Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo


Marcos Silva1


Referência do artigo comentado: ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.


Vários filósofos contemporâneos têm desenvolvido teorias a partir do pragmatismo (amplamente interpretado), para motivá-lo como um fundamento filosófico alternativo a uma compreensão abrangente da cognição, oposta a uma tradição representacionalista de longa data. Essa tradição, há muito estabelecida na filosofia da mente e na ciência cognitiva, defende que a cognição envolve fundamentalmente alguma noção de conteúdo veritativo, pois seria essencialmente constituída por manipulações intelectuais (muitas vezes, internas ao cérebro) de representações que impõem condições de satisfação ao mundo.

Por outro lado, alguns contendores radicais defendem que a cognição não é inerentemente representacional nem pressupõe, como nas visões internalistas usuais, processamento ou manipulação de conteúdos informacionais no cérebro. Dentre eles, há os que chamam atenção para a importância das práticas herdadas e incorporadas e das interações sociais, a fim de compreender tópicos relevantes na percepção, na linguagem e na natureza da intencionalidade. Em especial, enativistas levam bastante a sério os sistemas biológicos em evolução e os indivíduos situados interagindo em comunidades, ao longo do tempo, como pré-condições de nossas atividades cognitivas, características muitas vezes negligenciadas como não centrais, na tradição representacionalista e internalista.

No contexto dessa discussão sobre a natureza da mente, do pensamento, da cognição e da racionalidade, as últimas décadas, de fato, testemunharam o surgimento da E-cognição como uma alternativa a uma maneira intelectualista, internalista e individualista de ver a cognição. A primeira é interativa, relacional e dinâmica, fornecendo ferramentas originais para nossa compreensão do que somos. Essa abordagem, portanto, incorpora mais insights biológicos ao debate sobre cognição, chamando a atenção para fatos básicos sobre os organismos vivos, como sua atividade perpétua de autoconstrução (autopoiese), sua necessidade de estar em constante adaptação às condições mutáveis do ambiente, a adaptabilidade e sua capacidade de resposta seletiva a aspectos específicos do ambiente, criando seu próprio mundo de significado (ação). Assim, a visão conservadora de que o conteúdo é a marca do cognitivo deveria ser rejeitada.

O recente texto “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”, de Giovanni Rolla, está inserido nessa disputa contemporaneamente quente, discutindo, de forma direta, com o artigo “Por que somos nossos cérebros”, de Pereira et al., publicado em 2022, no qual há uma batelada de argumentos contra a tradição enativista.

Rolla defende a tradição enativista com rigor conceitual e argumentativo, em uma tentativa de analisar um a um os argumentos novos e antigos contra ela, usando cada ataque presente no trabalho de Pereira et al. como fio condutor para as defesas do enativismo. O artigo de Rolla é bem-vindo também, porque esse tipo de polêmica em português entre artigos diametralmente opostos não é tão comum como deveria ser, na comunidade filosófica do Brasil.

O trabalho funciona ainda como uma boa revisão da literatura sobre enativismo e das produções recentes de seus principais autores, incluindo as do próprio Rolla.

A ênfase na réplica de Rolla aos cognitivistas Pereira et al. foi dada prioritariamente à falta de discussão, no artigo dos últimos, sobre a assunção primordial a respeito do seu representacionalismo de base, a saber: “Toda cognição envolve representação”. Essa assunção parece estar na estrutura entimemática dos argumentos de Pereira et al., apontada por Rolla. Ele destaca que o projeto enativista é um projeto naturalista que deseja dar uma explicação para a cognição aqui e agora, completa e sem lacunas. Em outras palavras, defende o oposto contraditório dos cognitivistas: nem toda cognição envolve representação, e, se envolver, é porque usa algum tipo de scaffolding social. Caso Rolla esteja certo nessa visão, ainda resta a grande questão de como as práticas socioculturais evoluíram de mentes sem conteúdo.

A alternativa propriamente cognitivista de Pereira et al. à tese enativista explica a cognição superior, mas parece ter dificuldade de naturalizar conteúdo semântico para casos básicos, como os movimentos corporais e a sensação. Se olharmos de um ponto de vista puramente biológico, não parece haver um argumento imbatível para acreditar, e nenhum fundamento definitivo para supor, que as conexões forjadas entre organismos e partes de seus mundos devam ser mais bem entendidas como instâncias de relações semânticas intracranianas envolvendo referência e verdade, por exemplo. Por que experiência, percepção e pensamento deveriam envolver condições de satisfação?

De fato, se olharmos fenômenos cognitivos sob uma perspectiva puramente biológica, esse tipo de tese cognitivista parece ser supérflua, do ponto de vista explanatório, e extravagante, do ponto de vista filosófico. Pensando de uma maneira simples, não há uma razão óbvia, como Rolla também defende, para que conexões básicas entre mente e mundo forjadas biologicamente devessem ser caracterizadas em termos semânticos, a partir de manipulações representacionais no cérebro. Acredito que esse seja o principal contra-argumento enativista contra as investidas cognitivistas feitas por Pereira et al. É importante notar que o uso liberal da noção de conteúdo ou representação não deve mascarar o fato de que muitos argumentos seriam necessários para estabelecer que todos os atos de experiência, percepção ou pensamento concernentes ao mundo abrangem conteúdos com condições de satisfação. Aqueles persuadidos por esse critério cognitivista considerariam simplesmente impensável que a ciência cognitiva pudesse abandonar a ideia de que os estados mentais básicos são representativos e envolvem conteúdo.

De acordo com o conhecido relato cognitivista, supõe-se que a informação seja captada pelos sentidos, através de múltiplos canais, codificada e depois processada e integrada de várias maneiras pelo cérebro, permitindo sua recuperação posterior. Mas, nessa visão, há uma incompatibilidade de raiz entre o erro de representação e a falha da função biológica. Expressando vários autores influentes, eles sustentam que somos avisados de que “[...] a evolução não lhe dará mais intencionalidade do que você carrega nela” (PUTNAM, 1992, p. 33); que existe uma distinção crucial entre “[...] funcionar adequadamente (sob as condições apropriadas) como um portador de informações e fazer as coisas corretamente (correção objetiva ou verdade)” (HAUGELAND 1998, p. 309); que “[...] a seleção natural não se importa com a verdade; ela se preocupa com o sucesso reprodutivo” (STICH, 1990, p. 62). E, por exemplo, como nos lembra Burge (2010, p. 303): “A evolução não se importa com a veracidade. Ele não seleciona a veracidade per se.”

Contudo, a pergunta permanece aberta: como naturalizar o conteúdo? Como explicar a origem natural do conteúdo? Foi nesse ponto que senti falta de uma discussão mais detalhada de Rolla sobre a duplex account apresentada por Hutto e Myin, em 2017, como alternativa ao problema aparentemente negligenciado por Pereira et al.

Com efeito, uma solução direta para a plena naturalização dos conceitos de conteúdo e de representações mentais requer, inter alia, explicar como é possível passar de fundamentos informacionais, os quais supostamente não possuem conteúdos, para uma teoria completa do conteúdo mental, usando apenas recursos naturalistas. A questão é como fornecer uma explicação naturalista completa e sem lacunas da cognição. Adicionalmente, críticas à possibilidade de um programa enativista de pleno direito têm sido colocadas, como a chamada “objeção scale-up”, ou seja, o desafio de se mostrar relevante para a investigação de problemas tradicionais relacionados à cognição de nível superior, englobando conceitos como conteúdos informacionais, estados representacionais, conhecimento matemático, raciocínios contrafactuais, pensamento simbólico, inferências lógicas etc. (SILVA, 2022). Conforme testemunham os desenvolvimentos recentes, a questão ainda não foi resolvida e os debates estão atingindo um ponto crítico.

Nesse horizonte, uma questão que deveria ser mais bem desenvolvida por enativistas, como Rolla, me parece ser o ponto fundamental da crítica de Pereira e et al. e de outros cognitivistas, como Papineau, a saber, o caso do erro. A possibilidade do erro em atividades cognitivas diversas parece ser fundamental para a defesa da representação no cérebro, segundo autores cognitivistas. Por isso, a noção de representação também ganha tanta centralidade, em seus trabalhos. Acredito que Rolla deva aos seus leitores cognitivistas uma explicação enativista para o caso da falha na cognição. Como a sensação falha? Ou como explicamos a falha do juízo ou da memória, sem apelarmos para a noção de representação? Há uma abordagem integrada da tradição enativista que explique tanto a falha em juízos, a partir de sensações, ou da imaginação ou da memória? Como a percepção pode ser falsa se não tem conteúdo? Vale notar que agimos de acordo com uma falsa percepção; tomamos decisões baseadas em falsas representações.

Cognitivistas podem explicar esses casos sem muitos problemas, inclusive em nossas ações, porque usam o poderoso conceito de representação sem muitas restrições. Afinal, nós cometemos erros, porque tomamos decisões sobre representações falsas, pensa um cognitivista. Essa visão parece ser replicada para casos mais básicos, como o do sapo que erra o alvo, ao lançar a língua para pegar uma mosca. Esse é um problema emblemático para a discussão cognitivista, e acredito que o projeto enativista de Rolla poderia se beneficiar muito, ao tratar diretamente dessa discussão e desse argumento. Quanto de informação proposicional deve ser posto para o sapo pegar a mosca? Nenhuma? Mas, se não houver informação proposicional, o que um enativista poderia colocar no lugar do conceito de representação, a fim de explicar o erro, nesse caso de cognição básica? Covariação seria suficiente? Qual é o alcance dessa proposta? A tese da covariação pode funcionar para a imaginação? E para a memória? E para a matemática? E para a lógica? E para raciocínios contrafactuais? Um cognitivista defenderia que não. Será impossível, de fato, ter um argumento representacional e naturalisticamente bem-informado para abordar o problema do erro, nesses casos mais básicos, assim como nos casos mais sofisticados de raciocínio, de maneira integrada?

Embora Rolla faça um trabalho muito bom, ao destacar os problemas com o conceito de conteúdo representacional usado como ferramenta explicativa na ciência cognitiva, ele não fornece uma proposta alternativa da intencionalidade, apenas uma sugestão de uma forma socialmente orientada. Com efeito, Rolla não fornece um modelo explicativo detalhado de como a cognição social e os sistemas de símbolos públicos dão origem a conteúdos em conexão com a cognição básica. Ele não explica, por exemplo, como a cognição social e os sistemas de símbolos públicos podem surgir sem a existência prévia de conteúdos mentais veritativos. As conexões com inferencialismo, ontologia social, intencionalidade compartilhada, reconhecimento mútuo e (neo)pragmatismo devem ser desenvolvidas para resgatar o enativismo dessas críticas, eu acredito (SILVA et al., 2020).

Aqui também vale salientar que há um quebra-cabeça kantiano sobre a conexão entre percepção e julgamento usando noções sociais e normativas. O problema kantiano pode ser assim enunciado: como passamos da percepção à crença e ao juízo? A percepção parece dever ser conceitual, porque nossos julgamentos se aplicam sistematicamente a ela. Contra essa visão, Hutto e Myin (2017, p. 122), por exemplo, sustentam que “[...] é possível, em princípio, explicar as origens da cognição envolvendo conteúdo de uma maneira cientificamente respeitável e sem lacunas. Os RECers, enativistas radicais, pretendem fazê-lo, aludindo especialmente ao importante papel desempenhado pelos andaimes socioculturais.” O trabalho é, então, tentar explicar como os estados mentais repletos de conteúdo realmente surgem, por meio de um processo de domínio de tipos especiais de práticas socioculturais.

Embora rejeitar críticas e teorias rivais com argumentos filosóficos não forneça uma teoria detalhada da ciência cognitiva, pode-se dizer que os trabalhos de Rolla discutem a perene questão filosófica sobre a natureza de nossas atividades cognitivas, desvelando uma visão impossível de negligenciar: a contribuição enativista para o atual estado da arte na discussão.


Referências

BURGE, T. The Origins of Objectivity. Oxford: Oxford University Press, 2010.

HAUGELAND, J. Truth and rule-following. In: HAUGELAND, J. (ed.). Having Thought: Essays in the Metaphysics of Mind. Harvard: Harvard University Press, 1998.

HUTTO, D.; MYIN, E. Evolving Enactivism: Basic Minds Meet Content. Cambridge: The MIT Press, 2017.

PAPINEAU, D. Sensory Experience and Representational Properties. Proceedings of the Aristotelian Society, v. 114, p. 1-33, 2014.

PUTNAM, H. Renewing Philosophy. Harvard: Harvard University Press, 1992.

ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

SILVA, M. Notes on the nature of logic: an enactivist proposal. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 29, n. 49, p. 38-56, jan. 2022. ISSN 0104-6675. Disponível em: http://oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/810. Acesso em: 17 fev. 2023. doi: https://doi.org/10.32334/oqnfp.2021n49a810.

SILVA, M.; CAVALCANTI, I.; MOTA, H. Linguagem e Enativismo: uma Resposta Normativa para a Objeção de Escopo e o Problema Difícil do Conteúdo. Revista Prometheus, n. 33, maio/ago. 2020.

STICH, S. The Fragmentation of Reason: Preface to a Pragmatic Theory of Cognitive Evaluation. Cambridge: MIT Press, 1990.



Recebido: 16/02/2023

Aprovado: 20/02/2023

1 Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE – Brasil. Bolsista de produtividade do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1552-2525. E-mail: marcossilvarj@gmail.com.