Comentário a “Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir”


Juliana de Orione Arraes Fagundes1

Referência do artigo comentado: Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.


Pereira Jr. e Aguiar (2023) propõem-se estabelecer bases conceituais para o desenvolvimento da Sentiômica, um estudo científico dos padrões dinâmicos que determinam a capacidade de sentir. Além disso, pretendem desenvolver uma aplicação dessa proposta ao caso da música. Eles aceitam o argumento de Chalmers (1996) de que há um problema difícil em relação à consciência, mas entendem que a Sentiômica pode avançar em estudos empíricos relevantes acerca dos problemas fáceis. O foco do trabalho é a relação temporal entre padrões fisiológicos e frequências sonoras, na experiência musical, como estudo de caso para examinar alguns pressupostos e problemas filosóficos relativos à Sentiômica. A Sentiômica não busca locais no sistema nervoso onde a sentiência2 ocorra, mas é temporal, voltada para uma dinâmica complexa que envolve relações simultâneas entre indivíduo e mundo.

A Sentiômica se ocupa, a partir de uma perspectiva de terceira pessoa, de padrões dinâmicos na natureza que geram os sentimentos, os quais são experienciados a partir de uma perspectiva de primeira pessoa. Esses padrões se dão tanto internamente aos seres sentientes quanto no ambiente externo. Trata-se, portanto, das diversas dinâmicas naturais que permitem a experiência sensível, envolvendo eventos químicos corporais e cerebrais, padrões anatômicos, frequências de ondas luminosas e sonoras etc. Como a Sentiômica se propõe estudar os padrões inconscientes que determinam as experiências conscientes, ela necessita também da Qualiômica, a qual se volta para os aspectos contextuais e individuais da experiência, aquilo que é consciente.

A Sentiômica é apresentada pelos autores como uma abordagem de terceira pessoa, tendo a característica de estudar padrões fisiológicos universais, ao passo que a Qualiômica observa cada experiência sentiente, de um ponto de vista de primeira pessoa, conforme os autores, podendo assim servir de parâmetro avaliativo acerca do alcance da Sentiômica. Na medida em que a Qualiômica é capaz de fornecer critérios para o avanço ou recuo da Sentiômica, os autores compreendem que as perspectivas de primeira e de terceira pessoa se complementam, para que uma pesquisa acerca da consciência possa avançar.

Note-se que, para isso ser possível, a perspectiva de primeira pessoa não pode ser compreendida no sentido de uma perspectiva estritamente subjetiva a propósito de estados mentais não relacionais – como em Chalmers (1996), Nagel (1974) ou Putnam (1981). Em outras palavras, apesar de compreender uma diferença entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoas, o artigo não é levado a uma cisão entre os aspectos objetivo e subjetivo da realidade. Afinal, a perspectiva de primeira pessoa é abordada de um ponto de vista linguístico, ainda que individual3; caso contrário, não poderia complementar uma disciplina científica como é a proposta da Sentiômica.

Assim, embora eles tentem manter uma lacuna epistêmica entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoa, o estudo da Sentiômica precisará sempre da Qualiômica para regular os resultados das pesquisas, a partir de uma metodologia própria. Segundo Pereira Jr. e Aguiar, a metodologia da Qualiômica não se classifica como ciência: eles propõem métodos como introspecção, meditação e fenomenologia. Defenderemos que é possível compreender a relação entre Sentiômica e Qualiômica, sem a pressuposição de uma lacuna epistêmica. Entre perspectivas epistêmicas diferentes não é necessário haver uma lacuna. Procuraremos sinalizar aqui dois caminhos para isso.

Algumas perguntas relevantes emergem da leitura do artigo: como os estudos a respeito da Qualiômica podem iluminar a pesquisa científica acerca da consciência, em coordenação com os estudos sobre a Sentiômica? Quais são os diversos padrões internos e externos ao indivíduo envolvidos nas experiências de sensibilidade? Até que ponto os aspectos individuais das experiências revelam padrões passíveis de um estudo que almeja a universalidade?

O estudo da música aparece de forma bastante ilustrativa para o leitor esclarecer essa espécie de calibragem entre Sentiômica e Qualiômica, o que vale para as artes em geral. Diante da experiência estética, como ao escutar uma música, uma complexidade de sentimentos será fruída pelo sujeito. Essa complexidade reflete uma história de vida individual em um contexto específico que compõe a experiência consciente daquele sujeito, como uma dinâmica temporal. Simultaneamente, há padrões fisiológicos no corpo e diversas dinâmicas que podem ser estudadas com instrumentos científicos. A música atravessa o corpo humano sob certos padrões fisiológicos de sentimentos que ela provoca. Como a Sentiômica não está voltada para estudar padrões locais no cérebro, ela tem a ver com o estudo de uma coordenação temporal entre fisiologia (incluindo a fisiologia cerebral) e escuta temporal, gerando determinados padrões de sentimentos musicais.

Em trabalho anterior, Pereira Jr. (2021) trata da relação entre consciência fenomênica e sentiência. Para ele, a sentiência é um requisito para que possa haver consciência. Ali, é possível encontrar uma discussão conceitual sobre consciência e sentiência que acaba por nos permitir uma melhor compreensão do artigo-alvo deste comentário. Conforme o autor, a ciência pode medir os padrões fisiológicos subjacentes à capacidade de sentir, de modo a explicar os correlatos físicos da sentiência. A sentiência engloba uma variedade desestruturada de situações inconscientes, no aqui e agora, que, uma vez estruturadas, formarão a experiência consciente.

Essa relação entre sentiência e experiências conscientes talvez contraste com a relação entre Sentiômica e Qualiômica. Por um lado, as experiências conscientes parecem emergir de um conjunto desestruturado de padrões dinâmicos dentro e fora dos organismos vivos. Por outro lado, essas experiências poderão ser investigadas a partir de métodos apropriados a um estudo de primeira pessoa e servirão como regulagem para que uma ciência da Sentiômica possa avançar. A experiência subjetiva, uma vez estruturada, poderá se voltar para uma compreensão de algo que é inconsciente e subjacente a ela. Os caminhos pelos quais essa ideia pode prosseguir não estão definidos, é difícil visualizá-los.

Uma boa pista que aparece em Pereira Jr. (2021) é que a geração de sentimentos conscientes, com base na capacidade sentiente, tem razões de adaptação evolutiva. O comportamento adaptativo, segundo ele, é guiado pelos sentimentos, conforme um movimento de buscar o prazer e evitar a dor. Aqui, vemos que a subjetividade gera padrões pelos quais a ciência pode estudá-la. Faz muito sentido pensar a experiência dessa forma. De fato, o que guia o comportamento dos organismos são suas experiências. As perspectivas de primeira e de terceira pessoas, por esse ponto de vista, acabam por se mostrar apenas dois lados da mesma moeda: não é possível abrir mão de nenhuma delas.

A noção de affordance talvez possa ajudar a compreender essa discussão. As affordances do organismo são aspectos do ambiente que se tornam relevantes para aquele organismo. O termo foi usado primeiramente por Gibson: “As ‘affordances’ do ambiente são o que ele oferece ao animal, o que ele provê ou fornece, para o bem ou para o mal.” (1979, p. 127). A noção de affordance permite uma conexão entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoas, pois ela carrega consigo uma ideia simples: a de que determinados padrões do mundo objetivo – esses que se dispõem a um estudo científico e de terceira pessoa – se disponibilizam para o organismo, de acordo com as suas capacidades, tornando-se relevantes para ele, de um ponto de vista de primeira pessoa.

Aqui, parece não mais fazer sentido falar em lacuna epistêmica entre primeira e terceira pessoa. O organismo lida com o que se torna relevante e isso está estreitamente ligado à sua história evolutiva. Nesse sentido, se há um “como é ser” um organismo, esse “como é ser” traz informações sobre a realidade externa que podem ajudar em sua missão de sobreviver e se reproduzir em um ambiente hostil. Os organismos vivos, por essa abordagem, são compreendidos por meio de sua relação direta com o ambiente, construída principalmente por seus ancestrais, ao longo de uma história evolutiva.

Há outra ideia que talvez também possa nos ajudar a esclarecer essa regulagem entre Qualiômica e Sentiômica: a distinção de Sellars (1962) entre imagem manifesta e imagem de ciência. Em nosso quotidiano, nossa linguagem se refere às experiências diretas que temos, às coisas que reconhecemos no mundo e das quais temos experiências diretas, conforme nossas capacidades fisiológicas, ou seja, à imagem manifesta que temos. A imagem de ciência depende de uma educação científica, envolve termos teóricos, coisas das quais não temos experiência direta.

Assim, será que não podemos compreender a Qualiômica como uma regulagem, a partir da nossa imagem manifesta, de uma imagem de ciência desenvolvida pela Sentiômica? Note-se que não há qualquer ruptura entre imagem manifesta e imagem de ciência: a segunda é derivada da primeira e apenas esta se relaciona às nossas experiências diretas. Se esse for um caminho possível, a Sentiômica pode ser compreendida como uma sofisticação da Qualiômica, sendo que a segunda não prescinde da primeira. Aqui, deve-se considerar que nem tudo que constitui a sentiência está disponível conscientemente. Olhando por essa perspectiva, o problema da lacuna epistêmica entre primeira e terceira pessoas também deixa de existir.

Pereira Jr. e Aguiar nos oferecem alguns estudos da ciência da Sentiômica, argumentando que não podemos prescindir dela, nos estudos acerca da consciência. A noção de sentiência é de grande relevância, pois esses padrões dinâmicos e desestruturados compõem a consciência e podem servir de material para o desenvolvimento de estudos em todas as áreas científicas que lidam com a noção de consciência. Os autores também argumentam pela importância da Qualiômica como algo que, embora não se sujeite a uma pesquisa a partir dos métodos científicos tradicionais, precisa ser considerado como meio de avaliação e regulagem dos desenvolvimentos em Sentiômica.

Propomos que a Qualiômica não pode se desenvolver, se considerarmos a existência de lacunas intransponíveis entre as perspectivas de primeira e de terceira pessoas, ainda que se trate de uma lacuna epistêmica e não ontológica. Assim, sinalizamos dois caminhos para que essa suposta lacuna possa ser preenchida: a noção de affordance de Gibson e a distinção entre imagem manifesta e imagem de ciência de Sellars.


Referências

CHALMERS, D. The Conscious Mind. Oxford: Oxford University Press, 1996.

DENNETT, D. Intuition Pumps and Other Tools for Thinking. New York; London: Norton & Company, 2013.

GIBSON, J. J. The Theory of Affordances. In: GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Boston: Houghton Mifflin, 1979. P. 127-137.

NAGEL, T. What is it like to be a bat? Philosophical Review, v. 83, p. 435-450, 1974.

Pereira Jr., A.; Aguiar, V. J. de. Fundamentos e aplicações da sentiômica: a ciência da capacidade de sentir. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 57- 86, 2023.

PEREIRA JR., A. The Role of Sentience in the Theory of Consciousness and Medical Practice. Jornal of Consciousness Studies, v. 28, n. 7-8, p. 22-50, 2021.

PUTNAM, H. Reason, Truth and History. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.

SELLARS, W. Philosophy and the Scientific Image of Man. In: COLODNY, R. (ed.). Frontiers of Science and Philosophy. Pittsburg: University of Pittsburgh Press, 1962. p. 35-78.

Recebido: 17/04/2023

Aprovado: 20/04/2023



1 Professora Adjunta do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA - Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9823-5910. E-mail: joafagundes@uesc.br.

2 A noção de sentiência é desenvolvida cuidadosamente em Pereira Jr. (2021).

3 Parece haver alguma familiaridade com a proposta da heterofenomenologia de Dennett, na qual os relatos dos sujeitos a propósito de suas experiências subjetivas são um material relevante. “Heterofenomenologia é o estudo dos fenômenos de primeira pessoa a partir do ponto de vista da ciência objetiva.” (2013, p. 342, tradução nossa). Porém, Pereira Jr. e Aguiar frisam que os métodos científicos convencionais não dão conta da perspectiva de primeira pessoa, sendo necessária uma metodologia própria.