Comentário a “Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo”: representações situadas como um terreno comum entre o cognitivismo e o enativismo


Felipe Nogueira de Carvalho1


Referência do artigo comentado: ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.


Qualquer estudante ou pesquisador(a) que se interesse pela filosofia da cognição e da percepção, no Brasil, sem dúvida percebeu que o programa de pesquisa enativista tem passado por uma crescente popularização no país, nos últimos anos. Livros, artigos, conferências etc. atestam como muitos filósofos e filósofas já se valem desse quadro teórico, para explorar temas caros à filosofia, não apenas dentro da filosofia da cognição, como também na ética e na epistemologia.

No entanto, o enativismo ainda enfrenta resistências de parte da comunidade filosófica brasileira. Em círculos mais informais, é comum ouvir acusações de que o enativismo entrega pouco mais do que uma série de slogans envolvendo um punhado de letras “E” (em inglês, embodied, embedded, enactive e extended, ou, em português, corporificada, situada, enativa e estendida, todos predicados aplicados à cognição), os quais, na melhor das hipóteses, são vagos e obscuros e, na pior, são falsos ou carecem de sentido. Essas suspeições foram sintetizadas por Horácio, Filho e Barcellos (2022) – que representam aqui a posição cognitivista – em um texto que coloca pressão no enativismo, para que se explique e fundamente seus argumentos e prescrições metodológicas. Esse desafio foi encarado por Giovanni Rolla, atualmente um dos expoentes desse programa de pesquisa, não apenas no Brasil, mas internacionalmente, no texto que será objeto do presente comentário

O texto de Rolla possui grande mérito, ao responder dúvidas e dissipar os principais mal-entendidos que assolam o enativismo, apresentando-se como uma boa introdução a um programa de pesquisa que ainda é pouco compreendido por filósofos e filósofas de tendência mais cognitivista. Apesar das doses ocasionalmente excessivas de ironia que perpassam seus argumentos, a dialética de Rolla é suficientemente clara, para que até mesmo um leitor pouco familiarizado com esse campo de estudos possa acompanhar o debate. No entanto, alguns pontos ainda permanecem obscuros e merecem atenção especial, a fim de que o texto possa, de fato, cumprir seu objetivo de aliviar as preocupações de quem ainda se vê incapaz de conceber uma filosofia da cognição não cognitivista.

Um ponto em especial me parece nevrálgico, no debate entre cognitivistas e enativistas: as representações mentais. Enquanto o abandono da linguagem representacional é uma das bases do enativismo, sobre a qual todo o seu arcabouço teórico é construído, certos cognitivistas, como Horácio, Filho e Barcellos, se mostram profundamente perplexos com tal sugestão. Como podemos explicar as percepções e ações de um organismo, em seu ambiente, sem fazer menção a estados neurocognitivos que representem aspectos desse ambiente? O enativismo, claro, tem uma (ou mais de uma) resposta, fortemente apoiada sobre noções como habilidades práticas (know-how), acoplamentos sensório-motores e enações (enactments), mas, mesmo após esses esclarecimentos, o cognitivista ainda insiste que tais conceitos devem, de uma forma ou de outra, ser baseados em representações mentais.

A este ponto, corre-se o risco de o diálogo entrar em colapso, sem um chão comum onde um debate genuíno possa ocorrer. Meu objetivo, neste breve comentário, será especular sobre a possível existência desse chão comum, o qual redesenhe o mapa do espaço teórico do debate de modo a incluir uma Suíça entre a França e a Alemanha do enativismo e do cognitivismo. Mas, como esse terreno envolve uma reabilitação de (uma certa noção de) representações mentais, não é claro que esta será uma fronteira que o enativista terá interesse em cruzar. Todavia, enquanto ele se reforça em seu território, podemos levantar a seguinte questão, não só ao texto de Rolla, porém a todos os simpatizantes desse programa de pesquisa: por que tamanha resistência a qualquer tipo de linguagem representacional?

Há duas resposta imediatas a essa questão que podem ser facilmente encontradas no texto de Rolla. A primeira delas diz respeito aos 4 “E” do enativismo. Ora, se a cognição é corporificada, situada, enativa e estendida, faz pouco sentido conferir uma atenção excessiva ao que acontece dentro do cérebro de agentes cognitivos, como faz o cognitivismo clássico. Essa resposta é mais metodológica do que argumentativa, e concerne a uma mudança de vocabulário na construção de teorias sobre a cognição. Já a segunda resposta é mais argumentativa, e se refere ao “problema duro do conteúdo” articulado por Hutto e Myin (2013) e citado com aprovação por Rolla, como o prego definitivo no caixão do representacionalismo. Embora questões de espaço não nos permitam examinar esse problema em maiores detalhes, a ideia básica pode ser extraída da seguinte passagem de Rolla:

[…] de acordo com cognitivistas, representações mentais são portadoras de informação semanticamente carregada [...]. Porém, o único tipo de informação encontrada na natureza é a covariação. Estados naturais covariam confiável ou nomicamente. Pensemos na relação de covariação entre a idade da árvore e o número de anéis no seu tronco [...]. Não podemos inferir que um dos termos em uma relação de covariação representa o outro. Números de anéis no tronco da árvore não representam a sua idade—a representação aqui é imputada por nós uma vez que estamos situados em um contexto sociocultural amplo. Por si só, estados naturais são piamente quietistas e não dizem nada sobre ninguém. (Rolla, 2023, p. 213)


Ora, contudo, se este é o problema, podemos fazer a seguinte pergunta. Caso haja uma noção de representação que responda ao mesmo tempo a motivação metodológica expressa pelos 4 “E” do enativismo e a argumentação levantada pelo problema duro do conteúdo, essa noção poderia ser aceitável ao enativista? Se não, por que não?

Por sorte, já existe uma noção desse tipo que pode nos ser útil: o conceito de “representações situadas”, de Gualtiero Piccinini (2022), o qual visa, justamente, resolver o problema duro do conteúdo, através da corporificação e situacionalidade da cognição, resultando em uma linguagem representacional que pode aliviar as preocupações do cognitivismo, ao mesmo tempo que os 4 “E” do enativismo são mantidos e respeitados. Como tal, esse conceito pode se apresentar como um terreno comum onde ambos os lados poderiam dialogar de forma colaborativa sobre os diversos papéis do corpo e do ambiente, na cognição.

Na proposta de Piccinini, sistemas cognitivos empregam, em sua interação com o meio, representações neurais estruturais que possuem uma certa similaridade (homomorfismo) parcial com seus alvos, e que possuem a função de rastrear e prever a evolução de aspectos do ambiente com os quais o organismo está interagindo e pelo qual se interessa (2022, p. 5). Essas representações são constantemente atualizadas de forma dinâmica por informações do ambiente e de outros estados internos do organismo que carregam informação sobre o ambiente e sobre o corpo, incluindo sinais afetivo-avaliativos e estados passados do organismo.

Como em teorias teleossemânticas, o conteúdo semântico de tais representações é explicado por funções biológicas, exceto que, para Piccinini, tais funções não são compreendidas apenas em termos de efeitos selecionados pela evolução, mas sim em termos de contribuições estáveis que estados neurocognitivos fazem para os objetivos situados do organismo (2022, p. 5). Além disso, diferentemente do cognitivismo clássico, o conteúdo de tais representações não possui estrutura proposicional e, portanto, não entra em relações inferenciais típicas de representações linguísticas. Se o organismo percebe um gato em cima do tapete, o conteúdo semântico dessa representação seria algo como “gato no tapete agora irá provavelmente evoluir de tal-e-tal forma”, de acordo com a função biológica do estado neurocognitivo que lhe confere esse conteúdo, em que “tal-e-tal forma” é atualizado dinamicamente, de acordo com informações do ambiente e das ações do organismo sobre este (2022, p. 6).

Ou seja, representações mentais e as computações que operam sobre elas emergem de maneira coordenada em padrões neurais homomórficos, através da interação dinâmica do organismo com seu ambiente, a qual depende constitutivamente de informações do corpo e do ambiente, sem as quais não poderiam cumprir a função biológica que lhes confere conteúdo semântico. A relação de homomorfismo entre uma representação e um aspecto do mundo, segundo Piccinini, também é uma relação informacional natural e real, portanto, não seria verdadeiro dizer, como afirma o “problema duro do conteúdo”, que a única relação informacional que existe na natureza é a covariação.

Talvez aqui Rolla diga que a linguagem representacional de Piccinini vale somente para o ponto de vista do cientista cognitivo interessado em modelar a cognição desse organismo, mas que não devemos projetar essa linguagem para o objeto-alvo do modelo, i.e., o organismo em si (2023, p. xx). No entanto, aqui devemos nos perguntar o que é que perdemos, teoricamente falando, ao empregar essa linguagem representacional na própria descrição das capacidades cognitivas e perceptuais de organismos vivos em interação com seus ambientes, através de seus corpos, e não apenas na modelagem dessas capacidades, em termos neurocomputacionais. O que foi perdido com essa linguagem que apenas o enativismo seria capaz de explicar? Se as representações de Piccinini são situadas, corporificadas e enativas2, o enativista ainda deve resistir a essa linguagem a qualquer custo? Por quê?

Se o problema, como diz Rolla (2023, p. 215), é que “[...] o cérebro não é um cientista homuncular fazendo cálculos e previsões sobre o mundo […], mas uma parte de um sistema que opera, quando tudo vai bem, em sintonia com o resto do corpo e com o ambiente distal”, ora, não há nada nessa descrição de que Piccinini discordaria. Tampouco seria preciso uma “física do futuro” para mostrar como uma representação situada desse tipo poderia ter propriedades semânticas, visto que tais propriedades são conferidas por sua função biológica de rastrear e prever a evolução de partes do ambiente em que o organismo está interessado, por meio de processos de aprendizagem ativa calibrados pela interação contínua do organismo com seu meio, através de propriedades morfológicas de seu corpo. Talvez aqui Rolla diga que funções biológicas só conferem conteúdo semântico de forma derivada, por intermédio de teóricos que se valem desse conceito em teorias teleossemânticas. Essa manobra, no entanto, removeria funções biológicas do mundo natural, e não sei se Rolla estaria disposto a seguir esse caminho.

Para concluir, enquanto o enativismo se populariza, no Brasil, é natural que haja suspeições em relação às suas principais propostas. Nesse sentido, o texto de Rolla sucede em dissipar uma série de mal-entendidos que assolam os 4 “E” do enativismo, e deve ser reconhecido como um avanço inequívoco de nosso conhecimento, nessa área de estudos. Entretanto, alguns pontos ainda permanecem obscuros, em particular, porque o enativismo ainda resiste a qualquer tipo de linguagem representacional. Isto é, caso haja uma noção de representação que atenda às questões metodológicas e argumentativas aceitas por Rolla , essa noção poderia servir de terreno comum para que enativistas e cognitivistas dialogassem sobre o papel do corpo e do ambiente na cognição? Se não, por que não?

Neste comentário, pergunto se o conceito de representação situada de Piccinini pode ser esse terreno comum. Embora muitos detalhes dessa teoria tenham sido deixados de lado por questões de espaço, ela serve ao menos para levantar questões importantes ao texto de Rolla e ao enativismo, de modo geral. Se tais questões forem respondidas com a mesma seriedade e meticulosidade que já aparece nos trabalhos de Rolla, toda a comunidade filosófica brasileira, sem dúvida, se beneficiará de tal debate.


Referências

HUTTO, D.; MYIN, E. Radicalizing Enactivism: Basic Minds without Content. Cambridge: MIT Press, 2013.

PICCININI, G. Situated Neural Representations: Solving the Problems of Content. Frontiers in Neurorobotics, 16, p. 1-13, abr. 2022.

ROLLA, G. Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 207- 236, 2023.

Recebido: 12/03/2023

Aprovado: 15/03/2023



1 Universidade Federal de Minas Gerais (|UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0584-3424. E-mail: felipencarvalho@gmail.com.

2 O leitor atento terá percebido que o último “E” – estendido – foi deixado de fora, mas isso é porque Piccinini diz explicitamente que permanecerá neutro em relação ao caráter estendido da cognição (2002, p. 3). Essa qualificação em nada afeta o argumento central deste comentário.