Comentário a “A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos”


Lúcio Álvaro Marques1


Referência do artigo comentado: DOMINGUES, Ivan. A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 251- 270, 2023.


Recebi o convite de Marcos Antonio Alves para fazer este comentário, com muita satisfação, tanto pelo interesse no tema quanto pela honra em comentar o artigo de quem admiro e leio há anos. Isso não significará nenhuma forma de amicus laude, porque magis amica veritas. Também não significa nenhuma forma de crítica, por serem apenas notas sobre um quodlibet de nosso interesse comum. Outrossim, a prática de comentar poderá, com o tempo, reduzir o silêncio monástico que ainda persiste entre muitos de nós.

O estudo em curso mencionado por Ivan Domingues sobre o logos, ethos, techne e kanon, na filosofia, torna-se mais necessário em razão das críticas ao “lugar epistêmico” que, de alguma maneira, gera certa confusão entre militância e produção acadêmica. No momento, o autor pensa os lugares epistêmicos clássicos, isto é, os universais matizados pela circunscrição local do pensamento filosófico nacional e autoral. O resultado mostra-se em duas partes: na primeira, pela compreensão de conceitos, como criação e emulação, mimesis e invenção, originalidade e autoralidade, e, na segunda, os lugares epistêmicos clássicos já mencionados. E, como está presente na conclusão, os resultados “[...] são ainda provisórios, não passando de ilações e suposições”, embora já se entrevê a possibilidade de “novas categorias analíticas” para compreensão de autoria e originalidade, criação e repetição. Não obstante, graças ao rigor típico do autor, o que foi dito já permite uma série de considerações.

Quanto à primeira parte – a autoralidade na filosofia –, Ivan parte da pintura e da literatura e chega aos matizes da autoria, na filosofia contemporânea, sobretudo francesa. Ele argumenta em favor de um conceito deflacionário de autoria, por não se tratar de nada a estilo ex nihilo, mas de algo mais próximo à “poética da emulação”. O desdobramento dessa ideia abre espaço para uma distinção entre autoralidade e originalidade, sendo que o original não é maximizado em função do seu caráter de antiguidade ou anterioridade. Outro passo decisivo refere-se à consideração da filosofia como hipertexto, cujo resultado se revelaria através da noção de criação deflacionária ou de criação relativa, recriação, expansão ou renovação, clivado nos exemplos de Heidegger 1 e 2 e Husserl.

Em relação a esse ponto, consideremos quatro aspectos: o primeiro, a ascensão da novidade como valor filosófico tem data recente no início da modernidade, com Descartes e Bacon, um valor com um fim que já foi datado por Vattimo (2002, p. XII); o segundo, a originalidade enquanto valor epistêmico não se refere apenas à anterioridade temporal ou à antiguidade (traditio), porém, à capacidade de tematizar as raízes, a arché epistêmica de uma questão, no caso, a originalidade não se confunde com a novidade, mas com a busca de compreensão das bases do pensamento de um autor ou de um período histórico; o terceiro, a noção de originalidade comporta dois aspectos básicos: um relativo à gênese de um pensamento, outro, atinente à capacidade de ser fiel ao original. O pensamento original, portanto, não é um pensamento novidadeiro, contudo, aquele que é capaz de ser fiel às suas origens (ad mentem auctoris).

O quarto aspecto se nota nas páginas do próprio Heidegger que serviu de exemplo nesta parte. Para ele, a originalidade no pensamento não decorre apenas da desconstrução do passado, como o fez em Ser e tempo (1927), mas justamente do passo atrás (Schritt zurück) em direção às fontes, à gênese e pressupostos teóricos de certo pensamento (MARQUES, 2022, p. 1-6). Nesse sentido, a autoralidade e a originalidade do pensamento brasileiro talvez requeiram sempre mais a compreensão de pressupostos históricos e filosóficos da herança lusa entre nós.

Quanto à segunda parte – paradigmas e métodos para a filosofia contemporânea brasileira –, o autor focaliza os séculos XX e XXI, estabelecendo uma separação entre, de um lado, o paradigma da formação com os clássicos autores sociais (Gilberto Freyre, Sérgio B. Holanda, Caio Prado, Raymundo Faoro e Antonio Candido) e filosóficos (Cruz Costa e Paulo Arantes) do século passado, “[...] evidenciando em suas obras seminais que as coisas se passaram assim em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX”, e, de outro, o paradigma da pós-formação, inaugurado sob a tutela da interdependência, da especialização, da taylorização e “pa(u)perização” do conhecimento, conforme a análise “[...] que eu [Ivan Domingues] introduzi em meu livro Filosofia no Brasil.” (2017).

O balanço não parece tão favorável, pois o autor indica como limiar a possibilidade de a produção filosófica acabar “[...] por bloquear o conhecimento novo, levando à morte do pensamento e, consequentemente, impedindo o surgimento do filósofo genuíno como pensador, no Brasil e por toda parte.” O ponto em pauta, como dito na conclusão, seria a “[...] distinção conceitual entre [i] a atopia da filosofia e sua inscrição na ágora transnacional e [ii] a heterotopia da filosofia e sua inscrição geográfica e histórica local.” Vale dizer, pensar a originalidade do pensamento requer uma compreensão do lastro histórico do pensamento com a realidade em que se pensa, cujo diagnóstico nada animador se lê em Lucero (2019).

Nessa parte, o autor situa sua Filosofia no Brasil (2017) como o ponto de viragem entre os paradigmas da formação e da pós-formação, obra em que formulou cinco atitudes bastante produtivas para a compreensão dos tipos intelectuais e que, doravante, se aplicarão à filosofia brasileira do século XX. Entretanto, como destacado no texto, a partir dos clássicos do século XX: “[...] todos eles evidenciando em suas obras seminais que as coisas se passaram assim em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX...” Esse ponto soa decisivo para pensar a originalidade e autoralidade na filosofia contemporânea brasileira, por diversas razões: a primeira, se considerar a instauração do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) como critério exclusivo para a instituição da filosofia entre nós, logo, só os filósofos profissionais seriam dignos do nome; a segunda, o critério seria mais restritivo que a proverbial expressão de Tobias Barreto, pois reduziria a contribuição brasileira às malhas da pesquisa especializada; a terceira, as obras seminais dos clássicos sociais e filosóficos do século XX mostram como as questões contemporâneas do Brasil não se resolvem apenas no hoje, ao contrário, têm raízes nos tempos coloniais. Por tudo isso, a questão posta por Ivan Domingues sobre o logos, ethos, techne e kanon, na filosofia brasileira, é urgente e não poderá ser pensada senão através do lastro histórico-genético.

Nesse sentido, alguns elementos parecem estruturantes para a compreensão dessa contemporaneidade filosófica brasileira (séculos XX e XXI), digo: a complexidade social no século XX traz problemas que requerem análises interdisciplinares de tópicos como urbanização e favelização, industrialização e pós-industrialização, violência e seguridade social, controle da terra e agronegócio, sustentabilidade e saúde, além do sistema público de ensino (que atende apenas cerca de 25% dos alunos do ensino superior), frente ao home schooling and businness knowledge. O advento tardio e precário do sistema público de ensino, confrontado pela mercantilização privatista de títulos acadêmicos, põe em pauta a origem seletiva e elitista do ensino superior nacional, cujas raízes remetem ao século XIX.

Neste século, o sistema de ensino com financiamento público precário viu nascer algumas faculdades timidamente distantes da sociedade, reservadas à elite e com baixa inserção social e cultural. Somem-se a isso as grandes transições que se operaram, graças ou não às lutas sociais: da colônia ao império, do império à república, do escravismo à libertação de escravizados e do padroado ao Estado laico. Enfim, era uma sociedade em transição, sem uma base social e política que subsidiasse a população na busca por condições mínimas de vida social e de desenvolvimento político e econômico. Tanto o século XX quanto o XIX ainda carecem largamente de pesquisas de base capazes de subsidiar uma compreensão estrutural dos problemas e avanços dessa sociedade, como advertiu L. Washington Vita, no Panorama da filosofia no Brasil (1969).

Por fim, como as grandes questões brasileiras “[...] passaram assim em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX”, seria igualmente estranho tentar compreender as razões do pensamento contemporâneo, esquecendo-se do trauma colonial. Uma sociedade mantida por mais de três séculos em um regime de exploração voraz, que sofreu a colonização do tempo e espaço, religião e cultura, língua e símbolos, território e formas de vida, corpos originários e africanos, ainda não superou os principais traumas coloniais: a integração de povos originários e africanos, a socialização da terra e de meios de produção e a universalização do sistema de ensino. Ao contrário, o ensino colonial foi religioso, com largo aporte financeiro da Coroa e restrito à elite e ao clero. Por isso, uma sociedade que ainda não se pôs no divã da história nem enfrentou seus traumas continua uma sociedade com pensamento alienado e alienante, mimético e emulador, incapaz de ultrapassar os muros da academia e prestar o serviço devido à sociedade onde se encontra.

Enquanto o pensamento filosófico deixar-se embalar por sistemas bem-construídos do pensamento do Eixo Norte, a filosofia continuará a fazer comentário e exegese para sua autoilusão. Pôr em questão o logos, ethos, techne e kanon da filosofia brasileira é analisar a legitimidade disso que fazemos como home office do pensamento do Eixo Norte. Haveria legitimidade em um pensamento encapsulado somente nas mãos dos especialistas que falam apenas a seus pares imediatos? Tal como a literatura, as ciências sociais e as artes que se tropicalizaram desde a Semana de Arte Moderna e, em alguns casos, antes mesmo disso, produzindo contribuições de inegável teor original e crítico, não é tempo de rever o estatuto epistêmico da filosofia, entre nós? Ou ainda devemos insistir na compreensão filosófica, sem uma psicanálise profunda e sistemática de nossa produção teórica e sem investigar o lastro “[...] em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX”?


Referências

DOMINGUES, Ivan. A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 251- 270, 2023.

MARQUES, L. Á. The Jesuit Philosophical Heritage in Brazil. Engaging Sources: The Tradition and Future of Collecting History in the Society of Jesus (Proceedings of the Symposium held at Boston College, June 11-13, 2019). Available in: https://doi.org/10.51238/ISJS.2019.27. Access: 18 Nov. 2022.

VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. 2. tiragem. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

VITA, L. W. Panorama da filosofia no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1969.



Recebido: 03/04/2023

Aprovado: 11/04/2023



1 Professor na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG – Brasil. https://orcid.org/0000-0002-7571-0977 . E-mail: lucio.marques@uftm.edu.br.