Comentário a Por uma filosofia (da religião) Criativa: o problema da
formação filosófica a partir de uma analogia com a música
Murilo Rocha Seabra
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Referência do artigo comentado: PORTUGAL, A. C; PORTUGAL, C. P. Por uma Filosofia (da
Religião) Criativa: o Problema da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música.
Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial Filosofia Autoral
Brasileira”, p. 23- 52, 2023.
A Templeton Foundation tem injetado somas vultuosas no Brasil para fortalecer o
campo da chamada “filosofia da religião” que deveria talvez se chamar “filosofia do
cristianismo” ou “filosofia da religião judaico-cristã”, não “filosofia da religião” (SEABRA,
2021, p. 132). Os investimentos deveriam no nimo nos deixar com uma pulga atrás da orelha.
Segundo Jerry Coyne, professor de biologia da Universidade de Chicago, a Templeton só quer
colocar os velhos argumentos da Europa medieval em favor da existência de Deus não de
Yemanjá, não de Omama, não de Quetzalcoatl, não de Allah, não de Shiva, mas apenas da
divindade judaico-cristã chamada “Deus” ou “Jeová” sob uma roupagem que a comunidade
científica moderna considere mais tragável (COYNE, 2011). O uso exuberante da estatística e
da lógica formal não é mais do que uma manobra de marketing. Ambas servem apenas para
trazer um ar de respeitabilidade a uma religião que mostrou sua verdadeira face na era colonial
e que recentemente tem perdido prestígio devido ao seu apoio a figuras como Bolsonaro, ao
seu compromisso inveterado com o etnocídio e aos escândalos de pedofilia que ano após ano
envergonham o Vaticano.
As coisas não param por aqui. A Templeton também investe em acadêmicos,
organizações e think tanks de direita que combatem leis trabalhistas, defendem a privatização
de serviços públicos (inclusive de universidades) e vociferam contra mulheres que lutam pelo
direito ao aborto (EVANS, LAWRENCE, PEGG, BARR, 2019). A semelhança com o regime
militar inaugurado em 1964 com a ajuda de Washington não é mera coincidência. Aliás, o
fundador da Templeton já disse em entrevista que se deve comprar ações em tempos de guerra
e títulos em tempos de paz (TEMPLETON, ELLIS, 1991).
Em última instância, o que a Templeton almeja é marginalizar o pensamento crítico e
aumentar o abismo entre os mais pobres e os mais ricos. As duas coisas andam juntas. Do ponto
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La Trobe University, Vitoria Australia. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2055-4265. E-mail:
murilorseabra@gmail.com.
de vista estritamente lógico, os argumentos a favor da privatização de serviços públicos e de
toda agenda neoliberal são tão coerentes quanto a afirmação de que 1+2=5 ou de que “Ele
não nasceu no Brasil, logo ele é carioca”. Eles são frágeis. Eles são deploráveis. Eles são
asquerosos. Deixados à própria sorte, tendem a acumular poeira e a ser triturados pelas
engrenagens do tempo. Portanto, é necessário (a) construir um exército de ideólogos preparados
para defendê-los com unhas e dentes, e (b) fomentar um ambiente intelectual menos crítico e
menos politicamente consciente de modo a facilitar o trabalho dos marines do neoliberalismo.
Não é a primeira vez que uma fundação que se apresenta como puramente filantrópica
usa seu poderio econômico para interferir no mundo intelectual. Washington sabe há muito
tempo que as universidades possuem uma enorme importância estratégica. Não foi por outro
motivo que a Ford Foundation, trabalhando junto com a Central Intelligence Agency (CIA),
distribuiu bolsas de estudo pelo mundo inteiro. Antes da derrubada de Allende em 1973, por
exemplo, ambas tinham formado uma horda de economistas chilenos convencidos de que a
melhor coisa a fazer era abrir o país ao capital estrangeiro e entregá-lo de bandeja aos Estados
Unidos (SEABRA, 2022a).
Um pouco de senso crítico não faz mal a ninguém. A religião pode, sim, ser estudada e
discutida de maneira séria e rigorosa pela filosofia (amesmo em sua face judaico-cristã (aliás,
o fato de que ela frequentemente contradiz o que prega a torna especialmente apetitosa)). A
reflexão filosófica a reflexão radical, responsável e corajosa sobre a religião, porém, parece
ter sido terminantemente banida da “filosofia da religião”. Ela se ocupa apenas com perguntas
anódinas. As perguntas de importância capital as perguntas verdadeiramente fundamentais
estão excluídas por princípio. Qual é o papel que o cristianismo continua a desempenhar no
etnocídio (por exemplo, no etnocídio dos Yanomami que recentemente virou manchete
internacional)? Por que os judeus israelenses estão tratando os palestinos como foram tratados
pelos nazistas (a ideia de superioridade étnica latejava em forma embrionária no judaísmo,
antes mesmo da mutilação da Palestina e da criação de Israel)? E por que a filosofia da religião
qua disciplina acadêmica que deve ser nitidamente distinguida da filosofia da religião qua
atividade intransigente de reflexão sobre os fenômenos religiosos insiste em fechar os olhos
para o cristianismo em seus aspectos mais fulgurantes e sórdidos, limitando-se a tentar provar
que Jeová existe por meio de pseudoargumentos lógicos e pseudocálculos matemáticos?
Talvez a resposta não esteja fora do alcance. A Templeton Foundation não tem nenhum
interesse em apoiar a filosofia no sentido estrito do termo. Ela não tem nenhum interesse em
apoiar a filosofia qua atividade intransigente de reflexão. Por que o faria? O que ela ganharia?
E deveríamos ser maduros o suficiente para saber que, em se tratando dos Estados Unidos,
nada vem de graça. Os objetivos de médio e longo prazo da Templeton não são difíceis de
entrever. O que ela quer fazer é esvaziar a universidade de todo pensamento crítico e de todo
pensamento não alinhado aos interesses dos psicopatas unidos do capitalismo (SEABRA,
2022b). Em uma palavra, ela quer esvaziá-la de todo pensamento. Pois o pensamento não aceita
nem 1+2=5 nem “Ele não nasceu no Brasil, logo ele é carioca”.
A menos que já esteja fraco e domesticado e acredite que a existência de Jeová pode
ser matematicamente demonstrada, por exemplo , o pensamento não abaixa a cabeça nem para
a trickle-down theory, nem para a ideia de que as universidades devem ser privatizadas, nem
para nenhuma outra asneira neoliberal ou neocolonial. Pelo contrário, o pensamento pensa.
Portanto, uma estratégia aparentemente paradoxal precisa ser tomada se quisermos avaliar de
forma séria a filosofia da religião (e a mesma coisa vale para a filosofia acadêmica de maneira
geral). Não podemos examinar apenas o que ela produz, o que ela publica e o que ela fala.
Precisamos também talvez sobretudo examinar o que ela não produz, o que ela não publica
e o que ela não fala.
Referências
COYNE, J. Martin Rees and the Templeton travesty. The Guardian, 06 abr. 2011.
Disponível em: https://www.theguardian.com/science/blog/2011/apr/06/prize-mug-martin-
rees-templeton. Acesso em: 02 jan. 2023.
EVANS, R.; LAWRENCE, F.; PEGG, D.; BARR, C. Wealthy US donors gave millions to
righting UK groups. The Guardian, 29 nov. 2019. Disponível em:
https://www.theguardian.com/politics/2019/nov/29/wealthy-us-donors-gave-millions-to-
rightwing-uk-groups. Acesso em: 02 jan. 2023.
PORTUGAL, A. C; PORTUGAL, C. P. Por uma Filosofia (da Religião) Criativa: o Problema
da Formação Filosófica a partir de uma Analogia com a Música. Trans/Form/Ação: Revista
de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 23- 52, 2023.
SEABRA, M. Oftalmopolítica: um problema com a visão da filosofia. Rio de Janeiro:
Ape’Ku, 2021.
SEABRA, M. Engenharia do saber: a continuação da guerra por outros meios. In: Coluna
Anpof, 18 ago. 2022a. Disponível em: https://www.anpof.org/comunicacoes/coluna-
anpof/engenharia-do-saber-a-continuacao-da-guerra-por-outros-meios. Acesso em: 02 jan.
2023.
SEABRA, M. Psicopatas Unidos do Capitalismo. Coluna Anpof, 14/11/2022b. Disponível
em: https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/psicopatas-unidos-do-capitalismo. Acesso
em: 02 jan. 2023.
TEMPLETON, J.; ELLIS, J. Templeton: Buy stocks in war, buy bonds if there’s peace.
Money, vol. 20, N. 2, 1991, p. 177. Disponível em:
https://discovery.ebsco.com/c/6kr4lr/viewer/html/emm7mikzoj. Acesso em: 02 jan. 2023.
Recebido: 02/03/2023
Aprovado: 10/03/2023