Comentário a Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica”


Leonardo Ferreira Almada1


Referência do artigo comentado: COELHO, J. S. Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 277- 294, 2023.


No artigo “Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica”, Coelho (2023) se propõe a apresentar a posição teórica que, há alguns anos (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 2023), tem defendido em filosofia da mente: trata-se, mais especificamente, de uma perspectiva que se propõe fisicalista não-reducionista e interacionista, e cuja finalidade é a de equacionar as relações de interação entre consciência e cérebro. A esta posição, Coelho (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 2023) designou de ‘abordagem dupla face’ (double face view) da relação mente-cérebro2 (doravante ‘abordagem dupla face’).

No presente texto (COELHO, 2023), a estratégia argumentativa a qual recorre para nos apresentar sua ‘abordagem dupla face’ é a de tomar como ponto de partida duas de algumas das questões de cujas respostas depende seu modelo, quais sejam: (i) a relação entre consciência e cérebro é adequadamente equacionada por uma abordagem fisicalista não-reducionista e interacionista?; no caso de a resposta à (i) ser afirmativa, (ii) quais são os motivos sobre os quais devemos nos sustentar para defender que (i) seja o caso?

Essas perguntas revelam que a intenção de Coelho (2023) é a de depreender a defesa da ‘abordagem dupla face’ da análise das relações entre a (i) lacuna explicativa e a (ii) lacuna ontológica. Novamente, duas são as questões que Coelho (2023) elege para determinar sua estratégia argumentativa, a saber: (i) a suposta existência de uma lacuna explicativa implica uma lacuna ontológica?; (ii) a suposta inexistência da lacuna ontológica implica a inexistência da lacuna explicativa? Sua estratégia metodológica é, pois, a de demarcar as aproximações e os distanciamentos entre as perspectivas epistemológica e ontológica do problema das relações consciência-cérebro.

Grosso modo, a ‘abordagem dupla face’ propõe que: (i) há duas faces e direções na relação entre consciência e cérebro: consciência → cérebro e cérebro → consciência; (ii) essas duas faces (consciência e cérebro) são entidades distintas, irredutíveis e inseparáveis; (iii) cada uma dessas faces exibe propriedades, e cada uma destas propriedades têm poder causal sobre a outra, o que significa dizer que, há, nessa relação, duas direções; (iv) o cérebro é incorporado e situado em nível físico e sociocultural; (v) a consciência é propriedade do cérebro; (vi) a consciência é incorporada e situada fenomenalmente; (vii) o cérebro causa a existência da consciência, e a consciência causa modificações na estrutura e funcionalidade do cérebro; (viii) a consciência não é uma substância; (ix) o papel causal do cérebro deve ser compreendido como inseparável do cérebro, ou ainda, como não-epifenomenal.

O conjunto de premissas/suposições sobre as quais se sustenta a posição de Coelho (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 2023) faz com que a análise acerca das relações entre as lacunas explicativa e ontológica seja imprescindível. Afinal, é preciso que fique claro como é possível que, nos níveis epistêmico e ontológico, não haja lacunas explicativa e/ou ontológica entre duas entidades que, embora sejam e distintas e irredutíveis, sejam, a um só tempo, inseparáveis.

Ao fazermos uma análise mais distante da ‘abordagem dupla face’, pode ser que algumas dúvidas sejam suscitadas por sua apresentação inicial e geral, no caso: (i) o que mais precisamente o autor entende por face, já que ambos — consciência e cérebro — são igualmente face? Com efeito, se ambos são igualmente face, então face não é propriedade ou algo similar; (ii) o que o autor entende por entidade, a ponto de considerar que consciência e cérebro sejam igualmente entidades?; (iii) nas relações bottom-up e top-down, o autor recorre à causação ascendente e descendente, ou, antes, a outros expedientes, como o de determinação descendente?; (iv) caso o autor não recorra ao expediente de determinação descendente, seria uma alternativa interessante para dar conta das formas por meio das quais a consciência causa modificações na estrutura e funcionalidade do cérebro? É preciso reconhecer, algumas dessas questões, como as (iii) e (iv), são solucionadas adiante, ao passo que outras permanecem mesmo após o encerramento da leitura do texto, o que é o caso das questões (i) e (ii). A boa notícia é que, neste texto, as questões mais espinhosas são bem tratadas por Coelho (2023).

Algumas dificuldades conceituais importantes dizem respeito a como se dá exatamente a relação top-down. Será legítima a diferenciação feita por Coelho (2023) entre (i) estímulos físicos corpóreos e externos e (ii) práticas socioculturais? A abordagem de Coelho (2023) reconhece a necessidade de termos clareza não apenas em como devemos conceber a direção cérebro → consciência (bottom-up), mas também como devemos supor a direção inversa. Nos últimos anos, tem havido uma grande quantidade de publicações bem-informadas e referenciadas dedicadas a tratar da natureza bidirecional das relações entre consciência e cérebro (ELLIS, 2019; FUCHS, 20202; TAYLOR et al., 2010; VANDERHASSELTAB; OTTAVIANI, 2022). Ao encerrar a leitura do texto de Coelho (2023), posso afirmar que mais uma produção se une ao grupo das engenhosas tentativas de explicar as interações consciência e cérebro sem negligenciar o problema das lacunas explicativa e/ou ontológica.

Um ponto digno de consideração na constituição da perspectiva de Coelho (2023) diz respeito a como lida com as espinhosas relações entre conexões causais e conjunções regulares no que diz respeito a como o cérebro atua causalmente sobre a consciência: ora, há, em filosofia e em psicologia, uma compreensão muito difundida de que regularidade correlacional (ou simplesmente correlação) não é causação. Essa compreensão remonta à David Hume. O que ocorre é que, apesar de concordar com a tese humeana, Coelho (2023) opta pela compreensão de que a identificação de conjunções regulares é o meio mais adequado para se identificar as causas, isto é, para explicar os efeitos: ou seja, Coelho (2023) assume que, já que a causação implica a regularidade, então podemos concluir que a presença de conjunções sinaliza causação entre causas (cérebro) e seus efeitos (consciência). Talvez o leitor possa se questionar se de fato a lacuna possa ser abarcada pela suposição de que a regularidade pressupõe causação. Não haveria aí uma lacuna entre causação e correlação? Esta dificuldade não passa batida por Coelho (2023), que enfrenta, a seguir, a lacuna, propondo que: (i) inexiste uma causa física da consciência concorrente com o cérebro; (ii) os fenômenos mentais embora qualitativos, não são substanciais, podendo ser facilmente concebíveis como decorrentes de atividade neural; e, por fim, um pressuposto um pouco menos consistente: (iii) a riqueza do cérebro é suficiente para nos fazer crer que o cérebro seja a causa de toda vida mental considerada em sua complexidade.

O ponto mais difícil é também enfrentado por Coelho (2023), a saber: como devemos lidar com as relações causais entre consciência e cérebro. Eis como se dá, em linhas gerais, a engenhosa argumentação de Coelho (2023): (i) a consciência não é uma substância cartesiana. Portanto, (ii) a consciência não causa eventos cerebrais. Com efeito, (iii) a consciência não possui independência ontológica em relação ao cérebro. Por isso mesmo, a consciência não possui qualquer poder causal inerente à sua natureza qualitativa. Antes, a (iv) consciência é uma propriedade qualitativa do cérebro. É esta característica que permite ao cérebro interagir causalmente consigo mesmo, com seu corpo e com o ambiente externo ao corpo. O foco da direção consciência cérebro recai, portanto, sobre o poder causal do cérebro, cujas propriedades qualitativas explicam como sua estrutura e funcionalidade é alterada.

O que dizer, portanto, da proposta teórica de Coelho (2023) em sua intenção de sustentar uma abordagem fisicalista não-reducionista e interacionista para a relação entre consciência e cérebro? Coelho (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 202X) tem sido muito feliz em seu projeto de sustentar a possibilidade de suprir a lacuna ontológica no âmbito de como propõe as relações causais entre o cérebro e a consciência. A chave de sua solução está na noção de consciência como propriedade do cérebro, e, a seu favor, conta com amplos recursos teórico-argumentativos ou pelo menos inspirações que toma de empréstimo de autores como David Chalmers, Joseph Levine, Colin McGinn e, dentre outros, Thomas Nagel. Justamente por esse último motivo, soa incoerente ou exageradamente entusiasmada sua afirmação de que as neurociências constituem o único programa epistemológica capaz de explicar tanto (i) como a consciência se origina quanto (ii) o espaço que ocupa no mundo natural.


REFERÊNCIA

COELHO, J. G. Mente como Cérebro e Cérebro como Mente: A Dupla Face da Relação Mente-Cérebro. In: Monica Aiub; Maria Eunice Quilici Gonzalez; Mariana Claúdia Broens. (Org.). Filosofia da Mente, Ciência Cognitiva e o pós-humano: para onde vamos? p. 93-99. São Paulo: FiloCzar, 2015a.

COELHO, J. G.. Cérebro e Mente: Cognição, Emoção e Autocontrole. In: Marcelo Carvalho; Dirk Greismann; Jonas Gonçalves Coelho; Paulo Ghiraldelli. (Org.). Pragmatismo, Filosofia Analítica e Filosofia da Mente (pp. 322-347). São Paulo, SP: ANPOF, 2015b.

COELHO, J. G. A Double Face View on Mind-Brain Relationship: The Problem of Mental Causation. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 40, p. 197-220, 2017.

COELHO, J. G. Abordagem Dupla Face da Relação Mente Consciente e Cérebro: A Visão Como Exemplo Paradigmático. In: Gustavo Leal de Toledo; Rodrigo A dos S. Gouvea; Marco Aurélio Sousa Alves. (Org.). Debates Contemporâneos em Filosofia da Mente. São Paulo, SP: FiloCzar, 2018.

COELHO, J. G. A Relação Mente-Cérebro e o Efeito Placebo: Uma Abordagem Dupla Face. In: Marcos Antonio Alves. (Org.). Cognição, Emoções e Ação. São Paulo, SP: Cultura Acadêmica, 2019.

COELHO, J. S. Consciência e cérebro: lacuna explicativa e lacuna ontológica. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 277- 294, 2023.

ELLIS, G. Top-down effects in the brain. Psysics of life reviews, v. 31, p. 11-27, 2019.

FUCHS, T. The Circularity of the Embodied Mind. Frontiers in Psychology, v. 11, artigo 1707, p. 1-13, 2020. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.01707

TAYLOR, A et al. Top-Down and Bottom-Up Mechanisms in Mind-Body Medicine: Development of an Integrative Framework for Psychophysiological Research. Explore: The Journal of Science & Healing, New York, v. 6, n. 1, p. 29-41, 2010.

VAN GULICK, Robert. Consciousness. In: ZALTA, Edward N. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2018 Edition). Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/spr2018/entries/consciousness/>. Acesso em 26 ago. 2021.

VANDERHASSELTAB, M-A., & OTTAVIANI, C. Combining top-down and bottom-up interventions targeting the vagus nerve to increase resilience. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, v. 132, p. 725-729, 2022.



Recebido: 21/02/2023

Aprovado: 27/02/2023



1 Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9777-5667. E-mail: umamenteconsciente@gmail.com.

2 A análise das publicações de Coelho (2015a, 2015b, 2017, 2018, 2019, 2023) me faz entender que a flutuação entre as expressões ‘mente’ e ‘consciência’ não interefe na compreensão e exposição da abordagem que o autor tem defendido. Minha opção neste parecer avaliativo pela expressão ‘consciência’ encontra sua justificativa na opção de Coelho (2023) pelo termo desde o título do presente artigo.