SOBRE A FILOSOFIA COMO INVESTIGAÇÃO DE QUESTÕES EXISTENCIAIS

 

Diogo Bogéa[1]

 

Resumo: Parte-se da problematização do modo como em geral se concebe a prática filosófica em nosso meio acadêmico. Encaminha-se em seguida uma compreensão da Filosofia como processo de investigação séria e sincera de questões existenciais e de criação de teoria. Pretende-se com isso colocar em questão alguns dos diagnósticos e soluções mais comuns para o “subdesenvolvimento” do fazer filosófico no Brasil, bem como fornecer uma contribuição para a difusão de uma prática filosófica que arrisque o salto do comentário para a criação.

 

Palavras-chave: Filosofia no Brasil. Questões existenciais. Criação de teoria.

 

Considerações iniciais: o problema e suas possíveis causas

            O problema é bem-conhecido: em nossas graduações e pós-graduações em Filosofia não se faz realmente Filosofia. Nem alunos, nem professores. Nem os mais antigos, nem os recém-chegados. O que passa em nossa academia com o nome de Filosofia é, na verdade, História da Filosofia europeia. Fiquemos com o preciso diagnóstico de José Crisóstomo de Souza, um dos poucos que, tendo despertado do sonambulismo crônico do comentário compulsivo e compulsório que nos acomete, tem se dedicado à questão:

Como subalternos, copiadores, tradutores, no caso da filosofia, como comentadores internos, historiadores da filosofia, entramos com pouca ou nenhuma contribuição digna do nome, relevante – não mexemos com nada. Entramos apenas com contribuições sem sofisticação ou autonomia (em termos de elaboração, digo), sem desembaraço ou iniciativa, sem ousadia ou disposição crítica, sem ironia ou irreverência, sem nada pra dizer e sem nada da nossa cara (Crisóstomo, 2021, p. 9).

Como bem diz Gonçalo Armijos Palácios, os títulos dos nossos trabalhos acadêmicos seguem sempre a fórmula “‘O conceito de xxx em YYY’, ‘A noção de www em ZZZ’, ‘A categoria de uuu em VVV’ etc.” (Palácios, 1997, p. 14).

            Assim, todos nós já vimos – e possivelmente vivemos – aquela situação narrada por Julio Cabrera, em seu Diário de um Filósofo no Brasil: a do aluno apaixonado por questões existenciais que, pouco a pouco, conforme avança pelos degraus da carreira universitária, vai sendo absorvido pelas engrenagens da máquina acadêmica, vai se adaptando ao modelo padrão de produção:

Quando o rapaz expunha suas idéias em seu novo meio, como sempre tinha feito, começou a perceber incompreensão e uma marcada ironia por parte de seus novos professores e mesmo de seus colegas: quem era este insolente rapazinho de 20 e poucos anos que pretendia ser filósofo? Começaram a sugerir-lhe que devia fazer muitas leituras para tentar enquadrar seus interesses dentro de uma literatura e uma tradição de pensamento. O rapaz começou a se dar conta de que não lhe seria possível continuar pensando fora dessas trilhas, se ainda pretendia um diploma e uma habilitação. Aos poucos, foi baixando a cabeça e fazendo o que lhe ordenavam. Escolheu um autor consagrado como tema de sua dissertação, e tentou inserir os farrapos de seus pensamentos dentro das temáticas deste autor (Cabrera, 2013, p. 73-74).

            As causas desse nosso subdesenvolvimento filosófico já foram também muito competentemente mapeadas. Uma delas é, certamente, aquela que Paulo Arantes disseca com tanta minúcia quanto beleza na obra que tem como título a expressão que Lévi-Strauss utilizou para se referir à “missão francesa” enviada à USP, para comandar a Faculdade de Filosofia fundada nos anos 30 do século XX: “Departamento Francês de Ultramar”. Arantes nos conta que Jean Maugüé, o “pai fundador” da cultura filosófica acadêmica uspiana – que hoje vemos espalhada por todo o Brasil –, a fim de preparar o terreno selvagem do espírito sul-americano para a lida rigorosa que a Filosofia exige, investiu numa concepção do curso cuja ênfase repousava sobre a História da Filosofia, a leitura dos clássicos e a exigência de amparar argumentos com a autoridade da citação (Arantes, 1994, p. 71-72).

            Mais tarde, na passagem dos anos 50 para os 60, a tendência exegética foi aprofundada e devidamente consolidada pela importação e aplicação do “método estrutural” de leitura. A descrição de Ronaldo Porto Macedo Junior soará familiar a qualquer um que tenha frequentado a lida acadêmica com a Filosofia no Brasil. O “elemento essencial” do método estrutural é o cuidado com a observância da “estrutura interna” do texto filosófico:

Este método exige certa humildade perante o texto. Este deve ser lido a partir da pressuposição (mais uma vez provisória) de sua consistência. Uma atitude semelhante à de um jovem interessado no jogo do xadrez que, ao analisar o lance de um grande mestre enxadrista cuja lógica à primeira vista não compreende, suspende provisoriamente a sua crítica. Ele deve buscar, antes da censura, um redobrado esforço para compreensão da “inteligência do lance”. Antes da avaliação quanto a ter sido aquele um bom ou mal lance, a sua intenção e coerência (Macedo Junior, 2007, p. 15-16).

            Nós nos convertemos, então, definitivamente, em humildes leitores dos textos sagrados de filósofos infalíveis. Nas palavras de Paulo Arantes, na lida com o método estrutural, não interessava “[…] a verdade material das doutrinas, afinal assimilada à estrutura que lhe organizava as teses”. Tratava-se de perguntar “[…] pelo sentido e não pela verdade de um sistema filosófico, a respeito do qual se suspendia o juízo” (Arantes, 1994, p. 18). E, assim, as questões filosóficas foram se distanciando cada vez mais das questões existenciais que as motivaram – e nas quais, como seres existentes, estamos implicados e convidados a participar – e se converteram em questões de método – um método que nos cabe compreender e aplicar, sem que precisemos sequer compreender e, muito menos experimentar, quaisquer questões existenciais.

            Essa cultura exegética uspiana que se tornou dominante no Brasil a partir dos anos 60 é certamente uma das causas do nosso subdesenvolvimento filosófico. Outras causas que variam entre a imprecisão e o absurdo foram também levantadas: a suposta “pobreza” da língua portuguesa em relação especialmente ao grego e ao alemão – tese baseada no delírio ultranacionalista de Heidegger (e sabemos a extensão desse delírio na vida de Heidegger…) (Palácios, 1997, p. 20-21); a suposta natureza “cordial” do espírito brasileiro, mais ou menos devida à herança colonial portuguesa e que nos fez, ao mesmo tempo, autoritários e desregrados, fiéis a ligações pessoais e individualistas, corajosos e pouco ousados, anárquicos e pragmáticos, autoritários e amorosos (Cabrera, 2013, p. 189); a suposta base corporal-afetiva da existência sul-americana em oposição à plena racionalidade europeia.

Todas essas razões são imprecisas, falsas, mitológicas ou simplesmente absurdas. Mas todas elas, junto com a muito real tradição exegética uspiana, parecem remontar a uma única causa: o fato histórico de termos sido um país colonizado por europeus, tendo vivido por quase 400 anos numa realidade social na qual senhores e senhoras descendentes de europeus reinavam absolutos sobre terras, coisas e pessoas. Sob o longo domínio da barbárie europeia, os povos indígenas foram quase inteiramente exterminados e milhões de pessoas foram brutalmente sequestradas de diversas etnias africanas e postas para trabalhar em condições sub-humanas, sob a ameaça – não raramente cumprida – das piores torturas físicas e psicológicas. Essa realidade colonial que, colocada sobre a régua da longa duração histórica é ainda muito recente, deixou como herança maldita um terrível “colonialismo mental”, para usar uma expressão de Mangabeira Unger (2018).

            Tudo o que vem da Europa ocidental e dos Estados Unidos nos parece mais interessante e digno de atenção. O pensamento por eles produzido nos parece sempre mais sério e bem-elaborado. Tratamos de aprender a falar inglês, francês e alemão com um esmero que muito raramente se encontra da parte dos europeus que (não) aprendem a falar português. Nossa sensibilidade est’ética é moldada desde muito cedo por filmes e séries estadunidenses e europeus, os quais incutem em nossa rede afetiva modelos e padrões de vida e beleza importados. E, no caso brasileiro, o colonialismo mental é tão forte que somos talvez o único povo – no restante da América Latina não se vê coisa parecida – que conta sua própria história do ponto de vista do colonizador, tendo como marco inicial a chegada do colonizador, em 1500, e daí seguindo para a vinda da família real colonizadora, em 1808, a “independência” proclamada pelo príncipe colonizador, em 1822, e a abolição da escravidão num ato de bondade da princesa colonizadora, em 1888. Está aí a mais profunda causa do nosso “complexo de vira-latas” que instaura um verdadeiro “narcisismo às avessas”, expressões de Nelson Rodrigues brilhantemente recuperadas por John Aquino, no belíssimo artigo “Narcisismo às avessas e a nossa filosofia brasileira”.

 

1 Sobre a filosofia como investigação de questões existenciais

            Se o leitor me permite, operarei a partir de agora uma mudança de tom e de pessoa – do comentário para o ensaio; da terceira para a primeira.

            A professora que tenho como primeira e maior mestra nos caminhos do pensamento certa vez me disse – fazendo troça com o “por que” no subtítulo de um dos meus livros – que o “por que” é coisa de neuróticos e paranoicos e que só o “como” deve verdadeiramente nos interessar. De certa forma, ainda que indiretamente, ela sempre me incentivou a me desprender daquele incômodo “por que” – “Por que não fazemos Filosofia no Brasil?” - e partir diretamente para o “como” – Como posso eu, que calhei de existir e, ainda por cima no Brasil, fazer Filosofia? Pela própria maneira como a Filosofia me foi apresentada, eu me senti convidado e convocado a participar – a tomar parte – nas grandes discussões filosóficas de todos os tempos. Tentarei compartilhar com o leitor, a partir de agora, essa maneira de compreender e lidar com a Filosofia, bem como algumas indicações que podem ser úteis para promover essa passagem do “por que” ao “como” e do “como” ao efetivamente fazer Filosofia.

            Tal como a compreendo – como fui ensinado pelos meus mestres de hoje e de sempre a compreendê-la – o motor da Filosofia é a investigação de questões existenciais. Questões existenciais são aquelas que colocam nossa existência em jogo. Seu simples aparecimento enquanto questão já indica uma espécie de abalo existencial: cada vez que emerge uma questão existencial é porque aquelas respostas consolidadas, aqueles mitos compartilhados no nosso tempo e no nosso lugar, aqueles valores e modelos construídos muito antes da nossa chegada e que nos dizem, desde muito cedo, quem ou o que somos e quem ou o que devemos ser entraram – para nós, ainda que momentaneamente – em crise.

O viver social providencia – e nós providenciamos – nossos modos de instalação no real, modos de contornos bem definidos e práticos, numa especialização de nossa existência, objetivando manejar situações com a máxima segurança. Uma condição talvez nos leve a isso: o homem é um animal enraizado na insegurança, o que faz com que nada nos fascine mais do que a certeza. As certezas dos limites de nossas instalações, as quais acabam plasmando nosso mundo. É de agarrar-se a tais limites que extraímos nossa débil segurança (Gomes, 1994, p. 92).

Esses limites que plasmam o mundo no qual chegamos de supetão e que então vai se fazendo nosso, pré-determinam nossos modos de ser, de agir e de pensar. Essas limitações, definições e determinações nos prometem segurança, estabilidade, controle, ordem e previsibilidade. No entanto, não tardaremos a descobrir que, diante do movimento irrefreável das circunstâncias que compõem o mundo – e que não cessa de dar mostras da sua radical indiferença em relação à nossa sorte –, essas promessas não poderão ser cumpridas.

            Vez por outra, seremos acometidos por experiências excessivas, transbordantes, que superam em muito as capacidades de contenção e organização provenientes dos horizontes de sentido estabelecidos. Basta uma movimentação qualquer nas placas tectônicas das circunstâncias que compõem nosso mundo – uma frustração de qualquer ordem, uma decepção amorosa, uma catástrofe natural, uma catástrofe sociopolítica – ou mesmo aquele incômodo tédio que vai se entranhando pelas frestas da nossa bem-estabelecida rotina cotidiana até que, como um hóspede indesejado, se instale de vez e se converta em angustiante mal-estar, e as respostas, definições e valores que tão bem estruturavam nosso mundo revelam sua fragilidade, suas rachaduras ou sua total falta de fundamentos, pairando no ar como o Castelo nos Pirineus de Magritte.

            Nesses momentos de crise existencial é que surgem as questões existenciais: quem sou eu? O que estou fazendo aqui? Como surgiu este mundo? Como se formaram as instituições que ditam os valores desta sociedade? Haverá algum poder maior regendo as circunstâncias do mundo ou tudo se dá por mero acaso – ou, quem sabe, por pura necessidade? O que fazer com essa vida, agora que as respostas prontas que me foram passadas por alguma razão parecem não servir mais? Mas serei livre, afinal, para agir de um modo ou de outro, para acreditar numa ou noutra doutrina? E esses tantos outros – essas outras coisas, instituições e pessoas – que povoam o mundo: como me relacionar com eles?

            É muito provável que, para um leitor bem-formado nas virtudes acadêmicas, essas questões pareçam infantis, juvenis, românticas ou despropositadas. E, no entanto, sem perceber, esse mesmo leitor carrega consigo respostas para cada uma delas, se não advindas da Filosofia – que se tornou mero comentário, em geral desconectado de questões existenciais –, advindas da religião, da família, da propaganda ou das artes. Essas questões colocam nossa existência em jogo. Uma vez que são lançadas, é impossível permanecermos indiferentes a elas. O tipo de resposta que se dá a cada uma dessas questões altera significativamente a maneira como vivemos e como experimentamos nossa existência. São questões de uma ordem totalmente diferente do tipo de questão que somos ensinados a levantar em nossas trajetórias acadêmicas: questões do tipo “Como explicar com a maior perfeição possível o que Deleuze queria dizer quando falou em ‘diferença’?”, “Como explicar a categoria kantiana de ‘relação’”?, “Como o conceito nietzschiano de ‘vontade de poder’ resiste a reproduzir uma metafísica tradicional da unidade e da identidade”? “Como o conceito sartriano de ‘má-fé’ dialoga com a tradição filosófica da ética contemporânea?” Levantar esse tipo de questão não necessariamente dá voz a qualquer experiência pessoal de desarrumação ou abalo nas circunstâncias que compõem nosso mundo. As respostas que se dão a elas não necessariamente alteram qualquer aspecto da nossa existência prática. E, no entanto, arrisco a dizer sem medo de errar: todas as obras de todos os filósofos e filósofas que estudamos e admiramos tomam como ponto de partida – e são inteiramente irrigadas por – questões existenciais.

            É completamente inverossímil imaginar que nossos filósofos e filósofas favoritos tenham escrito suas obras por estarem às voltas com questões meramente técnicas. Todos eles arriscaram suas vidas, suas reputações, suas relações interpessoais e sua sanidade para pensar o que pensaram e escrever o que escreveram. Não é de se imaginar que Platão tivesse um problema técnico sobre a possibilidade de enunciação de um discurso verdadeiro. Ele está às voltas com um problema político muito real numa sociedade em que, ao menos declaradamente, as questões mais urgentes são decididas em diálogos e debates públicos. Ele está às voltas com o luto pela morte do mestre, condenado por essa mesma sociedade e suas instituições democráticas. Ele está investigando qual será a vida mais digna de ser vivida nessa existência que é a dele.

É absurdo imaginar que Descartes tivesse um problema técnico acerca da chamada questão do “sujeito”. Ele está enfrentando questões existenciais insistentes, tais como “quem sou eu?” e “será possível que, com essa constituição psicofisiológica limitada, eu seja capaz de encontrar alguma verdade?” Lidando com essas mesmas questões, Kant chega à perturbadora conclusão de que não temos qualquer possibilidade de acesso às “coisas-em-si” e isso só não é mais perturbador do que o fato de fazermos teses e mais teses sobre esse tema, sem que suas implicações despertem em nós qualquer incômodo. Hannah Arendt, diante do oficial nazista que havia enviado milhares de judeus para os campos da morte, é capaz de extrair dali toda uma reflexão existencial sobre a banalização do mal e o perigo extremo de (quaisquer) contextos em que imperem uma intensa massificação e a ausência de pensamento.

            Enfim, chega a ser incrível que possamos produzir tantos livros e artigos sobre esses pensadores e seus conceitos sem que precisemos entrar em contato com as questões existenciais que motivaram suas obras – e, por isso mesmo, sem jamais tomá-las como questões existenciais para nós, para serem pensadas por nós, nesse tempo e nesse lugar em que calhamos de estar.

           

2 Seriedade e sinceridade

            O motor da filosofia são as questões existenciais. Mas o fazer Filosofia não se resume à colocação de questões existenciais. Estas emergem espontaneamente, muitas vezes a contragosto. E, uma vez aparecidas, lançam para cada um o desafio: o que podemos fazer com elas? Ou, mais precisamente: o que elas podem fazer conosco? Questões existenciais podem muito bem nos conduzir a uma fuga desesperada das crises, abalos e do desamparo radical que, assombrosos e espantosos, as motivaram em primeiro lugar. Podem muito bem nos levar a buscar refúgio nas certezas dogmáticas da religião, na militância política orientada por uma teoria pré-fabricada, na imersão cada vez mais funda em um ciclo cotidiano interminável de trabalho e distração e até mesmo no comentário filosófico sem fim onde, tão perto e tão longe da Filosofia, bem-escondidos atrás de nossos guias filosóficos protetores, reviramos os restos deixados pelos caminhos das questões existenciais enfrentadas pelos filósofos europeus. Todavia, quando nos levam pelo caminho da investigação, mobilizando “[…] espírito crítico, imaginação e poder argumentativo” (Palácios, 1997, p. 33), aí sim as questões existenciais podem nos levar a fazer Filosofia.

            Leio essa tríade destacada por Palácios da seguinte maneira: quando embarcamos numa investigação séria e sincera das questões existenciais que nos acometem, utilizando a imaginação como espaço de simulação para formular hipóteses, construir exemplos, fazer comparações, elucubrar respostas provisórias e experimentar cenários diversos, usando o espírito crítico para colocar cada resposta que apareça em questão e sob teste, bem como o poder argumentativo para expressar e registrar esse percurso numa espécie de diário de viagem, aí então estaremos realmente fazendo Filosofia. Heidegger tomava aquela que, segundo Leibniz, era a questão fundamental da metafísica – “Por que há o ser e não antes o nada?” – como primeira e única questão existencial fundamental da qual todas as demais decorrem. Certa vez, afirmou: “Investigar realmente essa questão significa: tentar ousadamente, esgotar à força de investigações o inesgotável dessa questão, revelando aquilo que ela impõe a investigar. Onde qualquer coisa de semelhante ocorrer, há filosofia” (Heidegger, 1999, p. 39). A descrição me parece precisa, eu apenas acrescentaria que o mesmo vale para qualquer questão existencial.

             Mas eu falei em uma investigação séria e sincera das questões existenciais e agora me vejo obrigado pelo tal espírito crítico a fazer um parêntese. Não se trata aqui da seriedade do “homem sério” que se ocupa de “coisas sérias”, tal como descrito por Roberto Gomes em sua maravilhosa Crítica da Razão Tupiniquim:

Existem coisas sérias, consagradas pelo uso acadêmico, de bom tom e alta ilustração. São coisas que vêm sendo discutidas na Sorbonne, em Oxford, publicadas em Paris ou Berlim, apresentadas em congressos. Constituiu a Filosofia, desta forma, seus próprios temas e maneiras de tratá-los – aqueles que convêm. Quer dizer, seus sufocantes ternos e gravatas. E o triunfo do homem sério é atingido quando se chega à completa ritualização. Quando já não importa o dito, mas a maneira de dizer dentro de padrões previamente consagrados. Assim, uma comunicação a um congresso pode ser absolutamente vazia e soberbamente tola – mas, cumprido o ritual, o aspecto "sacrossanto" da cultura é preservado. Eis aí coisas convenientes, perfeitamente sérias (Gomes, 1994, p. 12).

Trata-se, sim, daquele outro tipo de seriedade que Gomes também destaca: a seriedade de levar as questões existenciais a sério, deixando-se levar por sua investigação até as últimas consequências: “Com efeito, o que faz a Filosofia? Sua pretensão parece ser clara: desde sempre pretendeu ser um pensar ao limite. Ou: um levar a sério que busca extrair de si as últimas consequências” (Gomes, 1994, p. 92).

            Percebe-se a diferença? Na cultura do comentário, com homens muito sérios, envolvidos com o trabalho sério de explicar – com a maior perfeição e dentro dos formalismos estabelecidos pelas seríssimas instituições acadêmicas – os conceitos de filósofos consagrados, não se leva, em nenhum momento, a sérioas questões existenciais ali presentes. Por outro lado, uma investigação séria das questões existenciais nos levará a tentar ousadamente esgotar seu inesgotável poder de co-moção, mobilizando imaginação, espírito crítico, poder argumentativo e todo tipo de afetos que participam da nossa composição. A investigação séria nos leva ao limite – um limite além de todos os limites pré-estabelecidos no nosso tempo e no nosso lugar.

Ela não exclui, obviamente, o riso, a graça, a brincadeira e a ironia. Ela “sai do sério” e “tira do sério” e nos conduz àquela zona algo indiscernível entre a lucidez e a loucura. Na bela descrição de Julio Cabrera: o filósofo “[…] não será apenas o humano desamparado e incompleto, mas aquele humano que ousa lançar-se sobre seu desamparo e incompletude com paixão reflexiva, com menos medo da loucura que da mediania” (Cabrera, 2013, p. 21). Ou seja, não se trata apenas de experimentar o desamparo ou de colocar questões existenciais – isso acontece com todo mundo. Trata-se de abandonar-se a essas questões, cujo fundo sem fundo é o – já experimentado – desamparo com paixão reflexiva até o limite que elas próprias encontrem para além de todo limite já estabelecido.

            Quanto à sinceridade, terá muito menos a ver com um sempre falar a partir de uma verdade previamente estabelecida que fundamenta nosso dizer, mas justamente com uma certa experiência de perder-se, de deriva e de errância que é própria do pensamento:

Um pensar ao limite só poderia nos atrapalhar. Se devo pensar, tudo está em jogo, sendo o pensar a sério um levar-se ao limite. Equivale a expor nossas instalações ao perigo da dissolução, já que pensar é o mesmo que duvidar. A face inquietante da Filosofia é a ameaça ao tranqüilo esquema de instalação que montáramos para enfrentar o real, aniquilando-o como coisa em si. O pensamento tenderá a explodir esta inércia do dado bruto ao qual nos agarrávamos. Contávamos com comodismos de instalação que vemos, súbito, desabar. E o que pretende a Filosofia quando a sério? Salvar-nos? Não. A Filosofia não é salvação – é perdição. Ao menos antes de alienar-se nalgum sistema. Convida-nos a largar tudo, a encontrar soluções por conta própria. Em suma: pensar por si mesmo. Eis o convite que nos aterroriza e que nos põe nos limites de nossas certezas: pensar por conta própria. Me contaram ou li (ou inventei) que segundo os chineses "pensar dói". Dói. É um risco a assumir. Exige colocar tudo em jogo. É conduzir-se aos limites a despeito da insegurança. É neste momento que o chão nos falta – e preferimos a burra paz dos que não sabem. De fato, pensar dói. Mas é a única coisa que nos resta (Gomes, 1994, p. 95).

Ou seja, a sinceridade da investigação filosófica não está em ser baseada numa verdade bem-estabelecida que deverá ser defendida a todo custo, mas na coragem da experiência de perder-se, de perder as bases e as referências que tínhamos, ainda que seja para reencontrá-las no final do processo – quando, tal como dizia Heráclito, nem nós nem elas seremos os mesmos.

            Por isso, uma “filosofia cristã”, uma “filosofia de esquerda” ou uma “filosofia conservadora” me parecem um completo contrassenso. Se já partimos de dogmas bem-estabelecidos que se tomam por inquestionáveis, a sinceridade da investigação filosófica estará irremediavelmente perdida. Se já temos desde o início respostas para nossas questões existenciais, e respostas as quais, como fiéis devotos, não temos a menor pretensão de colocar em questão, então nossas investigações filosóficas se converterão em meros adornos ou, quando muito, ferramentas de justificação – ou, ainda, mais uma ferramenta para auxiliar no processo de imposição – das nossas próprias crenças.

 

3 De maneira singular

            Sigamos adiante na direção do “como”. Filosofar é, certamente, “[…] destruir um mundo” (Gomes, 1994, p. 29), entretanto, Nietzsche já havia nos alertado que “[…] somente enquanto criadores podemos destruir!” (Nietzsche, s/d, p. 77). Fazer Filosofia é também criar: criar teoria. Digo “teoria” não apenas como um sistema filosófico organizado, mas metaforizando a raiz etimológica da palavra: ver, olhar. Criar teoria é criar um modo de ver. Não, mais uma vez, no sentido literal, porém, no sentido de criar um modo de experimentar a existência. É disso que a cultura do comentário abre mão desde sempre e para sempre: a criação de teoria. Os europeus criam, nós comentamos. Mas a investigação de questões existenciais exige a criação. Desgarrando-se dos “modos de instalação” que compõem nosso mundo habitual, elas exigem de nós a criação de um modo próprio de expressão.

            Por isso a leitura de textos filosóficos deve ser encarada como uma espécie de “aventura” (Ribeiro, 1999, p. 194) e a escrita de textos filosóficos traz sempre consigo uma espécie de desafio ou provocação ao leitor. Na leitura de textos filosóficos não se trata apenas da compreensão intelectual, fria e distanciada de conceitos abstratos, mas de ativar o poder da fantasia para mobilizar a rede afetiva que nos compõe a fim de experimentar a existência – nossa própria e do mundo circunstante – à maneira que a obra propõe. A leitura de um texto filosófico nos convida a abandonar a “terra firme” (Ribeiro, 1999) das maneiras habituais de experimentar a existência que aprendemos em nosso tempo e nosso lugar para que embarquemos na aventura de exploração de mares e terras desconhecidos. Essa é a verdadeira “viagem” filosófica – e não aquilo que é comum ouvir dos alunos em primeiras aulas: “Filosofia é uma viagem”, como se Filosofia fosse algo inteiramente abstrato, incompreensível ou sem nexo. E como toda viagem, a viagem filosófica acaba transtornando e transformando nossa maneira de experimentar a existência. Muito do que era familiar se torna estranho, muito do que era estranho se torna familiar. Muito do que era incompreensível se torna perfeitamente explicável e muito do que era tão certo se torna um verdadeiro mistério.

            Por conseguinte, Filosofia é sim coisa de gênio. Mas não do gênio romântico ou do “superdotado” contemporâneo, que, como Cabrera, Palácios e Gomes enfatizam, se é que existem, não configuram pré-condições para o fazer filosófico. É o gênio de que fala Edgard Navarro, no documentário O Canto do Sabiá:

Eu me considerava nessa altura, a palavra é essa: eu me considerava um gênio. Mas eu depois eu compreendi o que é isso, se considerar um gênio, é aquilo que todos os seres humanos têm; um gênio preso na garrafa, tem algo de gênio, de anjo, que pode ser liberto, digamos assim. Até de uma forma evangélica você pode entender isso – acorda, quer dizer desperta. Saia daí de dentro Lázaro. Sai dessa morte em vida. Venha para fora. Veja a luz. Veja a luz, não a luz material. A luz do sol, a luz do espírito. Quem tem sede dessa luz do espírito, tem gênio criativo. E era isso que eu tinha. Não era questão de ser um gênio, era de ter gênio criativo. Na própria palavra gênio, vem a coisa do... gen? Gênese, da criação. Então, eu era um criador. Isso ninguém tirava de mim (O canto do sabiá, 2017).

Gênio, portanto, é quem cria. E criar exige trabalho. Garantir que a inspiração nos encontre trabalhando, como teria dito certa vez Picasso. Trabalhar na criação até que se torne indiscernível quem terá criado quem: se o gênio terá criado a obra, ou se a obra terá criado o gênio.

            Não se deve temer algum traço de megalomania nessa pequena apologia do gênio. A criação filosófica, aliás, exige uma boa dose de megalomania. Afinal, cada um que leva a sério a investigação das próprias questões existenciais e se permite experimentar o processo de criação filosófica está assumindo para si a tarefa de repensar as questões existenciais da humanidade. Afinal, as respostas proliferam, vindas de todos os tempos e lugares. Muitas, seja nas famílias, seja nas igrejas ou nas instituições acadêmicas, são reverenciadas como sagradas. Colocá-las novamente em questão, portanto, exige uma boa dose de megalomania. O segredo é levar a megalomania tão longe que ela se torna humilde. Uma megalomania tola – raramente assumida enquanto tal – supõe saber tudo o que há para saber e se apressa em dar lições à realidade, ensinando à realidade o que ela tem de errado e como ela deveria funcionar. Em nome dos mais belos valores – a verdade, o bem, a justiça –, essa megalomania tola assume a posição ditadora: quer ditar ao mundo a sua lei.

Levada mais longe, a megalomania quer tanto buscar respostas para suas questões existenciais que redescobre “a beleza de ser eterna aprendiz”. A realidade, em cada detalhe aparentemente insignificante, se torna professora. O mundo, ao se revelar, isto é, em seu simples existir, revela muito sobre o seu modo de ser e de funcionar. As relações entre pessoas, coisas e instituições, só por serem como têm sido – segundo nos mostram os livros de história e as situações contemporâneas que podemos observar, direta ou indiretamente –, têm muito a nos ensinar sobre o modo de ser e de operar da existência. O gênio paradigmático dessa posição, ao mesmo tempo megalomaníaca e humilde, é talvez justamente – e talvez não por acaso – Sócrates, aquele cujo saber está esteado em um não saber fundamental.

            Só não sei se se trata de um qualquer “esforço”, como enfatiza em certo momento Roberto Gomes (1994, p. 70-81). Tendo a me aproximar mais de Julio Cabrera, quando afirma que um genuíno filósofo “[…] nunca pensa prevendo que fará grande ou pequena Filosofia, porque ele simplesmente pensa, compulsivamente, suas próprias ‘coisas’, seus pontos, suas obsessões, e não pode fazer outra coisa a não ser pensá-las” (CABRERA, 2013, p. 87). “Esforce-se e terá sucesso” é uma máxima da religião capitalista. Pouco tem a ver com o processo de criação filosófica. Este, se me exigisse traduzi-lo numa máxima, seria algo como: abandone-se às suas obsessões, sob a regência da Filosofia como circunstância maestrina e ela se encarregará de, disciplinadamente, operar o concerto das circunstâncias e afetos que o compõem. Assim se compõe, por sua vez, uma obra filosófica, que não é jamais maneira alguma de se obter sucesso, e sim – para mim, o máximo a que se pode aspirar em uma vida: – uma maneira absolutamente singular de fracassar.

            A Filosofia, como maestrina, é uma potente mobilizadora de afetos. Não se trata, por conseguinte, de tentar assumir o controle do processo – o que em geral não passa de ilusão narcísica –, mas de “disponibilizar-se”, para usar uma expressão do pensador MD Magno (2015). Cada um de nós é composto por uma enorme rede de circunstâncias biológicas, químicas, sociopolíticas, culturais, psíquicas, afetivas etc. Essa rede dinâmica de circunstâncias interativas e interconstitutivas torna a existência de cada um de nós absolutamente singular. Chegando ao mundo no mais puro desamparo e sem um claro manual de instruções instalado de fábrica, vamos sendo ensinados a nos enquadrar em padrões identitários, comportamentais e definições pré-fabricados e socialmente estabelecidos no nosso tempo e no nosso lugar.

Assim, vão se construindo círculos identificadores que, como polos atratores, tendem a monopolizar nossas possibilidades existenciais. Esses círculos, por um lado, nos prometem garantias de estabilidade e previsibilidade que só parcialmente podem cumprir. Por outro lado, empobrecem as potencialidades da nossa singularidade ao operar recortes que deixam de lado, negam ou mesmo sufocam e reprimem vastas porções de fios circunstanciais que compõem nossa existência. A reconquista da nossa singularidade passa, portanto, por um processo de desconstrução e des-identificação em relação a esses padrões de identificação, comportamento e definição que de-limitam nossa existência cotidiana e de mobilização e concerto das múltiplas e diversas dimensões circunstanciais que nos compõem.

            Não se deve pretender filosofar apenas com afetos sublimes, tais como o amor, a amizade e a compaixão. Na composição de uma obra filosófica, é possível mobilizar múltiplos e diversos afetos: ódio, ressentimento, mesquinharia, egocentrismo, narcisismo, crendices, tesões e fantasias diversos etc. Nenhum deles, se tudo correr bem, se apressará em oferecer à plateia um show solo, mas terá lugar na orquestra da maestrina Filosofia.

 

Considerações finais

            Múltiplas e diversas circunstâncias serão também mobilizadas na composição filosófica. Entre as muitas circunstâncias que nos compõem, está o fato de termos nascido em um determinado tempo, em um determinado lugar de um determinado país, hoje chamado Brasil. E aqui já não posso evitar uma questão polêmica: quão “brasileira” poderá ou deverá ser uma investigação existencial para que possa merecer o nome de “brasileira”? Recentemente a questão foi relançada em uma série de discussões na Coluna ANPOF. Rafael Haddock-Lobo formula a questão: “O que torna um filósofo um ‘filósofo brasileiro’? Basta que ele tenha nascido no nosso território ou, para que faça jus ao título, deveria se exigir algo mais?” (Haddock-Lobo, 2017).

            Ao ensaiar uma resposta, Haddock-Lobo relembra que o Brasil é formado por europeus, africanos e indígenas e sugere que aprofundemos nossos conhecimentos acerca do pensamento africano e ameríndio, para que possamos finalmente desenvolver um “estilo” filosófico próprio. A proposta é reafirmada por Filipe Ceppas, o qual propõe a inclusão do “pensamento ameríndio” em nosso currículo acadêmico (Ceppas, 2017) e por Renato Nogueira, que defende uma Filosofia “[…] com sotaques africanos e indígenas” (Nogueira, 2017). Muito citado em nosso texto, Roberto Gomes (1994) nos desafia a encontrar um “jeito” – não um “jeitinho” – brasileiro de filosofar, rompendo com os próprios padrões europeus de investigação e expressão – algo que parece se aproximar da proposta de Ronie da Silveira (2017), no debate ocorrido em 2017, na Coluna ANPOF.

            Quanto a isso, podemos encaminhar alguns comentários, a título de conclusão do nosso texto. 1. A investigação de questões existenciais e a criação de teoria exigem a mobilização de um repertório de aventuras por modos diversos de experimentação existencial. Isso não significa que é preciso primeiro ter lido todas as obras filosóficas do mundo para que comecemos a filosofar. Começamos a filosofar com o repertório que temos e vamos enriquecendo esse repertório com as leituras – tomadas como experimentações existenciais – que fazemos. Por conseguinte, fingir que é possível descartar a herança de pensadores europeus (o que não é proposto por nenhum dos nossos interlocutores neste texto) me parece absurdo, ao passo que nos torna mais pobres em termos de repertório. Buscar conhecimentos cada vez mais amplos e profundos de maneiras de experiências existenciais propostas pelas mitologias e religiões ameríndias e africanas, bem como as propostas de experiência existencial singular lançadas por pensadores africanos, ameríndios e centro/sul-americanos é uma forma de enriquecer nosso repertório e certamente poderá tornar mais ricas nossas investigações e criações filosóficas.

            Seria apenas preciso atentar para 2. Substituir o comentário de obras de filósofos europeus pelo comentário de obras de filósofos africanos, ameríndios ou centro/sul-americanos é um passo ainda muito pequeno em relação à possibilidade de realmente fazermos Filosofia no Brasil. Ajuda a quebrar o colonialismo mental que nos faz crer que só os europeus estão habilitados a pensar, contudo, é uma espécie de adesivo de nicotina para pessoas que tentam parar de fumar. Em algum momento será preciso arrancar também o adesivo e ir direto à investigação das nossas – de cada um – próprias questões existenciais. E 3. Mitologias e religiões, enquanto maneiras de experimentar a existência, são certamente repertório para investigações e criações filosóficas. No entanto, acreditar nas entidades e descrições sobrenaturais propostas por mitologias e religiões, seja de onde venham, nada tem de filosófico e chega a ser, na verdade, antifilosófico. Mitologias e religiões fornecem respostas para questões existenciais. Respostas que devem, por princípio, ser tomadas como verdades absolutas e inquestionáveis. Já a Filosofia, como investigação de questões existenciais, é um movimento que coloca justamente em questão todas as respostas estabelecidas por todas as mitologias e religiões socialmente compartilhadas num determinado tempo e num determinado lugar.

            Isso nos leva a 4. Onde quer que surja, o filósofo se faz estranho e estrangeiro. Procurar sua pátria, seu lar, sua origem, suas raízes, seus verdadeiros ancestrais, seja num qualquer “Brasil”, seja na Europa, seja na África ou entre os povos ameríndios é um exercício fútil. Filosofar é criar asas e abandonar quaisquer raízes. Por isso mesmo, é uma experiência frequentemente solitária, porque des-identifica, dissocia, singulariza. Hoje, falamos em “filósofos gregos”, mas os pré-socráticos estão pensando sua herança cultural “a contrapelo”, para usar uma bela expressão de Walter Benjamin, ao propor explicações naturalísticas no seio de uma sociedade extremamente religiosa. Sócrates e Platão são as vozes dissonantes numa cultura dita democrática. Falamos em “Filosofia francesa”, mas como podemos ver na belíssima biografia conjunta dos pensadores franceses iluministas, escrita por Elizabeth Badinter (2009), Rousseau, Voltaire, Diderot, D’Alembert foram duramente perseguidos durante toda a sua vida adulta por uma sociedade fundamentalista cristã. Falamos em “Filosofia alemã”, mas esquecemos o quão solitários em meio às multidões alemãs se sentiam Schopenhauer e Nietzsche – experiência da qual não cessam de dar testemunho em suas obras e escritos autobiográficos.

            O que nos leva finalmente a 5. Um pensador não vive em lua-de-mel com suas heranças culturais. Há uma tensão nas heranças culturais. Por um lado, elas são a matéria-prima de que dispomos para transformar em obra. Para tanto, é fundamental recorrer à história, para dispormos mais e melhor da nossa herança cultural como matéria-prima. Por outro lado, seus aspectos limitantes, aprisionantes, identificadores e definidores – os quais, certamente, por um bom tempo, fizeram parte daquilo que acreditávamos ser – tornam-se correntes e prisões contra as quais o voo filosófico terá de se insurgir. Além do mais: 6. Valeria lembrar ainda, com Derrida, que “[…] o próprio de uma cultura é não ser idêntica a si mesma” (Derrida, 1995, p. 96). Assim, o que chamamos de “Europa ocidental” é inseparável da história de uma seita judaica surgida no Oriente Médio, que se espalhou lentamente por Roma e cuja militância dos pregadores acabou por converter diversos povos germânicos – isso que costumamos chamar de cristianismo. O “renascimento” cultural que resgata filosofias do mundo antigo não é imaginável sem o trabalho dos pensadores do Oriente médio e do norte da África que, por séculos, dominaram a Península Ibérica.

Não é verossímil imaginar que o pensamento filosófico da Grécia Antiga não tenha surgido a partir da mistura com pensamentos egípcios e orientais. O alemão Schopenhauer constrói sua Filosofia a partir de uma séria imersão no pensamento indiano. Sua obra tem grande influência sobre Nietzsche e Freud, que, por sua vez, têm grande influência em todo o pensamento europeu contemporâneo. Vale incluir também, então, na tentativa de ampliação do nosso repertório de experiências existenciais, obras advindas dos diversos povos e pensadores do chamado “mundo oriental”. Não exatamente para uma busca de “origem”, mas porque a experiência existencial proposta por quaisquer outros que tenham enfrentado suas questões existenciais podem ser enriquecedoras do nosso próprio repertório.

            Com essas considerações, não estou propondo, à maneira de Safatle – também nas discussões da Coluna ANPOF – um pensamento internacional para além dos nacionalismos burgueses ultrapassados. Estou propondo, sim, que nos abandonemos à experiência quase mística, se não mesmo propriamente mística, como sugere o pensador MD Magno (2015), – porque de afastamento radical dos sentidos cristalizados que compõem a familiaridade do nosso mundo – de investigação séria e sincera das nossas próprias questões existenciais num movimento de criação de uma maneira singular de experiência existencial. Lembrando que singular aqui não significa o mesmo que “original”. Nem no sentido de “origem”, como defende Roberto Gomes, nem no sentido de “novidade”, bem combatido por Julio Cabrera. A investigação e a criação filosóficas são singulares porque mobilizam as redes de circunstâncias e afetos que compõem cada um de nós. Nesse processo de investigação e criação singulares, vamos descobrindo quem são nossos parentes, nossos ancestrais e, curiosamente, eles podem vir dos mais diversos tempos e lugares do planeta.

            Pode parecer uma tarefa hercúlea, mas se trata tão somente de olhar para o mundo e dizer o que vê desse lugar absolutamente singular onde cada um de nós calhou de estar. O difícil é se des-identificar das grossas lentes culturais, que, coladas aos nossos olhos – mais ou menos à força – desde muito cedo, viciam nosso modo de ver e dizer.

            Para os jovens filósofos brasileiros eu diria então, para concluir, que a Filosofia não se reduz – como nunca se reduziu – à academia. Eu gostaria muito que fossem incluídos em nossos currículos de Filosofia disciplinas obrigatórias de “Ensaios Filosóficos”, nas quais se experimentasse investigação de questões existenciais e criação de teorias. Mas não é preciso esperar que isso aconteça para que se faça Filosofia no Brasil. Basta um caderno e uma caneta ou um arquivo de experimentações filosóficas no computador – um que fique numa pasta diferente daquela onde guardamos nossos trabalhos acadêmicos. Sempre que houver esse tipo de experimentação filosófica, a meu ver, haverá filosofia brasileira, filosofia no Brasil ou, como prefere Julio Cabrera, Filosofia desde o Brasil.

 

ON PHILOSOPHY AS INVESTIGATION OF EXISTENTIAL QUESTIONS

Abstract: We start by problematizing the way in which philosophical practice is generally conceived in our academic environment. In this article, we address an understanding of Philosophy as a process of serious and sincere investigation of existential questions and creation of theory. With this, we intend to question some of the most common diagnoses and solutions for the underdevelopment of philosophical practice in Brazil, as well as provide our contribution to the propagation of a philosophical practice that risks the leap from commentary to creation.

 

Keywords: Philosophy in Brazil. Existential questions. Creation of theory.

 

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Recebido: 24/03/2023

Aceito: 26/04/2023

Publicado: 22/10/2023



[1] Professor Adjunto de Filosofia e Psicanálise na Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5862-819X. E-mail: diogobogeaa@hotmail.com.