Tradução

Novas razões para o realismo[1]

 

Autoria: James J. Gibson[2]

Tradução: Claudio Ricardo Martins dos Reis[3]

 

Resumo: James J. Gibson (1904-1979) foi um psicólogo norte-americano que, juntamente com Eleanor J. Gibson (1910-2002), desenvolveu um imponente programa de pesquisa conhecido como psicologia ecológica. Gibson é considerado um dos mais importantes autores, no campo da percepção visual, tendo sido classificado entre os 100 psicólogos mais citados do século XX. No ensaio aqui traduzido, Gibson é explícito em sua busca por conectar seus estudos em psicologia a questões filosóficas mais abrangentes. Seu texto tem grande relevância para o debate filosófico sobre o realismo e sobre como alcançá-lo via teorias da percepção, no caso do autor, articulando a teoria de que a mente percebe ativa e diretamente os estímulos ambientais. Seu ensaio situa-se num contexto intelectual dominado por dois grandes paradigmas de pesquisa: o behaviorismo e o cognitivismo. Em contrapartida, o paradigma articulado por Gibson nega pressupostos centrais desses paradigmas dominantes, como, por exemplo, o pressuposto de que a percepção é passiva e instantânea. Para Gibson, a percepção é ativa, direta e envolve ciclos de percepção-ação, ao longo do tempo. Ainda que se afaste do behaviorismo e do cognitivismo clássicos, a psicologia ecológica se aproxima de teorias corporificadas e enativas da cognição.

 

Palavras-chave: Percepção ativa. Psicologia ecológica. Realismo direto.

 

Tradução

 

Se existem invariantes do fluxo de energia nos receptores de um organismo, e se esses invariantes correspondem a propriedades permanentes do ambiente, e se eles são a base da percepção do organismo do ambiente, em vez dos dados sensoriais sobre os quais pensamos que ela estava baseada, então eu penso que há um novo apoio para o realismo, na epistemologia, bem como para uma nova teoria da percepção, na psicologia. Posso estar errado, mas uma maneira de descobrir é submeter essa tese à crítica.

Neste artigo, a teoria da percepção será primeiramente esboçada e, em seguida, na medida em que sejam separáveis, as razões para o realismo serão apresentadas. Apenas um esquema básico da teoria precisa ser exposto, uma vez que foi recentemente publicada em forma de livro[4]. Será conveniente limitar a discussão ao problema central da percepção de objetos e eventos terrestres. Sob “objetos”, incluirei a Terra e o seu acessório fixo, as propriedades comparativamente imutáveis de coisas sólidas, em contraste com o céu, onde tais objetos determinados não existem. Sob “eventos”, incluirei objetos em movimento. Os problemas que surgem, quando os gestos, fala ou escrita humanos são as fontes de percepção, serão amplamente excluídos, embora alguma referência deva ser feita às imagens.

 

I A TEORIA DA PERCEPÇÃO BASEADA EM INFORMAÇÃO

As teorias existentes da percepção começam com a suposição inquestionada de que a percepção se baseia em sensações (impressões sensoriais ou dados sensoriais) e, em seguida, postulam algum tipo de operação que deve ocorrer, para convertê-las em percepções. É dado como certo que a sensação está implicada na percepção. A teoria da percepção baseada em informação começa com a suposição de que as impressões sensoriais são sintomas ocasionais e incidentais da percepção, as quais não estão implicadas na percepção. Portanto, não é obrigada a postular qualquer tipo de operação sobre os dados dos sentidos, nem uma operação mental sobre as unidades de consciência, nem uma operação do sistema nervoso central sobre os sinais dos nervos. A percepção é considerada um processo de captar (pickup) informação[5].

Os canais para as impressões sensoriais em animais e humanos são distintos dos chamados sistemas perceptuais. Os primeiros consistem em feixes de fibras nervosas conectando receptores passivos com pontos correspondentes no cérebro, e eles devem ser mutuamente exclusivos. Os últimos consistem em fibras que chegam de órgãos contendo receptores e fibras que saem de volta para esses órgãos e não devem ser mutuamente exclusivas, mas sobrepor-se umas às outras. Supõe-se que os nervos sensoriais enviem sinais distintos ao cérebro que eliciam qualidades de experiência correspondentemente distintas, nesse teatro da consciência. Supõe-se que os sistemas perceptuais façam ajustes orientadores e exploratórios dos órgãos perceptuais e ressoem de uma maneira particular, quando um tipo distinto de informação é captado. Os sentidos geram uma consciência dos receptores que foram estimulados por pequenas quantidades de energia, radiante, mecânica, térmica ou química. Os sistemas perceptivos geram uma consciência dos objetos – que, às vezes, não inclui nenhuma consciência dos receptores estimulados. Admite-se que as qualidades de visão, som, tato, paladar e olfato são interessantes e refletem fatos importantes da neurologia. Não devem ser confundidos, entretanto, com os atos de olhar, ouvir, tocar, saborear e cheirar, que têm uma base neurológica bem diferente.

A sensibilidade da retina, da cóclea, da pele, da língua e da membrana nasal pode ser estudada pelos métodos da fisiologia sensorial e da psicofísica clássica, todavia, os padrões variáveis de estímulos nervosos obtidos, quando os olhos se movem, a cabeça vira, a mão tateia e a boca trabalha, são apenas metade de um círculo de entrada-saída, e esse ato circular de atenção tem uma ordem de sensibilidade totalmente diferente. Ele se concentra não na estimulação, mas na informação oriunda de estímulo.

 

1 A existência de informação oriunda de estímulo

A primeira suposição dessa teoria da percepção é que certas propriedades do fluxo de energia na pele de um animal ativo não mudam, enquanto outras propriedades mudam. As primeiras são invariantes, as últimas são variantes. É ainda assumido, e pode ser demonstrado, que os invariantes de estimulação correspondem a propriedades invariantes do ambiente. Por isso, eles são chamados de “informações sobre” o ambiente. A energia do estímulo que incide sobre um observador deve ter um padrão ou estrutura para transmitir informações nesse sentido do termo. A luz ambiente, o som e o odor no meio circundante, juntamente com os contatos mecânicos e químicos que surgem do substrato e seus acessórios (fixtures), são formas de energia de estímulo que contêm informação-estímulo.

Considere a luz, por exemplo. A óptica física foi interpretada de forma a implicar que a luz carregava informações apenas sobre átomos, não sobre objetos[6]. Contudo, quando o estudante da visão acredita nisso, ele comete o erro de adotar as suposições do físico sobre a luz radiante de fontes de energia. Em vez disso, ele precisa fazer suposições sobre a luz ambiente das superfícies do mundo terrestre. Esta última está sujeita às leis da geometria perspectiva, não às leis do feixe de fótons. O estudante da visão útil deve estar preocupado com a óptica ecológica, não com a óptica física; com o tipo de luz pela qual as coisas são vistas, não com o tipo de luz que é vista. A estrutura de um arranjo de luz ambiente da Terra é a mesma, do meio-dia ao pôr do sol. Certas propriedades dessa estrutura são invariáveis sob transformações de perspectiva, conforme o observador se move de um lugar para outro. E esses invariantes são específicos para as substâncias das quais os objetos são compostos, para as bordas dos objetos e para a disposição de suas superfícies. A intensidade da luz em qualquer área do arranjo do ambiente varia com a hora do dia e com a posição do observador, de modo que ela não carrega informações sobre os objetos.

Os receptores primários na retina do olho, os cones e bastonetes fotossensíveis são estimulados por energia radiante, dentro de certos limites de intensidade e frequência. Nesse nível, a fisiologia do olho e a física da energia de estímulo são cognatas. Pode-se mostrar que a excitação de fotorreceptores provoca sensações correspondentes de brilho e cor, sob certas condições especiais de laboratório. Mas, quando uma imagem retiniana é formada, mesmo uma com apenas algumas margens ou contrastes, ela começa a ter estrutura, e devemos mudar da óptica física para a óptica ecológica. A própria retina tem uma estrutura de fibras nervosas interconectadas, e devemos passar do nível de um mosaico foto-receptivo para um nível ainda a ser compreendido de unidades de ordem superior no sistema nervoso. A simples correspondência do brilho com a intensidade e a da cor com a frequência não são mais válidas. Em suma, devemos pensar na informação-estímulo para o sistema, não na energia do estímulo para os receptores.

 

2 O fato da invariância ao longo do tempo

Supõe-se que o padrão da luz ambiente, as pressões do som ambiente e as pressões mecânicas do ambiente sobre qualquer animal vivo estão mudando continuamente. Nenhum arranjo de estímulo é congelado por qualquer período de tempo, exceto no caso de um observador adormecido ou inconsciente. Há o caso especial de um observador de laboratório que tenta ficar parado e manter os olhos fixos, mas, mesmo assim, seus olhos, cabeça e membros manifestam algum tremor. Consequentemente, a noção de um padrão de estímulo imutável é uma abstração não realizada, e a noção ainda mais abstrata de uma constelação fixa de estímulos pontuados é um mito. Existem realidades de estimulação que envolvem mudanças no tempo. A informação-estímulo sobre os objetos reside, portanto, nas propriedades invariantes do arranjo em transformação, ao longo do tempo. Isso se aplica tanto à visão quanto ao tato.

Tomando a visão como nosso exemplo, considere-se uma imagem. Supomos que seja o protótipo da estimulação visual, em vez da imagem fluida que resulta da locomoção. As informações sobre os objetos são muito reduzidas, na visão de olho mágico, ou seja, no arranjo óptico de uma imagem congelada, e ambiguidades de tamanho, distância, bordas e layout surgem na visualização de uma imagem. Essas contradições pictóricas foram estudadas durante séculos por pintores e psicólogos. Todas essas ambiguidades são removidas, quando o experimentador substitui a imagem pelo objeto, de modo que o observador possa caminhar ao redor do objeto e vê-lo em diferentes perspectivas.

Se isso for verdade, a função de um sistema visual não é registrar as perspectivas das coisas, suas formas ou manchas de cor, no campo visual, porém, registrar os invariantes subjacentes às perspectivas em mudança. A percepção de formas é um sintoma incidental dessa capacidade, não sua base; as chamadas sensações de forma que notamos em uma imagem, ou quando consideramos as coisas como silhuetas, não estão implicadas na percepção de objetos. A percepção no recém-nascido não começa com uma colcha de retalhos plana de sensações visuais inatas, à qual deve ser acrescentada profundidade por alguma operação, como o aprendizado; a percepção começa no nascimento com qualquer capacidade que o bebê tenha de captar os invariantes que são significativos para ele, no fluxo de estímulos.

 

3 O processo de extração de invariantes ao longo do tempo

As propriedades invariantes de um arranjo de estímulo variável correspondem às propriedades invariantes do ambiente. E quanto às propriedades variantes? A criança deve aprender a separar as invariantes das variantes, cada vez mais precisamente, à medida que cresce, e a concentrar sua atenção nelas, se quiser aprender mais e mais sobre o mundo. Ela normalmente faz isso por exploração, ou seja, alterando os padrões de estímulo em seus olhos e pele, para isolar o que permanece inalterado. Durante a exploração de um mundo estacionário, todas essas mudanças ou transformações não especificam nada mais que seus próprios movimentos. Eles têm uma referência subjetiva no seu próprio corpo. Uma vez que cada transformação é obtida como uma retroalimentação a partir de um movimento, ele pode reverter a transformação, revertendo seu movimento. A criança pode, portanto, controlar as variantes, mas não as invariantes da estimulação. Esse fato provavelmente tem algo a ver com a maneira como ela pode extrair o último da mistura.

Notemos que a detecção daquelas variantes de estimulação que podem ser controladas não é um canal de sentido ou um modo de sensação. O sentido clássico de cinestesia não o cobre. Nem é esse tipo de detecção um tipo de percepção. Ele é mais bem descrito como um componente de todos os sistemas perceptuais, o componente proprioespecífico.

Podemos agora dar um passo além. Notamos que nem todas as transformações são causadas por movimentos do observador. Algumas são produzidas por movimentos de objetos no mundo, como corpos caindo, pedras rolando e animais em movimento. Como a criança pode separar as variantes causadas por eventos externos das variantes causadas por seus movimentos corporais? Como ela pode saber que o mundo inteiro não se moveu, por exemplo, sempre que ela move os olhos? Esta é uma questão antiga e controversa, em psicologia. Uma possível resposta é extrair uma ordem ainda maior de invariante. A variação incontrolável, aquela que não pode ser revertida pela reversão de um movimento exploratório, é informação para um evento externo, assim como a invariante que permanece após uma variação controlável é informação para um objeto externo. Se a extração de invariantes, ao longo do tempo, é o processo-chave na percepção, pode-se presumir que ocorra em níveis mais elevados, incluindo aqueles chamados “intelectuais”.

 

4 A continuidade da percepção com a memória e o pensamento

Todas as teorias da percepção baseadas na sensação implicam uma distinção categórica entre percepção e memória, a primeira dependendo da estimulação presente e a última de uma recuperação dos traços da estimulação passada. Uma dificuldade para essas teorias é que nenhuma divisão nítida entre perceber e lembrar pode ser descoberta, na experiência. O presente se confunde com o passado indistintamente, e nenhum bom critério foi encontrado para separá-los. A teoria da percepção baseada na informação, por outro lado, pressupõe que a percepção e a memória não estão nitidamente separadas, seja lógica ou fenomenalmente, pois a dimensão do tempo foi incorporada na própria definição da informação-estímulo.

Supõe-se que a estimulação presente apareça diretamente na consciência como sensação. Supõe-se que a estimulação passada deixou traços que podem aparecer na consciência como imagens da memória. Frequentemente, supõe-se que as percepções sejam misturas de sensações e imagens de memória. Conceitos e pensamentos devem ser imagens puras de memória, sem qualquer mistura de sensações. O problema com essa teoria é que os observadores raramente são capazes de distinguir por introspecção entre as sensações e as memórias, e os pensadores, embora às vezes cientes das imagens, muitas vezes relatam que seus pensamentos são “sem imagens”.

A teoria da percepção baseada na informação evita essas dificuldades, ao supor que a posse de conhecimento acerca do mundo não implica nem sensações, nem imagens. Que um sistema cognitivo ressoe invariantes, ao longo do tempo, indica atenção aos fatos objetivos, presentes, passados ou futuros. Os sintomas de estimulação podem ou não aparecer como sensações na percepção. Os sintomas de lançar a atenção sobre o mundo inteiro ou durante um grande período de tempo podem ou não aparecer como imagens, no pensamento. Não faz diferença, pois são incidentais ao conhecimento, não essenciais para ele.

Nessa teoria, o velho problema de como imagens únicas da memória de um objeto podem ser fundidas em um conceito não é mais um problema. O problema de como um conceito pode ser imposto a uma nova percepção desaparece. O quebra-cabeça da invariância da percepção, apesar da variação das sensações, a “constância” do tamanho, forma e cor fenomenais dos objetos, não é mais um quebra-cabeça. E o problema realmente impressionante da persistência fenomenal de objetos, quando eles não estão mais “presentes aos sentidos”, porque eles foram ocluídos por outros objetos, é perfeitamente capaz de solução, quando percebemos que a consciência de um objeto não depende de uma consciência de sua mancha de cor, no campo visual.

 

5 Sumário

Quatro hipóteses foram delineadas acima: (1) a existência de informação-estímulo, (2) o fato da invariância, ao longo do tempo, (3) o processo de extração de invariantes, ao longo do tempo e (4) a continuidade da percepção com a memória e o pensamento. Sejam ou não verificáveis ​​(e este não é o lugar para uma reunião de evidências), elas andam juntas e fornecem uma teoria da percepção. Admitindo-lhe alguma plausibilidade, o que isso acarreta sobre os velhos enigmas filosóficos acerca do nosso conhecimento do mundo exterior e de nossa confiança nele?

 

Il IMPLICAÇÕES PARA A EPISTEMOLOGIA

Parece-me que essas hipóteses tornam razoável a posição de senso comum, o qual tem sido chamado pelos filósofos de realismo direto ou ingênuo. Eu gostaria de pensar que existe um apoio sofisticado para a crença ingênua no mundo dos objetos e eventos, e para a convicção simplória de que nossos sentidos dão conhecimento disso. Todavia, esse apoio é difícil de se encontrar, quando os sentidos são considerados canais de sensações; torna-se fácil, quando são considerados sistemas perceptuais.

Neste século, foram apresentados argumentos filosóficos altamente engenhosos que fornecem apoio indireto para a posição do homem comum. Tenho a impressão (embora possa estar errado) de que todas essas formas de realismo pressupõem o que chamei de teoria da percepção baseada em sensação, e é por isso que os argumentos têm de ser indiretos. O que acontecerá se considerarmos a teoria da percepção baseada na informação?

 

1 Experiência imediata ou direta

A doutrina de que tudo o que experimentamos diretamente é o fluxo de nossos dados dos sentidos significa que nossa experiência de objetos e eventos é indireta. A percepção é mediada pela sensação. Essa doutrina leva direto à controvérsia dos dados dos sentidos, já que é simplesmente falso afirmar que os dados dos sentidos são tudo o que experimentamos “diretamente”.

Agora temos um substituto para essa doutrina. Pode haver percepção direta ou imediata de objetos e eventos, quando os sistemas perceptuais ressoam de modo a captar informações, e pode haver uma espécie de percepção direta ou imediata dos estados fisiológicos de nossos órgãos dos sentidos, quando os nervos sensoriais como tais são excitados. Contudo, esses dois tipos de experiência não devem ser confundidos, pois estão em polos opostos, objetivo e subjetivo. Apenas a primeira deve ser chamada de experiência perceptiva. Pode haver uma percepção de outros órgãos do corpo, além dos órgãos dos sentidos, como na fome ou na dor, e essas também são apropriadamente chamadas de sensação. A concentração da atenção interna nos estados dos receptores, no entanto, como ocorre quando estamos cientes de imagens residuais, imagens duplas e "zumbidos nos ouvidos", não é natural. Psicólogos, filósofos e esquizofrênicos que fazem disso um hábito são chamados de “introspectivos” ou “introvertidos” pelo homem comum.

E sobre a consciência indireta? Esse termo deve agora ser reservado principalmente para a apreensão de coisas e eventos, por meio de substitutos ou artefatos humanos, incluindo imagens, palavras, dispositivos de reprodução de som e microscópios. Suspeito que a experiência é chamada de indireta, em tais casos, na medida em que há uma percepção direta simultânea da superfície da imagem, dos sons ou letras das palavras, do arranhar do disco e da visão do toca-discos, em resumo, do mediador como tal. Se os termos indireto e mediado devem ou não ser aplicados a casos de apreensão por juízo e inferência, não tenho certeza. Mas estou certo de que não existe um registro fonográfico no ouvido e nenhuma imagem no olho – nenhuma reprodução de um evento externo ou objeto que o órgão transmite ao cérebro.

 

2 A detecção de cores e sons

O homem comum sempre supôs que as cores dos objetos são uma coisa, ao passo que as cores de um arco-íris ou de um pôr do sol ou de uma mancha de óleo são outra coisa. Ele vê a cor de uma superfície na superfície, embora possa ver outras cores que parecem estar na luz. Entretanto, esse sujeito simples foi informado de que ele está errado desde a descoberta de Newton dos comprimentos de onda espectrais, pois as cores estão apenas na luz, não nos objetos. Mais ainda, a óptica física e a óptica fisiológica lhe dizem que as cores estão apenas nele [no sujeito], já que a luz consiste em ondas (ou fótons – ambos são verdadeiros, desculpe!). O pobre homem fica perplexo, mas continua vendo cores nas superfícies. Mais exatamente, ele vê praticamente a mesma cor na mesma superfície, apesar da mudança na quantidade, tipo e direção da iluminação que incide sobre ela. A luz é variante, a cor é invariante, então, é claro que ele vê a cor na superfície, não na luz.

A óptica ecológica, eu penso, é uma promessa de assegurar-lhe que ele está certo, afinal. Ela postula informações-estímulo na luz ambiente, a partir de uma disposição de superfícies refletoras, conforme já foi observado. As várias refletâncias dessas superfícies, seus tipos de pigmentação natural, ajudam a determinar a estrutura da luz ambiente. Os invariantes de estrutura que especificam classes de pigmentos naturais (como em frutas maduras vs. verdes, por exemplo) são altamente complicados e ainda precisam ser detalhados, porém, ao fazê-lo, estamos obtendo algum progresso.

A acústica física diz ao homem comum que as sensações de sonoridade, tom e mistura de tom estão em sua cabeça e só surgem, porque correspondem às variáveis ​​das ondas sonoras no ar. Ele não poderia ouvir um evento mecânico; ele só pode inferir isso, a partir dos dados. Mesmo assim, ele continua ouvindo eventos naturais, como esfregar, raspar, rolar e escovar, ou eventos vocais, como rosnar, latir, cantar e coaxar, ou eventos do carpinteiro, como serrar, bater, limar e cortar. A acústica ecológica lhe diria que o evento vibratório, a fonte das ondas, é especificado em certas propriedades invariantes ​​da corrente de ondas. Essas propriedades (as transientes, por exemplo) são as mesmas em todo o campo de ondas sonoras centradas na perturbação mecânica e se estendem para fora no meio. As informações sobre o evento estão fisicamente presentes no ar que circunda o evento. Se o homem estiver ao alcance da voz, ele ouve o evento.

Em suma, há um significado próprio da palavra "cor", que se refere a uma característica distintiva de uma substância sólida. Há um significado próprio da palavra "som", que se refere a uma característica distintiva de um distúrbio mecânico. A doutrina das qualidades secundárias vem de um mal-entendido.

 

3 Experiência pública e experiências privadas

A ecologia da informação-estímulo, diferente da física da energia-estímulo, descreve campos de estimulação disponíveis. Em qualquer espaço aéreo, existem campos de três tipos: (1) campos sobrepostos de ondas de compressão aerotransportadas de eventos mecânicos (“sons”), (2) campos interpenetrantes de projeções de perspectiva de superfícies refletoras (“visões”) e (3) campos de difusão de substâncias voláteis de plantas e animais (“odores”)[7]. Eles aumentam e diminuem em intensidade, mas geralmente estão disponíveis para os ouvidos, olhos e narizes dos animais terrestres, há milhões de anos. Eles controlaram a locomoção dos animais em direção às fontes desses campos ou para longe deles. Eles constituem o que pode ser chamado de informação pública para a percepção de eventos, objetos e organismos.

A estimulação ambiente para um observador individual em qualquer local, em tal espaço aéreo, não é a mesma que em qualquer outro local, no entanto, a informação é a mesma e, uma vez que ele se move, ele pode ter as mesmas percepções que outro observador poderia ter. Na verdade, toda uma multidão de observadores poderia ouvir, ver e cheirar as mesmas coisas. Eles também poderiam ouvir, ver e talvez cheirar uns aos outros. Cada um, finalmente, poderia ouvir sua própria voz e passos e ver seu próprio corpo.

Agora, sugiro que esse estado de coisas pode definir o que poderia ser chamado de níveis de crescente “privacidade” de percepção. Todos os observadores podem obter exatamente as mesmas informações sobre uma árvore, se todos caminharem ao redor dela e obtiverem as mesmas perspectivas. Cada observador obtém de suas próprias mãos um conjunto de perspectivas um tanto diferente do que qualquer outro observador, embora haja muito em comum. Mas a perspectiva do próprio nariz é absolutamente única e ninguém mais pode vê-la desse ponto de vista particular. É uma experiência totalmente privada. Está sempre lá toda vez que os olhos estão abertos – ou melhor, está sempre ‘aqui’[8].

A árvore, a mão, o nariz são cada vez mais privados. A imagem posterior negativa é ainda mais privada e de uma maneira especial. É uma pura sensação, nós dizemos.

E sobre as sensações? Se for correto dizer que essas experiências curiosas são uma espécie de detecção dos estados fisiológicos dos órgãos dos sentidos, então, elas são a mais privada de todas as formas de consciência. Ninguém mais pode ter os meus dados dos sentidos. Por falar nisso, ninguém mais pode sentir minhas dores de cabeça ou minha fome ou meu batimento cardíaco. Todavia, se concordarmos que o conhecimento do mundo não é, em princípio, redutível aos dados dos sentidos, como insisto, não há razão para ficar intrigado com a contradição entre a natureza privada das sensações e a natureza pública da percepção. Se as sensações são a base da percepção, há todas as razões para as tentativas de mostrar que não são tão íntimas quanto parecem, não importa quais acrobacias intelectuais sejam necessárias. Mas, se elas não são a base da percepção, podemos relaxar e permitir-lhes seu lugar no polo subjetivo da experiência, sem o perigo de cair no buraco ridículo do solipsismo.

 

4 Sumário

Tanto a psicologia da percepção quanto a filosofia da percepção parecem mostrar uma nova face, quando o processo é considerado em seu próprio nível, distinto daquele da sensação. Conceitos não familiares em física, anatomia, fisiologia, psicologia e fenomenologia são necessários, para esclarecer a separação e torná-la plausível. Mas tem havido tantos becos sem saída no esforço de resolver os problemas teóricos da percepção que propostas radicais podem agora ser aceitáveis. Os cientistas costumam ser mais conservadores do que os filósofos da ciência. Concluo, portanto, como comecei, com um pedido de ajuda.

 

NEW REASONS FOR REALISM

Abstract: James J. Gibson (1904-1979) was an American psychologist who, together with Eleanor J. Gibson (1910-2002), developed an imposing research program known as ecological psychology. Gibson is considered one of the most important authors in the field of visual perception and was ranked among the 100 most cited psychologists of the 20th century. In the essay translated here, Gibson is explicit in his quest to connect his studies in psychology to broader philosophical questions. His text has great relevance for the philosophical debate on realism and on how to achieve it via theories of perception, in the author's case, articulating the theory that the mind actively and directly perceives environmental stimuli. His essay is situated in an intellectual context dominated by two major research paradigms: behaviorism and cognitivism. In contrast, the paradigm articulated by Gibson denies central assumptions of these dominant paradigms, such as, for example, the assumption that perception is passive and instantaneous. For Gibson, perception is active, direct, and involves perception-action cycles over time. Although moving away from classical cognitivism and behaviorism, ecological psychology approaches embodied and enactive theories of cognition.

 

Keywords: Active perception. Direct realism. Ecological psychology.

 

REFERÊNCIAS

GIBSON, J. J. The Senses Considered as Perceptual Systems. Boston: Cornell University, 1966.

GIBSON, J. J. Perception as a Function of Stimulation. In: Psychology: A Study of a Science, vol. I: Sensory, Perceptual, and Physiological Formulations (ed. por S. Koch). New York: McGraw-Hill, 1959.

GIBSON, J. J. The Perception of the Visual World. Boston: Houghton Mifflin, 1950.

GIBSON, J. J. Studying Perceptual Phenomena. Methods of Psychology (ed. por T. G. Andrews). New York: John Wiley, 1948.

 

Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao Prof. Dr. Eros Moreira de Carvalho (UFRGS) e aos avaliadores anônimos pela revisão cuidadosa desta tradução.

 

Recebido: 01/05/2023 - Aceito: 10/07/2023 - Publicado: 13/11/2023



[1] Tradução do artigo “New Reasons for Realism”, de James J. Gibson, publicado pelo periódico Synthese, v. 17, p. 162-172, 1967. A versão original do artigo pode ser lida aqui: https://link.springer.com/article/10.1007/BF00485025

[2] Departamento de Psicologia, Cornell University.

[3] Professor Adjunto de Filosofia, História e Sociologia da Ciência, Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4214-530X. E-mail: claudiormreis@gmail.com.

[4] GIBSON, J. J. The Senses Considered as Perceptual Systems. Boston: Cornell University, 1966. O livro representa a forma atual da teoria. Um estágio menos desenvolvido (parte do qual eu não mais defenderia) pode ser encontrado em "Perception as a Function of Stimulation", em Psychology: A Study of a Science, v. I: Sensory, Perceptual, and Physiological Formulations (ed. Por S. Koch). New York: McGraw-Hill, 1959. Uma teoria ainda mais imatura pode ser encontrada em The Perception of the Visual World. Boston: Houghton Mifflin, 1950. O germe dela está em “Studying Perceptual Phenomena”, em Methods of Psychology (ed. por T. G. Andrews). New York: John Wiley, 1948.

N.T.: Publicado, posteriormente ao artigo, o último livro de James Gibson, que representa a versão mais desenvolvida da teoria, é The ecological approach to visual perception: Classic Edition. New York and London: Routledge, 1979/2015.

[5] N.T.: Gibson usa o verbo pick up e derivados como um termo técnico para referir-se ao processo por meio do qual o organismo capta informação ambiental.

[6] Essa implicação, e a outra que afirma que só podemos saber sobre partículas, não sobre objetos, parecia esmagadora para mim e para muitos outros cientistas, há 37 anos. Eu a li em A. S. Eddington, The Nature of the Physical World, Nova York, 1929. Levei anos para superá-la. Agora percebo que o mundo físico de Eddington era o céu, não a terra.

[7] As partes voláteis de plantas e animais são, às vezes, chamadas de “essências”, devido aos odores químicos. Isso sugere o fato de que os vapores de muitas coisas as especificam, isto é, as distinguem de outras coisas, e é isso que quero dizer com informação sobre as coisas.

[8] O que acontece quando um homem vê seu nariz em um espelho, um nariz virtual, é interessante, mas tem muitas ramificações para dar seguimento aqui.