Comentário a “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”: a filosofia é conversação


Waldomiro J. Silva Filho1


Referência do artigo comentado: Souza, J. C. de. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 301- 338, 2023.


I

O materialismo prático-poiético proposto por José Crisóstomo de Souza é uma contribuição original e, na minha opinião, de grande relevância para o debate filosófico no Brasil, hoje. Souza é um destacado filósofo e pesquisador da Universidade Federal da Bahia, autor de uma obra incontornável sobre o neo-hegelianismo (SOUZA, 1992, 1993) e de um importante trabalho sobre pragmatismo (SOUZA, 2005). O seu materialismo prático-poiético (MPP) é uma posição filosófica que vem sendo desenvolvida em um conjunto de publicações de grande repercussão, no ambiente acadêmico (entre elas, ver SOUZA, 2005, 2012, 2015, 2019a, 2019b, 2019c, 2020a, 2020b), e elaborada num intenso debate com filósofos brasileiros e estrangeiros.

Grosso modo, a contribuição do materialismo prático-poiético de José Crisóstomo de Souza tem uma pars destruens e uma pars construens. A pars destruens é uma severa crítica a posições filosóficas e práticas acadêmicas em geral e no Brasil, em particular. O materialismo prático-poiético (MPP), na sua própria origem materialista, é uma forma de crítica filosófica ao transcendentalismo, ao dogmatismo e ao essencialismo e a todas as formas de fundacionismo que sustentam teses gerais sobre a natureza humana. Do mesmo modo, também é uma crítica à hegemonia da “guinada linguística”, na filosofia analítica contemporânea. Nesse sentido, (MPP) se apresenta com uma posição deflacionista que não se compromete em acrescentar novas teses filosóficas de teor universal. O (MPP) também é uma crítica à prática filosófica entre nós, no Brasil, uma prática que, muitas vezes, quando muito, busca um amparo nos grandes edifícios intelectuais europeu e americano e se alheia da historicidade da nossa condição brasileira e pós-colonial.

A pars construens do (MPP) tem três faces. A primeira propõe uma radicalização do materialismo, retirando de Marx seus elementos dualistas e essencialistas e ressaltando o aspecto dinâmico e contextual da cognição e a da criação (poiésis) humanas. Essa radicalização envolve uma intepretação da herança intelectual do pragmatismo americano e alemão. Da sua crítica à filosofia, Souza formula um realismo prático-criativo baseado na prática sensível e do enfrentamento prático do mundo real, sem, contudo, assumir uma posição relativista. A segunda face envolve uma interpretação crítica da tradição intelectual brasileira, como aparece em Sílvio Romero, Cruz Costa, Tobias Barreto, Machado de Assis, Oswaldo Porchat, Gilberto Freyre, Vieira Pinto, Guerreiro Ramos, Oswald de Andrade, Anísio Teixeira, Celso Furtado e Roberto Mangabeira Unger. Na sua terceira face, o (MPP) se apresenta tanto como uma filosofia quanto como uma prática e uma plataforma de um grupo de intelectuais. Aqui, prática tem relação com o pragmatismo e com o sentido cotidiano de “aquilo que se faz” com um propósito. Nesses termos, a pragmática-poiética pode ser concebida como aquilo que um grupo de filósofos brasileiros fazem, quando procuram entender a tradição filosófica e a urgência da realidade.

Tudo isso é fascinante e estimulante e, realmente, merece nossa atenção. Em outra oportunidade, eu arrisquei fazer um primeiro e mais longo comentário das ideias presentes na proposta do materialismo prático-poiético de José Crisóstomo (ver SILVA FILHO, 2017).  


II

Neste comentário, eu gostaria de tratar de um ponto que, para mim, se destaca nos argumentos apresentados em “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”. Numa certa altura, o nosso autor afirma categoricamente: “Filosofia é conversação”. E, para sustentar essa afirmação tão forte, ele está amparado na tradição da dialética platônica, hegeliana e marxista e no sentido comum de diálogo. Sobre esse último aspecto, Souza diz que “[n]osso ponto de vista prático-poiético2 dialoga criticamente...” com Habermas, Rorty, Peirce, James, Dewey, Nietzsche, Heidegger, Comte, Bauer, Feuerbach, Max Stirner, Nancy Fraser, Rahel Jaeggi, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e outros, inclusive com o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1955-1964).

Souza sempre está se remetendo a um “nós” do (MPP), indicando que há um corpo de pesquisadores e filósofos envolvidos na elaboração e na prática dessa filosofia. Por isso, como prática filosófica, aqueles que praticam o (MPP) se propõem manter um diálogo aberto e criativo, numa forma de ativismo filosófico que emerge e interage com a realidade política e cultural do Brasil atual. Souza (2023, p. 302) escreve:

Fazer filosofia sendo, então, ter um paradigma para oferecer, a ser discutido e testado, a se medir com outros, e a ser, por essa razão, não só sistemática mas também dialeticamente constituído, ou pelo menos exposto. Tudo isso considerado, entendemos que filosofia envolve um trabalho em progresso e supõe uma comunidade de investigação e discussão.


Eu aprecio muito essa proposta de filosofia como a prática de uma comunidade de investigação e conversação. Souza pensa na conversação como um espaço de uma convergência, como um diálogo que integra diferentes atores e pensamentos. Por essa razão, para mim, o (MPP) está muito próximo àquilo que Edward W. Said (2004) chama de humanismo e prática crítica. Said trata do papel do filósofo, do intelectual, das humanidades, no ambiente dos desafios das democracias liberais – o que me parece ser o horizonte onde se movem as ideias e a prática de Souza, reconhecido como um democrata histórico. De acordo com Said (2004, p. 2), o humanismo deve ser pensado como uma prática que “[...] informa o que alguém faz como intelectual e professor erudito das humanidades no mundo turbulento de nossos dias, transbordante de beligerância, guerras reais e todo tipo de terrorismo.” O que interessa no humanismo, para ele, é como intelectuais, cientistas sociais, acadêmicos e artistas se dão conta da sua tarefa em conexão com o mundo real “em que vivem como cidadãos”.

Para mim, essa é a fortuna, mas também uma fragilidade da concepção de conversação do materialismo prático-poiético. Enquanto Souza parece se mover num espaço público caracteristicamente acadêmico (o que importa, em primeira instância, é a convivência dialógica entre intelectuais), eu, ao contrário, penso na conversação como conflito baseado em desacordos.


III

Eu estou certo de que o fato de que partilhamos uma linguagem comum, de que vivemos no mesmo mundo natural e de que temos uma mesma constituição humana nunca foi uma garantia para que os encontros entre pessoas conduziram para o entendimento mútuo, a compreensão, a convergência de opiniões ou, pelo menos, a aceitação da divergência legítima. Falar é uma habilidade, conversar é uma arte. Aprende-se a falar com o tempo, na experiência com os outros e na espantosa descoberta do mobiliário do mundo. Conversar, por sua vez, exige ainda mais tempo, esforço e treino, requer dirigir-se aos outros, interessar-se pelos outros, mover-se das nossas próprias perspectivas, interesses e opiniões para as perspectivas, interesses e opiniões das outras pessoas.

É incontroverso que nós temos crenças adquiridas por inúmeras fontes. O caso é que, na dinâmica das nossas vidas sociais, especialmente em contextos de democracia, as crenças podem ser constante e razoavelmente desafiadas. Esse é o cenário dos desacordos epistêmicos.3 No desacordo racional, os interlocutores têm posições divergentes acerca de uma proposição-alvo e contraem o direito legítimo de desafiar as crenças do seu interlocutor. No desacordo, aqueles que têm crenças podem (em certas situações devem) se envolver no esforço de apresentar as razões da sua crença. Em termos mais gerais, chamo de “contexto dos desacordos” a situação na qual uma pessoa, enquanto agente moral e epistêmico, está racionalmente autorizada a discordar de outra pessoa, diante das mesmas ou semelhantes evidências e de uma avaliação racional da questão. Nesse contexto, uma pessoa pode se manter fiel à sua própria perspectiva de partida e se sentir autorizada a ter um elevado grau de confiança na sua crença. Porém, o que realmente importa, para o debate filosófico, são as situações nas quais essa confiança pode ser, de algum modo, abalada pela palavra da outra pessoa, no caso em que uma pessoa é sensível ao desacordo.

Minha sugestão é que a discordância dialógica, o conflito dialético, entre sujeitos que se consideram e se tratam como pares, pode ser (às vezes, deve ser) uma motivação para a avaliação dos nossos saberes e comportamentos sociais. Enfim, a conversação, em um sentido relevante, é regida por tensão e conflito de opiniões que desafiam os participantes (voluntários) a disputar razões e se empenharem na busca de um bem moral ou epistêmico, como a verdade, o entendimento, o consenso, a tolerância etc. Eu concebo a conversação como atos comunicativos cooperativos, nos quais os participantes assumem propósitos comuns e contraem o compromisso de contribuir com declarações relevantes, ainda que discordantes. Se nos engajarmos em uma conversa estruturada como um desafio dialético, devemos assumir o seguinte compromisso: em disputas e desacordos, apresentar razões a favor das próprias crenças e considerar razões contra elas é a melhor coisa a fazer. Para que isso aconteça, devemos supor que as pessoas envolvidas assumem ou reconhecem metas e objetivos epistêmicos comuns. É uma norma da conversa que sempre que se faz as perguntas “por que você acredita?”, “por que você faz isso?”, a pessoa deve dar uma resposta. De um ponto de vista normativo, podemos esperar que cada participante se comprometa a reconhecer que seu interlocutor também pode ter razões para apoiar crenças opostas.

Essas habilidades para conversar não são naturais, nem são facilmente adquiridas. A longa jornada da filosofia é um modo de ensinar a conversar. A minha tese geral, diria, metafilosófica é: o único resultado importante da filosofia é ensinar a conversar. Nisso, é bem provável que eu me aproxime do materialismo prático-poiético. Contra qualquer forma de dogmatismo, a filosofia é uma maneira de nos prepararmos para desacordos, daí, a conversação – cujo fim é indeterminável.


IV

Existem dois caminhos para resolver as diferenças humanas: a violência e a política. Para praticar a política, há a necessidade de que os concernidos, os cidadãos, estejam preparados para os desacordos e a convivência com outras pessoas com opiniões e valores diversos. A filosofia, as humanidades, as ciências humanas, as artes e a literatura são meios de desenvolver certas competências fundamentais, como as capacidades de pensar criticamente, de transcender os compromissos locais e abordar as questões que vão além dos limites tribais e nacionais, de pensar como “cidadãos do mundo”. Nussbaum (2010, p. 7) alude a uma capacidade ainda mais fundamental, qual seja, a capacidade de imaginar, com simpatia, a situação difícil em que o outro se encontra.

Eu saúdo a prática filosófica de José Crisóstomo de Souza como uma realização intelectual muito importante entre nós, em especial, no horizonte dos desafios de um país que ainda não aprendeu a se pensar e encontrar bases sólidas para sua imatura democracia. O (MPP) está em sintonia com o desafio da própria democracia, como a busca de esclarecimento e diálogo. Souza nos apresenta uma filosofia que se dirige ao aqui e agora e que busca (necessariamente) o confronto de ideias, uma filosofia que “[...] gostamos de apresentar, não de esconder, [seus] cruzamentos e convergências com outras posições, de explorar aproximações e favorecer interlocuções, embora nada ecleticamente, sempre a partir de uma posição própria, bem articulada e delineada.” Essa é uma filosofia inspiradora.


Referências

CHRISTENSEN, D.; LACKEY, J. The Epistemology of disagreement. New York: OUP, 2013.

FRANCES, B. Disagreement. Cambridge: Polity, 2014.

NUSSBAUM, M. C. Not for Profit: Why democracy needs the humanities. Princeton, Oxford: Princeton University Press, 2010.

SAID, E. W. Humanism and Democratic Criticism. New York: Columbia University Press, 2004.

SILVA FILHO, W. J. Sobre o que a filosofia não: considerações sobre a “poética pragmática” de José Crisóstomo de Souza. Cognitio, v. 18, n. 2, p. 273-312, 2017.

SOUZA, J. C. de. Ascensão e Queda do Sujeito no Movimento Jovem Hegeliano. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1992.

SOUZA, J. C. de. A Questão da Individualidade: a crítica do humano e do social na polêmica Stirner-Marx. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.

SOUZA, J. C. de. A Filosofia como Coisa Civil. In: SOUZA, J. C. de (org.). A Filosofia entre Nós. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005.

SOUZA, J. C. de. (org.). Filosofia, Racionalidade, Democracia: Os debates Rorty & Habermas. São Paulo: Ed. Unesp, 2005a.

SOUZA, J. C. de. Marx and Feuerbachian Essence: Human Essence in Historical Materialism. In: MOGGACH, D. (org.). The Left Hegelians: New Philosophical and Political Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 2005b. p. 242-260.

SOUZA, J. C. de. Para uma Crítica ao (Não-)Pragmatismo de Marx. Cognitio, v. 13, n. 1, p. 115-144, 2012.

SOUZA, J. C. de. (O mundo bem nosso: anti-representacionismo poiético-pragmático, não linguístico. Cognitio, v. 16, n. 2, p. 335-360, 2015.

SOUZA, J. C. de. Nota sobre Linguagem e Realidade, Práticas e Coisas”. Cognitio, v. 20, n. 1, p. 137-149, 2019a.

SOUZA, J. C. de. Philosophy as a Civil & Worldly Thing, From a Brazilian Critical-Historical Perspective. Amazon Self-Publishing, 2019b.

SOUZA, J. C. de. Towards a Practical-Poietic, Material Point of View. Transcience (Univ. Berlim), v. 10, p. 16-33, 2019c.

SOUZA, J. C. de. A World of Our Own: A Pragmatic-Poietic Perspective, Conversationally Developed. Transcience (Univ. Berlim), v. 11, n. 2, p. 1-27, 2020a.

SOUZA, J. C. de. Pragmatismo Brasileño: Ni Rorty, ni Habermas, ni Marx. In: CÁRDENAS, P. R.; Herbert, D. R. The Reception of Peirce and Pragmatism in Latin America. México: Torres Asociados, 2020b. p. 121-148.

Souza, J. C. de. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 301- 338, 2023.

Recebido: 06/03/2023

Aprovado: 10/03/2023



1 Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil, Pesquisador CNPq. ORCID: 0000-0002-0874-9599. E-mail: wjsf.ufba@gmail.com.

2 A rigor, José Crisóstomo, no corpo do artigo “Materialismo prático-poiético: um outro paradigma para a filosofia contemporânea e brasileira”, não afirma que o (MPP) é uma criação individual, exclusivamente sua, mas o resultado de um trabalho cooperativo.

3 Há uma farta literatura sobre o assunto. Para uma visão geral, ver Christensen e Lackey (2013) e Frances (2014).