Sabrina Balthazar Ramos Ferreira[1]
Referência do artigo comentado: CARVALHO, E. M. O disjuntivismo ecológico e o argumento causal. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 147- 174 2023.
Em meio aos debates na Filosofia Ecológica, concebida por James Jerome Gibson (1979), estão presentes divergências pontuais quanto ao conceito mais apropriado de affordance. Todavia, as convergências teóricas superam possíveis desacordos, sobretudo quando abordagens ecológicas compartilham o interesse em desenvolver seus pressupostos. É a esse intuito que os últimos esforços do professor Eros Moreira de Carvalho têm se dedicado. Seus trabalhos mais recentes têm transitado por vários aspectos da filosofia ecológica, desde affordances afetivas (CARVALHO, 2022a), passando pela relação entre psicologia ecológica e cognição social (CARVALHO, 2022b, p. 367-393), até, principalmente para o que nos interessa no momento, sobre um espinhoso aspecto das teorias da percepção – o disjuntivismo.
De fato, o problema do disjuntivismo impõe significativo desafio para qualquer teoria que busque explicar amplamente a constituição dos processos perceptivos. No entanto, para aqueles que se debruçam sobre pesquisas ecológicas, tal desafio é mais do que esperado, devido a um dos pontos mais questionados da abordagem ecológica da percepção – o problema do erro perceptual. Se o problema do erro perceptual discute a natureza de percepções equivocadas, ou até mesmo suas condições de existência, o problema do disjuntivismo se detém na diferenciação entre estas e percepções verídicas. Tanto o problema do erro perceptual quanto o problema do disjuntivismo acabam por impor os mesmos desafios ao caráter direto da percepção: se a percepção é direta, sem processos inferenciais, em casos de erro perceptual, o equívoco estaria no mundo? Ou nos órgãos perceptuais daquele que percebe? Se o percebedor capta diretamente informação significativa no mundo, pela percepção, como ele consegue diferenciar tal experiência de episódios de alucinação, cuja característica marcante é sua aparente indistinguibilidade dos episódios perceptivos correspondentes?
Ao longo do tempo, algumas saídas interessantes foram propostas, sobretudo com relação ao problema do erro perceptual (Turvey et al., 1981). Quanto ao disjuntivismo, Carvalho (2023) se lança em sua abordagem denominada disjuntivismo ecológico, proposta no artigo em questão. Anteriormente, no artigo “An ecological approach to disjunctivism”, Carvalho (2021) já flertava com o assunto, analisando o disjuntivismo ancorado em alguns pressupostos da filosofia ecológica, apontando para uma frutífera compatibilidade entre Filosofia ecológica e disjuntivismo. Na ocasião, sua ênfase recaiu sobre a atividade exploratória dos organismos no ambiente, no processo perceptivo, a sintonização organismo-ambiente que se efetiva por habilidades discriminatórias (CARVALHO, 2021, p. 290) desenvolvidas no decorrer do tempo, invariantes e, não menos importante, em alguns dos possíveis entendimentos sobre possibilidades de ação. Na oportunidade, Carvalho (2021) acenara para o problema da distinguibilidade e o desafio em acomodá-lo em uma teoria da percepção robusta.
Prosseguindo em sua empreitada de oferecer camadas de inteligibilidade à abordagem ecológica da percepção, observa-se, no artigo atual, uma alteração do alvo investigativo por parte de Carvalho (2023), ao se deter, dessa vez, nos argumentos que fundamentam teorias tradicionais da percepção que se contrapõem à abordagem ecológica. Nesse sentido, críticas bem-fundamentadas são tecidas a alguns dos pressupostos das abordagens inferenciais e representacionalistas da percepção, e às saídas propostas por teorias disjuntivistas que buscam refutar uma indistinguibilidade entre percepção e alucinação. Conforme Carvalho (2023) bem salienta, os caminhos tentados pelos disjuntivistas (tanto positivos, quanto negativos) recaem em comprometimentos problemáticos, os quais, conforme defendido, não afetam o disjuntivismo ecológico proposto.
Ainda que os dois textos de Carvalho (2021, 2023) visem a uma defesa do disjuntivismo ecológico, cada um envolve uma estratégia argumentativa distinta, o que me leva a sugerir a leitura de ambos, para uma visão mais completa da proposta do autor. Não obstante, vale destacar o ganho teórico do artigo presente com respeito ao anterior, devido à introdução de novos elementos em sua argumentação.
Conforme o próprio título ressalta, é na articulação entre abordagem ecológica da percepção e argumento causal que o presente artigo se destaca, cuja estrutura corresponde à defesa do primeiro, ao identificar as problemáticas do segundo. Não obstante, é bem salientado no artigo que a indistinguibilidade entre percepção e alucinação, defendida por teorias conjuntivas, pode residir no fato de ambas corresponderem a um mesmo tipo de experiência (seja um conteúdo intencional, sejam dados dos sentidos). Para tanto, conjuntivistas, além dos disjuntivistas, recorrem ao argumento causal para sustentar sua posição, pois, tanto alucinação quanto percepção envolveriam os mesmos antecedentes causais, a saber, eventos cerebrais. Nesse sentido, Carvalho (2023) destrincha a estrutura do argumento causal, identificando e discutindo suas principais suposições: indistinguibilidade, linearidade e duplicação, intrinsecamente conectadas entre si.
De fato, o tipo de causalidade implicada em cada teoria perceptual esboça o modo como é entendida a relação indivíduo-ambiente. E é justamente fundamentada nesse entendimento que a teoria ecológica ganha força, ao revelar uma visão sistêmica de mundo que, logo de início, pode desbancar a linearidade envolvida no argumento causal, sustentada por teorias tradicionais da percepção. Quero salientar que a sustentação teórica do artigo atual esboça uma avanço, o qual reside no papel fundamental que a atividade exploratória exerce nos processos perceptuais, segundo a filosofia ecológica.
Nesse sentido, o papel ativo do agente corresponde a um componente significativo da percepção, podendo contribuir para que o agente diferencie percepção e alucinação. Nas palavras de Carvalho (2021, p. 305): “Essa diferença motora também pode ser a base para uma habilidade introspectiva de discriminar entre recursos de episódios de percepção e recursos de episódios de alucinação.” Ou seja, as ações motoras do agente atuam de maneira efetiva na percepção, esboçando um processo retroalimentativo que contribui para a diferenciação entre percepção e alucinação. A consciência de sua movimentação e exploração do ambiente colabora para que o agente se veja em meio a um processo perceptivo e não de alucinação, cuja habilidade exploratória não é possibilitada do mesmo modo como na percepção. Dessa forma, a habilidade exploratória, para captura de informação significativa para ação, envolve sintonização do sistema organismo-ambiente, contrapondo-se à linearidade – uma das suposições do argumento causal – e ao caráter estático/receptivo do agente na percepção, segundo teorias tradicionais que se fundamentam em dinâmicas perceptivas de estímulo-resposta.
Dito isto, proponho-me discutir brevemente, devido ao espaço que me cabe, a efetividade da habilidade exploratória para o caráter direto da percepção e para o disjuntivismo, bem como para manutenção dos pressupostos ecológicos, ao longo do tempo. Essa discussão decorre da acentuada transformação sociocultural que as sociedades vivenciam com a introdução (e ampliação) massiva da tecnologia no cotidiano das pessoas – com a qual Gibson, quando da concepção dos principais pressupostos da filosofia ecológica, nos anos finais do século XX, não se deparava. Desse modo, minha proposta serve mais como uma provocação filosófica, a qual objetiva instigar, repensar e atualizar a abordagem ecológica da percepção para os novos cenários sociais que se apresentam, do que propriamente uma crítica à percepção direta ecológica.
A tecnologia faz parte do cotidiano de grande parte das pessoas, impelindo gerações de distintas faixas etárias a lidarem, cada qual a sua maneira, com os avanços tecnológicos que constantemente se atualizam. Gerações mais novas já nascem e crescem em meio a ambientes informacionais que são descritos como nichos tecnológicos, constituídos coevolutivamente por dinâmicas de percepção-ação que englobam a presença de tecnologias. Nas dinâmicas de percepção-ação, agentes captam informação significativa que, nesse caso, corresponde às affordances tecnológicas.[2] Em nichos tecnológicos, agentes interagem com diversos tipos de dispositivos, para além de interagirem entre si. A própria interação entre os agentes é, a depender do nicho tecnológico, mediada por TIC’s (Tecnologias informacionais de comunicação).[3] Nesse sentido, empresas de tecnologia têm se esforçado para aprimorar seus produtos, atentas às interações sociais esboçadas por dinâmicas de percepção-ação.
Um exemplo de avanço tecnológico é a criação de jogos de realidade virtual 3D.[4] Visando a oferecer ao usuário uma experiência fenomenológica cada vez mais próxima da realidade, esses jogos incorporam dispositivos que propiciam ao jogador se movimentar com o uso de equipamentos que, juntamente com capacetes de estímulos visuais e sonoros, propiciam uma experiência de realidade que imita a realidade. Com os avanços tecnológicos, esses jogos ampliaram a possibilidade de movimentação do jogador, bem como melhoraram a sincronização entre os movimentos realizados pelo jogador e as imagens projetadas em seu capacete sensorial. Tal sincronização propicia situações nas quais o jogador, isolado dos estímulos do ambiente em que se encontra e recebendo apenas estímulos gerados no jogo, experiencia episódios emocionais que envolvem alterações fisiológicas marcantes, tais como aceleração dos batimentos cardíacos, decorrentes das experiências virtuais vivenciadas no jogo. O usuário pode vivenciar uma experiência fenomenológica que cada vez mais se aproxima da realidade, embora se trate de imagens fabricadas, ou seja, percepções ilusórias.
Nesse sentido, podemos questionar: em que medida a habilidade exploratória, o papel ativo da percepção em conexão com a ação e a captação de possibilidades de ação via percepção direta ainda podem se sustentar em situações de jogos como esse? Pode ser argumentado que os usuários estão cientes de sua condição enquanto jogadores e que, dessa maneira, podem distinguir percepções e ilusões. No entanto, é importante considerar o papel que as emoções desempenham nessas situações, pois, ainda que os usuários tenham consciência de sua condição de jogadores, as alterações fisiológicas vivenciadas esboçam uma proximidade com o real até então não cogitada.
O ponto em questão reside no caráter ativo da percepção do jogador, a possibilidade de explorar o ambiente virtual com relativo grau de liberdade e a reprodução cada vez mais fiel da realidade, por parte da tecnologia, que ainda se limita, em grande medida, ao âmbito do entretenimento. Afinal, o que caracteriza uma ilusão/alucinação é o grau elevado de similaridade que estas possuem com seus episódios perceptivos correspondentes, seja devido à cadeia causal envolvida, seja pela existência de algum elemento em comum compartilhado.
No entanto, ao salientar que “[...] uma experiência alucinatória duradoura é distinguível de uma experiência perceptiva correspondente porque a primeira não resulta de um fluxo controlado de estimulação, ao passo que a segunda sim” (CARVALHO, 2021, p. 305), voltamos novamente para a evolução da tecnologia que cada vez mais considera a habilidade exploratória dos jogadores na concepção dos dispositivos. Conforme salienta Carvalho (2021), se “[a] percepção é uma experiência controlada de sintonização à informação, enquanto a alucinação é passiva e refratária às atividades de exploração e sintonização”, como podemos vislumbrar o futuro da filosofia ecológica em meio ao contínuo avanço tecnológico com o qual as gerações futuras coevoluirão? Nesse cenário, a percepção direta sobreviverá? O disjuntivismo ecológico ainda se sustentará sobre as bases aqui formuladas?
Sim, é possível que estejamos extrapolando a experiência dos jogos para outros âmbitos de nossa experiência. Contudo, tal exemplo esboça um movimento pervasivo da tecnologia em nossas dinâmicas de percepção-ação, possivelmente não imaginado no passado por Gibson. Para além de entretenimento, a tecnologia já faz parte de nossas vidas, em diversas áreas (casas inteligentes, carros autômatos etc.), propiciando novas formas de relação com o ambiente. Dessa maneira, a discussão sobre disjuntivismo se torna cada vez mais relevante para os dias atuais, não somente em função dos casos alucinatórios, mas pela presença cada vez mais massiva de tecnologias em nosso cotidiano e a coevolução de gerações mais novas com elas.
Nesse sentido, como ficariam as discussões sobre disjuntivismo, nesse novo cenário? Pressupostos ecológicos ainda se sustentariam? Tais questões assinalam desafios que ainda fomentarão muitas investigações filosóficas, as quais, por sua vez, terão um papel significativo para o desenvolvimento da Filosofia ecológica.
Referências
BROENS, M. C.; MORAES, J. A.; CORDERO, A. F. Technology and society: The impacts of Internet of Things on individual's daily life. In: PESSOA JR., O.; ADAMS, F.; KOGLER JR., J. E. (org.). Cognitive Science: Recent advances and recurring problems. 1. ed. Wilmington: Vernon, 2017. v. 1, p. 151-162.
CARVALHO, E. M. An ecological approach to disjunctivism. Synthese, v. 198, n. S1, p. 285-306, 2021.
CARVALHO, E. M. Affective affordances: Direct perception meets affectivity. Perspectiva Filosófica, UFPE, v. 49, n. 5, p. 19-51, 2022a.
CARVALHO, E. M. Psicologia ecológica: da percepção à cognição social. In: SOUZA, M. J. A.; FILHO, M. M. L. Escritos de Filosofia V: Linguagem e Cognição. Porto Alegre, RS: Fi, 2022b. p. 367-393.
CARVALHO, E. M. O disjuntivismo ecológico e o argumento causal. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 147- 174, 2023.
CASTILHO, L. B. O uso da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) no processo de ensino e aprendizagem em cursos superiores. 2015. Dissertação (Mestrado) - Fundação Mineira de Educação e Cultura FUMEC, Belo Horizonte, 2015.
GIBSON, J. J. The Ecological Approach to visual perception. New York: Psychology, 1986 [1979].
TURVEY, M. T. et al. Ecological laws of perceiving and acting: In reply to Fodor and Pylyshyn (1981). Cognition. Lausanne: Elsevier Sequoia, 1981. p. 237-304.
Recebido: 11/01/2023
Aprovado: 21/01/2023
[1] Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6992-3215. E-mail: sabrinabrf@hotmail.com.
[2] Affordances tecnológicas esboçam o movimento de ampliação da abordagem ecológica da percepção ao abarcar as transformações pelas quais o sistema agente-ambiente está sujeito. Nesse caso, affordances tecnológicas mantém suas bases na concepção original de affordances, enquanto possibilidades de ação, passando a incorporar os ambientes digitais e virtuais aos seus nichos (BROENS et al., 2017). Não obstante, affordances tecnológicas ocorrem impreterivelmente com a presença de dispositivos tecnológicos nas dinâmicas de percepção-ação dos agentes.
[3] “[...] as tecnologias de informação e comunicação não se restringem somente a equipamentos de hardware e software e nem tão pouco à comunicação de dados, mas compreendem todas as atividades que ocorrem na sociedade, as quais utilizam recursos tecnológicos e disseminação social da informação a partir de sistemas informativos inteligentes.” (CASTILHO, 2015, p. 35).
[4] VR Games (Virtual reality) são jogos que envolvem um sistema computacional, que possui o objetivo de recriar a sensação de realidade no ambiente virtual e possibilitar que você interaja com ele de certa forma. Atualmente tais jogos incorporam efeitos visuais, sonoros e táteis, para que a imersão do usuário no ambiente simulado seja completa. Retirado de: Tecnologia VR: o que é e como funciona? Disponível em: https://liggavc.com.br/blog/tecnologia-vr-o-que-e-e-como-funciona/#:~:text=O%20que%20%C3%A9%20realidade%20virtual%20e%20como%20funciona&text=Digamos%20que%20voc%C3%AA%20quer%20jogar,como%20se%20estivesse%20dentro%20dele. Acesso em: 16 fev. 2023.