Adriano Messias1
Referência do artigo comentado: SANTAELLA, Lucia. Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do sapiens. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 347 - 362, 2023.
Hoje, vivemos uma convergência vertiginosa de tecnologias que transformam o corpo e as possibilidades do humano, a cada instante. Alterações que, no passado recente, levavam décadas, agora acontecem em anos ou meses. Somos, sem dúvida, uma espécie não apenas gregária, dotada da linguagem simbólica – que lhe conferiu amplo domínio do planeta e da biota no decorrer de uma perambulação de mais de duzentos mil anos –, mas também dispersa em redes ubíquas de comunicação. Como bem pontua a pesquisadora Lucia Santaella em seu artigo, fomos hábeis em permitir a exossomatização da inteligência. Ou seja, para além de meros aportes tecnológicos que nos permitissem aprimorar habilidades circunvizinhas, levamos nossas “extensões cerebrais” a todo o orbe – o qual se vê afetado, para o bem ou para o mal, por nossas ações.
A sétima revolução cognitiva, tão bem demarcada por Santaella (2023) – expressa igualmente pela dataficação, pela internet das coisas – a IoT –, e pela inteligência artificial – a IA –, conforma a realidade com a qual já nos confrontamos. Não se trata de algo por vir ou de futurologia. Temos os pés bem fincados no território dos zetabytes e nos tornamos, dia a dia, inforgs, esses “ciborgues 2.0” que fazem uso de uma tecnologia cada vez mais porosa, rarefeita, desmaterializada, mas incrivelmente potente. À medida que se abstrai do próprio corpo, o humano imerge em aventuras tecnológicas até mesmo difíceis de serem decifradas: esperamos chegar, em tempos não tão distantes, a ver a troca de membros e órgãos por seus similares artificiais de forma corriqueira e acessível, quando doenças que hoje demandam tratamentos invasivos e dolorosos serão curadas com interferências da nanomedicina.
Entretanto, toda essa rápida alteração para outro eixo – e aí se justifica o termo “revolução” – não deixa escapar questionamentos muito pontuais que atingem até mesmo a própria ontologia. O que será, daqui em diante, o humano? Santaella já responde parte dessa indagação em sua obra Neo-humano. A sétima revolução cognitiva do Sapiens (2022), elucidativa sobre todas as formas de cultura pelas quais passamos até atingirmos a atual cultura dos dados, de onde se abre a pergunta: o que iremos chamar de realidade, doravante?
Sigo com Edgar Morin (1975, 2012), autor citado no artigo em análise, que comentou a andança linguística labiríntica e errática das paleossociedades rumo às arquissociedades – vencedoras, até certo ponto, pela resistência da genealogia Homo e, posteriormente, sapiens, mas fracassadas, em parte, na tentativa de manterem tanto o diálogo interespécies quanto o hibridismo, e creio que este é um dos desafios para o neo-humano: estamos nos umbrais do Antropoceno, quando precisamos, cada vez mais, de ações rápidas e urgentes que amenizem os impactos, muitos dos quais já inalterados, que deixamos pelo planeta. E se foi por conta de nosso maior artifício – a linguagem – e seus desdobramentos – a cultura, a tecnologia – que impactamos a biota, haverá de ser também por esse mesmo recurso que teremos de dar conta desse globo altamente modificado pelo sapiens, agente terraformador como nunca visto. Ou seja, se há alguma esperança para nossa espécie, esta reside em como ela própria traduzirá em ética todas as ações de seu vasto arsenal tecnológico.
O neo-humano é uma hipótese assertiva, muito bem fundamentada na longa trajetória sapiens até o atual momento, e se revela, mais do que uma terminologia, um novo campo para investigações da epistemologia. A partir de onde, porém, encontrar alguma possibilidade de renovação de nossos paradigmas, frente ao planeta e à biota? Retornamos ao velho problema da “natureza”, imposição filosófica irrecusável do Esclarecimento? Penso que não, seguindo também o pensamento antidualista de Santaella (2023). E há aqui uma pergunta que se faz muito necessária e honesta: quando não fomos antropocêntricos? Sabemos que os pré-históricos registravam o mundo sob sua ótica: basta analisar os painéis nas cavernas europeias de trinta mil anos atrás, para se perceber o que são as marcas do antropocentrismo – ainda que ecologistas radicais queiram alegar, naquelas representações, uma comunhão absoluta e terna do homem com o meio selvagem, o qual é outro retorno ao mito do paraíso perdido, da Mãe Natureza, do silvícola rousseauniano. Antropomorfizamos tudo o que tem a ver com a natureza: os riachos cantam, as matas sofrem com as queimadas, as cigarras apaixonadas se amam sobre a casca das árvores, os vírus são malvados vilões, porque destroem famílias.
Em vez de pretendermos pensar uma natureza absoluta e apartada de nossos juízos, talvez o melhor apelo à nossa responsabilização na Terra seja justamente entendermos essa natureza como modificável perante as ações do neo-humano. Acolho as palavras do filósofo Paulo Preciado, quando de sua manifestação na Jornada Internacional da Escola da Causa Freudiana de Paris, em 2019:
Estamos prestes a abandonar esse regime de capitalismo mundial integrado, para usar a terminologia de Félix Guattari. Se as mudanças econômicas, políticas e tecnológicas que conduziram ao regime da diferença sexual e ao capitalismo colonial levaram três séculos para ser produzidas, a rapidez das mudanças técnicas e a urgência das decisões políticas concernentes à destruição do ecossistema e à sexta extinção nos colocam em uma modalidade de mudança ainda mais rápida, talvez iminente. Internet, física quântica, biotecnologia, robotização do trabalho, inteligência artificial, engenharia genética, novas tecnologias de reprodução assistida e viagem extraterrestre precipitam igualmente as transformações sem precedentes em direção a outras modalidades de existência entre o organismo e a máquina, o vivo e o não vivo, o humano e o não humano, enquanto novas hierarquias no domínio político aparecem e desaparecem. (PRECIADO, 2022, p. 82).
O que Santaella (2023) propõe é justamente uma reflexão que nos coloca em uma via condizente com uma tecnologia que possa ser empregada a favor da vida. Assim como ela pontuou lucidamente a relevância filosófica de Blade Runner, o caçador de androides (Blade Runner, Ridley Scott, 1982), valho-me aqui de outro grande filme, Alien, o oitavo passageiro (Alien, Ridley Scott, 1979), na mesma esteira das conjecturas scifi que nos marcam há gerações, pelo excelente diretor: o alien é um pesadelo biotecnológico que revela uma função especular e, também por isso, nos assusta tanto. Todavia, a angústia habita a suspensão, jamais a certeza. O monstro de Scott, ao se revelar aos humanos, entra em outro plano, muito mais próximo ao fóbico do que ao angustiante, no sentido atribuído por Lacan: o alien, então, se apresenta como objeto, assim como o cavalo para o pequeno Hans. O espectador já sabe o que é o monstro espacial, ainda que já o supusesse – e aí, obviamente, está o jogo do inverossímil do qual participamos, ao ver um filme. Serve-nos de alerta, pois a predação alienígena é apenas uma outra face da moeda que a ficção nos permite ver, em alerta metaforizado (cf. MESSIAS, 2022, 2023). Afinal, como propõe a pesquisadora, uma vez mais aludindo ao célebre texto de Morin (1975), somos Homo faber, loquens, ludicus, sapiens, digitalis e também demens. Eis o grande paradoxo da condição humana.
Referências
MESSIAS, Adriano. Todos os monstros da Terra: bestiários do cinema e da literatura. Edição revista e ampliada. São Paulo: Blucher, 2022.
MESSIAS, Adriano. Cinema e Antropoceno: novos sintomas do mal-estar na civilização. São Paulo: Blucher, 2023 (no prelo).
MORIN, Edgar. O enigma do homem. Para uma nova antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. A identidade humana. Porto Alegre: Sulina, 2012.
PRECIADO, Paulo B. Eu sou o monstro que vos fala. Relatório para uma academia de psicanalistas. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
SANTAELLA, Lucia. Neo-humano. A sétima revolução cognitiva do Sapiens. São Paulo: Paulus, 2022.
SANTAELLA, Lucia. Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do sapiens. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 347- 362, 2023.
Recebido: 02/03/2023
Aprovado: 11/03/2023
1 Docente em Semiótica Psicanalítica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP – Brasil. Doutor em Comunicação e Semiótica com pós-doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3161-7324. E-mail: adrianoescritor@yahoo.com.br. Site: adrianomessias.com