foram atingidos, nesta publicação. Embora ainda haja uma maior concentração de autores do sexo masculino e da Região Sudeste, a porcentagem de autoria está bem distribuída, se comparada à porcentagem de artigos normalmente publicados por mulheres, na filosofia, ou oriundos desta região do país em relação às demais. Nosso intuito, ainda, com este fascículo, seguindo os princípios da revista, é contribuir para essa melhor distribuição. Buscamos a socialização do conhecimento produzido, sem distinção de gênero, raça, localização geográfica, bem como preferências ideológicas, linhas de pensamento, áreas de pesquisa ou metodologias filosóficas.

Entretanto, como toda escolha, também por conta do espaço, tempo e restrições financeiras, há sempre algum tipo de delimitação, com base em certos critérios. O rol de textos aqui publicados possui, em boa parte, um direcionamento de pesquisa, voltado especialmente a uma linha mais analítica. Não desconsideramos ou desconhecemos a existência de outras frentes, com diferentes objetivos e perspectivas das oferecidas aqui, na discussão e contribuição para a composição de uma filosofia brasileira ou de um pensamento autoral. Mas foi necessária uma escolha.

Uma vez feitos os convites aos possíveis autores, o prazo para envio dos artigos, em sua primeira versão, foi para setembro de 2021. Em geral, a construção de textos filosóficos exige um período de maturação e constituição. Mesmo para esses autores, cujo texto produzido seria resultado de suas pesquisas, algumas já de longa data, outros de jovens pesquisadores, mas já especialistas e promissores em suas áreas, seria necessário um tempo mínimo para a recepção da primeira versão do artigo.

Uma vez recebidos os textos, fizemos uma experiência de publicação de Preprints, seguindo os princípios do Programa “Ciência Aberta”. Publicamos os textos no ScieLO Preprints e na página da revista Academia.edu, onde ficaram por aproximadamente dez meses disponíveis. Nesse período, os autores poderiam receber contribuições de leitores aos seus textos ainda em composição.

Ademais, em outra frente, realizamos a XXXIII Jornada de Filosofia e Teoria das Ciências humanas da Unesp, com o tema “Filosofia Autoral Brasileira” (https://www.marilia.unesp.br/#!/eventos/2022/xxxiii-jornada-de-filosofia-e-teoria-das-ciencias-humanas-filosofia-autoral-brasileira/). Os vídeos podem ser conferidos no canal da Unesp, que nos auxiliou na produção do evento, implementado pelo Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (https://www.youtube.com/playlist?list=PLzEm9RCekzdjzXrfdYFhFOmNQMqNEKPj4). Os autores deste fascículo, em sua maioria, puderam apresentar seus textos, discutindo-os com a comunidade acadêmica, tendo outra oportunidade de aprimorar suas ideias aqui, por fim, publicadas.

Uma vez enviados os textos em sua versão final, submetidos no sistema da Revista, o próximo passo editorial foi, a partir de junho de 2022, cumprir outra difícil tarefa de revistas acadêmicas: a busca por avaliadores. Mesmo para os fascículos especiais, a Trans/Form/Ação prima pela avaliação dos artigos enviados, passando pelo crivo de pareceristas, no modo de parecer duplo cego. Entretanto, nesse caso, procurando cumprir outro requisito do Programa “Ciência Aberta”, os pareceres seguiram o modo aberto de revisão por pares, no qual tanto o avaliador quanto o avaliado são identificados. Por volta de agosto de 2022, os autores receberam os textos com as observações dos avaliadores e tiveram o prazo até novembro, para fazer as adequações finais.

Uma vez aprovados os textos, os próprios avaliadores foram convidados a compor um comentário a respeito do texto avaliado, prática já consagrada na Revista e de grande sucesso, como apontado por Alves (2021). Aqueles que puderam aceitar esse convite têm seus comentários publicados nesta edição.

Uma vez recebidos os textos, partimos, no começo de 2023, para o serviço de revisões técnicas, como correção gramatical e normalização dos textos, que, depois de corrigidos, voltaram novamente aos autores, para sua aprovação final. Em abril de 2023, estávamos com todos os textos em sua versão definitiva e fizemos a diagramação com posterior publicação dos textos, na página da revista e em outros ambientes, como ANPOF e Academia.edu. Por fim, foi feita a marcação XML para publicação em certos portais, como SciELO e REdalyc, possibilitando a indexação dos artigos em determinados bancos de dados, como Scopus, SJR, Web of Science.

Os textos foram apresentados em ordem alfabética de seus autores, seguindo o padrão da revista. Ao contrário do evento, os textos não foram agrupados por temas. Ainda assim, podemos distinguir duas linhas basilares temáticas: por um lado, há textos que discutem o que seria uma filosofia brasileira, um pensamento autoral. Em outra frente, encontramos textos que tratam de problemas filosóficos em diferentes áreas, tais como epistemologia, ética, metafísica, filosofia da mente, ciências cognitivas.

Por questões técnicas, foi necessário dividir o fascículo em dois Tomos. O primeiro deles é constituído de 10 artigos e 12 comentários. Já o segundo possui oito artigos e 11 comentários.

 

O primeiro artigo do Tomo 1 é “Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música”, escrito em parceria por Agnaldo Cuoco Portugal e Clarissa Pimentel Portugal, comentado por Murilo Rocha Seabra. Os autores dividem o artigo em três partes, buscando investigar a produção filosófica acadêmica autoral e criativa, no Brasil. Na primeira parte, eles expõem o desafio da produção autoral em filosofia, no Brasil, com base no exemplo de iniciativas recentes em filosofia da religião. Na segunda parte, por meio de uma analogia com a música, argumentam que a defesa de uma maior valorização da filosofia autoral, no Brasil, não significa desvalorizar o trabalho com história da filosofia, área que aparenta maior predominância na filosofia acadêmica, no país. Na terceira parte, abordam os desafios para a formação, para a autoria filosófica, baseando-se na tríplice fórmula aluno-professor-conhecimento e reconhecendo os aspectos objetivos e subjetivos da aprendizagem.

Em seguida, vem “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”, de Alfredo Pereira Jr. e Vinícius Jonas de Aguiar, comentado por Manuel Moreira da Silva e por Juliana de Orione Arraes Fagundes. A sentiência, definida como a capacidade inconsciente de se ter experiência consciente do sentir, é um fenômeno psicobiológico, envolvendo padrões dinâmicos de ondas eletroquímicas, em sistemas vivos. O processo de sentir pode ser estudado em duas modalidades, dizem os autores: a) identificação empírica e análise dos padrões temporais universais, que caracterizam a sentiência, cujo estudo seria a Sentiômica; b) identificação introspectiva e relato da variedade de experiências conscientes, na perspectiva de primeira pessoa, cujo estudo seria a Qualiômica.

A Qualiômica é, sem dúvida, um desafio para a ciência convencional, como afirmado no “problema difícil da consciência” de Chalmers, pois a perspectiva de primeira pessoa não é acessível aos métodos de medição e às explicações científicas convencionais. A Sentiômica, enfocando padrões dinâmicos que definem a capacidade de sentir, é, portanto, por definição, suscetível de um tratamento empírico e experimental. Com base nisso, os autores propõem uma contextualização de pressupostos e problemas filosóficos da Sentiômica, bem como apresentam algumas das suas diversas aplicações, com foco na sua relação com a música.

Em terceiro lugar, publicamos o texto de André J. Abath, intitulado “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”, comentado por Cesar Schirmer dos Santos e Felipe G. A. Moreira. Abath apresenta uma posição costumeiramente denominada aprimoramento erotético, segundo a qual devemos avaliar e, eventualmente, aprimorar nossas respostas a perguntas da forma “O que é x?”. O foco será em casos em que x captura uma categoria fortemente social, como o casamento. Tal posição é oferecida enquanto alternativa à ideia – por vezes identificada como engenharia conceitual de acordo com a qual devemos avaliar e, eventualmente, buscar uma melhoria de nossos conceitos. Uma vez introduzida a ideia de aprimoramento erotético, o autor busca mostrar como ela pode ser mobilizada para lidar com o que chama de desafio da preservação de tópico, e que vantagens possui em relação a uma posição semelhante disponível na literatura, nomeadamente, o Quadro Austero, defendido por Cappelen.

“O disjuntivismo ecológico e o argumento causal”, de autoria de Eros Moreira de Carvalho, é comentado por Sabrina Balthazar Ramos Ferreira. Carvalho explica que a abordagem ecológica da percepção oferece recursos para desarmar o argumento causal contra o disjuntivismo. Segundo o argumento causal, como os estados cerebrais que proximamente antecedem a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente podem ser do mesmo tipo, não haveria, portanto, uma boa razão para rejeitar que a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente tenham fundamentalmente a mesma natureza. O disjuntivismo com respeito à natureza da experiência seria, assim, falso.

O autor identifica três suposições que apoiam o argumento causal: a suposição da indistinguibilidade, a suposição da linearidade e a suposição da duplicação. Conforme a abordagem ecológica da percepção, essas suposições não se sustentam, abrindo espaço para a defesa de uma versão ecológica do disjuntivismo. Episódios perceptivos se estendem ao longo do tempo e são supervenientes ao sistema organismo-ambiente. Eles também podem ser distinguidos dos “correspondentes” episódios de alucinação, por serem o resultado de um processo controlado de sintonização, ao passo que as alucinações são passivas e refratárias às atividades de exploração e sintonização. Por fim, o autor procura enfatizar que o disjuntivismo ecológico, na medida em que é imune ao argumento causal, se mostra vantajoso em relação aos disjuntivismos negativo e positivo.

O quinto artigo é de Filipe Campello: “Qual o papel das experiências subjetivas na crítica social? Distinguindo entre justiça de primeira e de segunda ordem”. Nas últimas décadas, diferentes abordagens ligadas à tradição de(s)colonial têm movido o pêndulo da crítica de pretensões de universalidade para relatos e experiências particulares. Contudo, nisso que podemos chamar de virada narrativa, não são sempre evidentes as justificativas morais de perspectivas em primeira pessoa. A questão explorada por Campello diz respeito à possibilidade de encontrar relevância epistêmica de relatos e experiências subjetivas na crítica de injustiça. O autor inicialmente inverte a questão, partindo do problema da objetividade na crítica, diante da particularidade das experiências. A questão, nesse caso, é de onde fala o filósofo ou a filósofa, na sua intenção de descrever experiências de sofrimento de outras pessoas. Se falamos sempre em primeira pessoa, e se existe algum limite cognitivo ou epistêmico de experiências, de onde viria a capacidade de criticar experiências que não são as nossas? Afinal, como podemos compartilhar experiências de injustiça?

Em seguida, Campello sustenta que podemos avançar, se distinguirmos duas dimensões de justiça. Acompanhando distinções conhecidas de teorias de primeira e de segunda ordem, ele defende que reivindicações ligadas à virada narrativa se referem a demandas de justiça de primeira ordem: trata-se de reconhecer moralmente a pretensão epistêmica dos sujeitos, vendo-se ali a possibilidade de confrontar noções falhas de universalidade e pontos cegos em teorias da justiça. Todavia, essas pretensões não possuem em si próprias critérios de justificação, requerendo dependências normativas, as quais são externas às próprias experiências – essas, sim, situadas em justiça de segunda ordem. O autor assevera que esse modelo tem a vantagem de incorporar as vantagens teóricas de teorias de(s)coloniais, sem negligenciar os potenciais da crítica da injustiça.

“Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”, de Giovanni Rolla, é a próxima publicação, comentada por Felipe Nogueira de Carvalho e por Marcos Silva. Conforme Rolla, no artigo “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão” (neste volume), Pereira e colaboradores levantam uma bateria de críticas ao enativismo, a qual é uma família de abordagens nas ciências cognitivas que confere centralidade ao corpo e à ação autônoma dos organismos, nas explicações dos seus processos cognitivos. As investidas dos autores miram alguns conceitos centrais da proposta enativista, como conhecimento prático, corporificação (ou corporeidade) e regularidades sensório-motoras. Rolla argumenta que as críticas de Pereira et al. não procedem, por razões diversas: algumas assumem o que querem provar, outras conferem peso excessivo a intuições sobre cenários ficcionais e, por fim, outras atacam espantalhos que não representam as posições enativistas. O autor ressalta que nenhum dos pontos levantados por ele em defesa do enativismo são novos, mas considera importantes explicitá-los, a fim de tornar o debate sobre filosofia das ciências cognitivas mais claro.

Em sétimo lugar, aparece “A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos”, de Ivan Domingues, comentado por Lúcio Álvaro Marques. O artigo versa sobre a filosofia contemporânea brasileira e tem como objetivo introduzir dois pontos. O primeiro deles refere-se aos operadores conceituais no plano teórico-filosófico, com foco no problema da natureza da filosofia brasileira, tomando como ponto de partida as ideias de autoralidade/originalidade. O segundo ponto trata das ferramentas analíticas no plano epistêmico-metodológico, associando os métodos da metafilosofia, ao operar e dar expressão à ratio filosófica, e os métodos da história intelectual, ao operar e dar expressão à realização histórica da filosofia e da intelligentsia filosófica.

O campo das discussões é a metafilosofia, na acepção de filosofia da filosofia, ao desenhar um percurso argumentativo onde metafilosofia, história da filosofia e história intelectual caminham juntas. O autor considera, na vertente da história intelectual, a título de hipóteses para operar os processos históricos, os paradigmas da formação e pós-formação; na vertente metafilosófica, com foco no ethos, para tipificar os diferentes posicionamentos da intelligentsia filosófica brasileira frente à matriz europeia, nos séculos XX-XXI, as atitudes de alinhamento e reverência, autonomia e assimilação crítica, instrumentalização ideológica e política, suspeição e defenestração.

O oitavo texto é “Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica”, de Jonas Gonçalves Coelho, comentado por Leonardo Ferreira Almada. A questão sobre a qual Coelho se propõe refletir, nesse artigo, é se, e em caso afirmativo, em que termos, uma abordagem fisicalista não reducionista e interacionista explica a relação entre consciência e cérebro. Para tanto, o autor toma como fio condutor o problema da lacuna explicativa, em sua relação com o problema da lacuna ontológica, o que envolveu duas questões entrelaçadas: 1. A existência de uma lacuna explicativa implica a existência de uma lacuna ontológica? 2. A inexistência de uma lacuna ontológica implica a inexistência de uma lacuna explicativa? Na visão do autor, essa reflexão pode ser bem-vinda, uma vez que essas duas perspectivas, a epistemológica e a ontológica, muitas vezes se confundem e não são compreendidas.

Em penúltimo aparece “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”, escrito por José Crisóstomo de Souza e comentado por Waldomiro J. Silva Filho. Souza apresenta os elementos básicos de um novo paradigma poético-pragmático e destranscendentalizado para a filosofia, situado entre o pragmatismo e a filosofia da práxis, como uma posição não fundacionista, não representacionista, antirrelativista, essencialmente oposta às formas linguocêntricas ou simplesmente intersubjetivistas dominantes, hoje em dia, na cena filosófica não mentalista. Como parte dessa apresentação, o texto recapitula a metodologia, de trabalho coletivo, plural e concertado, que corresponde, no plano do fazer filosofia, ao espírito do paradigma, e a plataforma geral por trás do seu desenvolvimento progressivo.

Por fim, o décimo texto é “Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do sapiens”, de Lucia Santaella, comentado por Adriano Messias. Conforme ressalta a autora, a sua formação, no campo das linguagens – musicais, visuais e verbais – foi sempre marcada pela atenção à materialidade das próprias linguagens e aos meios pelos quais elas são transmitidas, de sorte a permitir suas funções comunicativas. Desde o aparelho fonador, instalado no próprio corpo, esses meios se constituem como tecnologias que foram evoluindo, através dos séculos, trazendo consigo novas formas de linguagem, tais como as distintas formas de escrita, a galáxia de Gutenberg e, do século XIX para cá, as revoluções industrial, eletrônica e digital, cada qual introduzindo tecnologias que lhe são próprias.

Quando as questões de linguagem são colocadas no foco da atenção, o que importa, desde a Revolução Industrial, é o advento de tecnologias cognitivas, como são a fotografia e o cinema, seguidas das tecnologias eletrônicas – rádio e televisão – e, por fim, a explosão da revolução digital, com todas as suas novas formas de linguagens e, consequentemente, de cognição, que hoje se distribuem pelos mais distintos aplicativos e plataformas. Conforme Santaella, o estudo dessa evolução a levou a postular, a partir da inspiração colhida em alguns autores, que a cognição humana está, desde as primeiras formas de escrita, crescendo fora da caixa craniana. Por conseguinte, é uma proposta que diz respeito à exossomatização da inteligência e da cognição humana, com todas as contradições que isso traz. Santaella dedica esse artigo à explicitação dessa proposta, com atenção ao modo como ela foi se desenvolvendo, no seu pensamento.

 

Assim está constituída essa primeira parte do fascículo, publicada em maio de 2023. O Tomo 2, publicado em julho do mesmo ano, ficou constituído da seguinte maneira.

O primeiro artigo do Tomo 2 é “Hábitos e racionalidade: um estudo filosófico-interdisciplinar sobre autonomia na era dos Big Data”, escrito em parceria por Maria Eunice Gonzalez, Mariana C. Broens, José Artur Quilici-Gonzalez e Guiou Kobayashi, e comentado por Maxwell Morais de Lima-Filho. Os autores discutem o seguinte dilema: por um lado, o crescente impacto das Tecnologias de Comunicação e Informação nos hábitos cotidianos parece influenciar a dinâmica da opinião pública, reforçando crenças irracionais e criando a impressão de que a autonomia da opinião e das decisões das pessoas é apenas um mito. Por outro lado, as pessoas parecem agir racionalmente, na maioria das vezes, nas circunstâncias normais da vida cotidiana, como se suas ações habituais resultassem de decisões relativamente autônomas. A hipótese proposta pelos autores, para superar o dilema, é que as pessoas podem agir racionalmente, na maioria das vezes, mas têm suas opiniões influenciadas por informações insuficientes ou distorcidas ou por hábitos e disposições emocionais previamente adquiridos. Essa hipótese, por sua vez, será examinada em função de uma perspectiva filosófico-interdisciplinar, considerando o papel das escolhas racionais na dinâmica de formação da opinião autônoma. Com diagramas ilustrativos, eles argumentam que hipóteses da teoria dos Sistemas Complexos podem auxiliar a compreensão do possível papel de disposições emocionais, no processo de formação de opiniões.

Em seguida vem “Leis de ponte na filosofia da mente e nas ciências físicas”, de Osvaldo Pessoa Jr., comentado por José Gladstone Almeida Júnior. No debate sobre a redutibilidade da mente ao corpo, o autor sustenta não ser plausível supor que tal redução possa se dar apenas a partir das condições físicas basais, mas que é necessário levar em conta também as leis de ponte psicofisiológicas. Essa posição é geralmente considerada antirreducionista, na Filosofia da Mente, mas Pessoa Jr. prefere chamá-la de “reducionismo indutivo”, devido à analogia com duas outras formas de determinação, nas Ciências Físicas: o determinismo causal e o reducionismo escalar espacial. A discussão é feita com base em “sondas epistemológicas” abstratas, como o demônio de Laplace, o demônio escalar e o demônio psicofisiológico. O autor critica, ainda, a noção de causalidade sincrônica usada por Searle.

Em terceiro lugar, publicamos “A cultura pode evoluir?, de autoria de Paulo C. Abrantes, comentado por João Pinheiro. O artigo parte de uma distinção entre tipos de descrição que podem ser propostos para uma dinâmica populacional, incluindo uma descrição “darwiniana”, em termos de variação, herança e aptidão diferencial, envolvendo as entidades que compõem a população relevante. Depois disso, Abrantes propõe uma categorização de tipos de populações culturais e investiga as condições mais gerais que precisam ser satisfeitas, para que as dinâmicas dessas populações tenham um caráter evolutivo e darwiniano, com ênfase na população composta pelos próprios traços culturais. O autor destaca algumas abordagens da evolução na linhagem hominínea, como a teoria da dupla herança e a memética, as quais concedem à evolução cultural um lugar privilegiado, nos seus cenários. Essas abordagens contribuem, desse modo, para o desenvolvimento de uma teoria geral da evolução cultural, de maneira que as compara, nesse tocante, com outras abordagens. Abrantes defende que esses confrontos também permitem ilustrar analogias entre a evolução biológica e a evolução cultural, bem como falhas na analogia.

“Sobre o status metafísico das cores” é o próximo artigo publicado, de autoria de Plínio Junqueira Smith, com comentários de Luiz A. A. Eva e de Raquel Krempel. Smith desenvolve uma concepção sobre as cores como parte de uma visão cética do mundo. Para isso, investiga como alguns dos principais céticos, ao longo da história da filosofia, conceberam as cores, seja em relação a outras qualidades sensíveis, seja com respeito ao objeto físico. Depois, à luz do debate entre Barry Stroud e John McDowell, ele descreve aquela que lhe parece ser a concepção comum das cores e sustenta que o cético não apenas aceita que os objetos são coloridos, mas que ele pode saber qual é a sua cor, por meio da percepção.

Roberto Horácio de Sá Pereira, Sérgio Farias de Souza Filho e Victor Machado Barcellos escrevem “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão”, com comentário de César Fernando Meurer e Ralph Ings Bannell. Os autores defendem as seguintes teses: 1- o know-how não é uma forma de saber prático destituído de sentido proposicional; 2- a relação entre cada percepção e o corpo próprio é metafisicamente contingente (os organismos e os corpos podem variar, como podem inclusive variar os espaços que ocupam, em uma mesma experiência), 3- cabe ao cérebro configurar ou moldar um corpo físico (Körper) em um corpo vivo (Leib) e não o inverso; 4- o externismo fenomenal de base enativista, mesmo na sua forma branda, é empiricamente implausível: a correlação entre o caráter consciente da experiência sensorial com padrões neuronais espaço-temporais é muito mais sistemática e regular do que com a correlação com qualquer coisa fora do cérebro. Porém, na sua forma radical, é inteiramente implausível: duplicatas fenomenais não são necessariamente duplicatas de agência; em suma, 5- somos o nosso próprio cérebro, o qual possui um corpo, avatares e artefatos, devidamente configurados e moldados pelo cérebro, e não um corpo que possui um cérebro, dentre outros órgãos.

O sexto artigo dessa parte é “Uma visão de mundo filosófica”, de Rodrigo Reis Lastra Cid, comentado por Gregory Gaboardi. O objetivo desse texto é apresentar uma visão de mundo filosófica, especificamente metafísica. A importância disso é justamente obter uma visão generalista da realidade, em um momento quando as discussões filosóficas se tornam cada vez mais especializadas. A visão de mundo metafísica aqui focalizada é uma perspectiva geral sobre o tempo, o espaço, a matéria, as leis da natureza, a mente e a normatividade. Para realizar esse objetivo, em primeiro lugar, o autor aborda, em linhas gerais, a natureza da filosofia e sobre sua relação com a construção de uma visão de mundo. Em segundo lugar, reúne alguns argumentos para tratar da natureza das entidades mencionadas. Por fim, conclui, expondo uma visão de mundo metafísica unificada, que leva em consideração tais argumentos.

“O perspectivismo neutro e a função biológica de experiências fenomênicas”, de Sofia Inês Albornoz Stein, é o penúltimo artigo publicado, comentado por Ricardo Augusto Perera. Stein argumenta em favor de uma posição acerca da natureza da mente humana, que não é um fisicalismo reducionista e nem tampouco qualquer tipo de dualismo, seja de substância, seja de propriedade. Ela sustenta o perspectivismo neutro, inspirado no monismo neutro, de teor cientificista e materialista, o qual permite incluir experiências fenomênicas conscientes, como parte de cadeias causais de processos perceptivos, emocionais, cognitivos e deliberativos. Embora não existam ainda teorias, leis e dados que autorizem uma decisão final sobre qual o papel das experiências fenomênicas conscientes, em processos físico-químicos do corpo, evidências coletadas nas últimas décadas não apenas fortalecem a crença da autora, na correlação entre eventos físico-químicos e experiências qualitativas conscientes, como também aumentam o número de razões em favor da tese de que essas experiências realmente têm um papel funcional importante nos processos de coleta e uso de informações pelo organismo.

Por fim, “Contextualismo e Relativismo na Ética”, de Wilson Mendonça, comentado por André Fuhrmann e por Léo Pruzzo Júnior, fecha este fascículo. De acordo com uma abordagem proeminente, na semântica formal contemporânea, a verdade das asserções morais depende de uma perspectiva normativa sobre os fatos do mundo. A implementação dessa abordagem, conhecida como contextualismo indexical, concebe a dependência da verdade moral vis-à-vis a perspectiva moral correspondente, em analogia com a dependência contextual característica de sentenças contendo termos indexicais.

Alternativamente, a perspectiva moral é vista como configurando as circunstâncias de avaliação, nas quais o conteúdo expresso pela ocorrência de uma sentença moral é avaliado como verdadeiro ou falso. Ainda segundo o autor, a versão moderada dessa visão alternativa (o contextualismo não indexical ou relativismo moderado) considera que a verdade da ocorrência de uma sentença moral, em um contexto de uso, é determinada pela avaliação do seu conteúdo na “circunstância do contexto”: a circunstância de avaliação representada pelo mesmo conjunto indexado que representa o contexto de uso.

A versão radical (o relativismo de apreciação), por sua vez, faz a verdade da ocorrência de uma sentença moral em um contexto depender essencialmente do valor do padrão normativo em outro contexto, em função do qual o enunciado original é apreciado. Tomando o juízo sobre o status moral do casamento poligâmico como ilustração, Mendonça examina os méritos concorrentes de explicações contextualistas e relativistas do uso da linguagem moral, especialmente em situações de desacordo e debate. Ele argumenta que, embora o contextualismo indexical acoplado a considerações pragmáticas adequadas possa explicar alguns dados relevantes do desacordo, a explicação alternativa desses dados, dada pelo contextualismo não indexical, é preferível, porque mais simples e mais econômica. Ademais, defende que o relativismo de apreciação está mais bem situado do que o contextualismo não indexical, para explicar os fenômenos relevantes da retratação obrigatória, podendo, portanto, acomodar mais facilmente algumas possibilidades discursivas que desempenham um papel central em debates morais.

 

Assim está constituído este fascículo, que teve como finalidade reunir pensadoras e pensadores, a fim de alavancar a ideia de uma filosofia que pense problemas a partir de uma perspectiva que considere também o contexto no qual vivemos, procurando entender e propor soluções para questões nossas, em busca de uma identidade nacional, de um pensamento autônomo e independente, somando-se aos estudos já consagrados na filosofia feita no Brasil, de cunho mais historiográfico.

É com esse intuito de contribuir para o fortalecimento de uma identidade nacional que este fascículo é apresentado, inaugurando as comemorações do jubileu de ouro da Trans/Form/Ação, que, em 2024 completa 50 anos de existência. Desejamos, com isso, fazendo jus ao seu próprio nome, transformar, sem a necessidade de destruir, o pensamento nacional, em vistas de nossa inserção propositiva no cenário filosófico mundial.

Agradecemos a participação de todos aqueles que nos ajudaram a compor este fascículo e desejamos boas leituras e discussões, a partir delas.

 

Referência

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9-20, 2021.

 

Recebido: 20/06/2023

Aceito: 25/06/2023



[1] Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.