Apresentação

 

Marcos Antonio Alves[1]

 

Com alegria, apresentamos o segundo fascículo de 2023. Nos últimos tempos, a revista vem realizando uma série de novas atividades e melhorias, buscando aprimorar-se, no alcance de seus objetivos. Neste fascículo, pela primeira vez em um número regular, passamos a oferecer diversos formatos dos textos publicados (PDF, HTML, MOBI e ePUB), dando maior visibilidade e possibilidade de acesso ao conhecimento socializado. O processo de inserção desses formatos também está sendo implementado em todos os fascículos da revista. A propósito, em 2024, a Trans/Form/Ação completa 50 anos de existência. Estamos programando uma série de atividades comemorativas para festejar nosso jubileu de ouro. Em breve, anunciaremos mais novidades.

Neste número, os textos brasileiros vêm de pesquisadores de instituições da Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Já os de instituição estrangeira vêm da Argentina, Chile, Peru e Vietnam. Publicamos, ao todo, nove comentários, os quais, como explica Alves (2023), correspondem a uma modalidade de textos já consagrada na revista.

Começamos este fascículo com “O infinito e o aberto: sobre as intuições éticas de Levinas e Bergson”, de André Brayner de Farias. Levinas é quase unicamente estudado pela ótica da fenomenologia, lembra Farias. Isso é bastante justificável, pelo fato de o filósofo se dizer herdeiro de Husserl, embora seja muito importante considerar outras influências para uma compreensão mais aprofundada de seu pensamento, como o tal mudismo e a literatura russa. Mas, em geral, permanece esquecida uma importante referência que Levinas nunca deixa de mencionar, em suas entrevistas e mesmo no prefácio para a edição alemã (1987), de seu importante livro Totalité et infini: a filosofia de Bergson. Com base nisso, Farias visa a buscar os elementos dessa aproximação, muitas vezes mencionada, porém, pouco explorada, entre as intuições éticas de Levinas e de Bergson.

Ainda que não seja a obra Les deux sources de la morale et de la religion a que Levinas gosta de lembrar, quando se refere a Bergson, é ela a evocada pelo autor deste artigo, o qual busca sugerir uma comunicação intuitiva que conecta o conceito bergsoniano de aberto e o conceito levinasiano de infinito. Levinas dá um passo além da fenomenologia, ao elaborar um de seus conceitos fundamentais, o de visage. É ele mesmo quem o admite, na conversa com Philippe Nemo, intitulada Éthique et infini (1984), mas deveríamos nos surpreender, se a noção mais importante da ética levinasiana, a de infinitude, revelasse o que há de mais essencial na ética de Bergson, o sentido de abertura, pelo qual se anuncia uma responsabilidade sem limites, ou seja, incondicional?

O segundo artigo publicado é “A teoria da Substância no Ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke”, escrito a quatro mãos por Carlota Salgadinho Ferreira e Vinícius França Freitas. Os autores buscam oferecer uma interpretação sobre a explicação da origem da ideia (relativa) de substância pura em geral, na filosofia de John Locke, a partir da noção de “sugestão natural” de Thomas Reid. Para tal, após contextualizar a noção de substância pura em geral, para Locke, e distingui-la da ideia de substância particular (seção 1), eles explicitam que as suas palavras sobre a fonte (empírica ou racional) da ideia da segunda na mente são ambíguas e inconclusivas. Em seguida, argumentam que os paralelos entre essa ideia e a de “relação”, assim como a de “poder”, não auxiliam nessa resposta, devido a alguns problemas que neles se identificam. Por fim, enfatizam que a explicação reidiana para a origem da ideia de “mente”, com base na noção de “sugestão natural”, permite, em primeiro lugar, contornar aqueles problemas e, em segundo, na medida em que, de acordo com essa proposta, a ideia de substância pura em geral teria uma origem empírica, o empirismo lockiano se manteria intacto.

Em seguida, vem “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global.”, de Cristiano Cordeiro Cruz, comentado por Jelson Oliveira e Maurício Fernandes. Andrew Feenberg é um importante autor da filosofia da tecnologia, cujas ideias são particularmente relevantes, para identificar a dimensão política da tecnologia, seja no seu papel de conformar a sociedade, seja em ser conformada por esta. Segundo Cruz, a falha do estágio atual da sua reflexão está em não se voltar, de forma mais rigorosa, para o âmbito interno das disciplinas técnicas, usualmente interrompendo sua análise na fronteira entre o mundo da vida (no qual ocorrem as mobilizações democratizantes e de onde emergem suas pautas ou demandas) e tais disciplinas. Para identificar e superar essa falha, Cruz articula alguns elementos da reflexão de Boaventura de Sousa Santos e de Yuk Hui. Ademais, oferece exemplos de intervenções técnicas decoloniais (ou emancipadoras), os quais ilustram como aquilo teorizado por Santos e Hui já acontece em práticas técnicas desenvolvidas no Sul global, bem como expressam os impactos disso nas equipes técnicas que as praticam (e, a partir disso, potencialmente, também nas disciplinas a que seus membros estão vinculados).

Em quatro lugar, publicamos “Georges Bataille: la pérdida, el fascismo y la propuesta comunitaria.”, de Gonzalo Ricci Cernadas, comentado por Agustín Lucas Prestifilippo e Ricardo Laleff Ilieff. A hipótese proposta por Ricci é que, apesar de todas as dificuldades para sua conceituação, Bataille postula que a comunidade é, afinal, possível. Para isso, o artigo expõe o lugar da comunidade, no pensamento de Bataille, um lugar nada identificável com precisão, mas que está disperso em diferentes pontos de sua obra. Assim, Ricci busca, em um primeiro momento, analisar como uma comunidade perdida aparece no filósofo francês, para, em um segundo momento, investigar qual foi a – equivocada – resposta fascista a esse fato, para, por fim, delinear como ela poderia estabelecer um modelo propositivo de comunidade, segundo Bataille.

Também em espanhol, publicamos “El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger”, de autoría de Jesús Ayala-Colqui, comentado por Paulo Mendes Taddei. O artigo tem como objetivo analisar o conceito de animalidade, sob a ótica de Edmund Husserl e Martin Heidegger. Mais precisamente, surge a questão de saber se o animal possui o status de alteridade ou não. O animal, em relação ao humano, é um ente outro, lembra Ayala-Colqui. Mas, pelos pressupostos da fenomenologia, isso basta para que seja apreendido como uma intersubjetividade ou uma convivência que se doa ao mundo dos seres humanos? Para responder a essa questão, o autor revê o argumento de Husserl, especialmente em Hua IV e Hua XXXIX, e o de Heidegger, em GA 2 e GA 29/30. Diante disso, adiciona uma consideração crítica das ideias dos pensadores analisados, em vista do desenvolvimento da biologia contemporânea, a fim de se perguntar até que ponto a investigação filosófica deles seria consistente com as evidências zoológicas atuais.

O sexto artigo é escrito em inglês: “‘Who Announces the Nonrecourse?’: The fort/da in ‘To do Justice to Freud’ and in the Derrida/Foucault debate”, de Joaquín Montalva. Trata-se de um comentário ao ensaio de Derrida, “Para fazer justiça a Freud: a história da loucura na era da psicanálise”, com o objetivo de rastrear o que não pode ser reapropriado pelos pressupostos do debate Derrida/Foucault. Ao analisar a questão “quem anuncia o não recurso?”, Montalva explora o modo como a escrita de Derrida é afetada pela necessidade e impossibilidade de não reprimir a desrazão. Ele defende que Derrida escreve compulsivamente os efeitos de sua própria resistência em reprimir a desrazão, ao reproduzir a busca foucaultiana por um “além da razão”. Essa compulsão à repetição não apenas reabre o debate, porém, mais importante, provoca o retorno da desrazão como um desarranjo dos princípios da identidade e do tempo linear, o qual desestabiliza qualquer fundamento autoral para uma história da loucura em geral e para qualquer um de seus críticos. Montalva analisa os intercâmbios entre Derrida e Foucault, desconstruindo a premissa da possibilidade de um debate sobre a história da loucura.

Em seguida, publicamos “Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory”, escrito em parceria por Léo Peruzzo Júnior e Amanda Luiza Stroparo, comentado por Bernardo Alonso. O objetivo dos autores é mostrar como a teoria da mente estendida, particularmente os argumentos de Andy Clark, pode explicar os processos mentais não como fenômenos restritivos ao cérebro e endossar sua conexão com o corpo e o ambiente. Dessa forma, inicialmente, eles reconstroem as principais perspectivas materialistas que limitaram o self ao crânio. Feito isso, apontam como o caráter estendido da mente escapa aos seus limites naturais e se mistura “descaradamente” ao mundo. Argumentam que artefatos externos desempenham um papel importante na orientação de ações, de modo que mudanças no ambiente podem causar mudanças no comportamento do agente cognitivo, configurando uma dependência constitutiva. Desse modo, defendem os autores, a tese da mente estendida desafia tanto o funcionalismo tradicional quanto o externalismo, pois, por um lado, considera os processos cognitivos e os estados mentais como interações relevantes do indivíduo com o ambiente e, por outro, como comportamentos orientados pela intenção. Por meio da integração dos corpos biológicos com artefatos ou ferramentas, sustentam uma leitura que dissolve a clássica “lacuna explicativa” das ciências cognitivas.

“Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão” é o oitavo artigo, de autoria de Luiz Rohden, comentado por Admar Costa. No contexto do projeto do autor, no sentido de justificar a dimensão ética da Hermenêutica, Rohden propõe respostas à pergunta central em torno da qual se articula o diálogo Filebo de Platão: qual o estado e a disposição da alma (hexis kai diathesis) que pode outorgar aos homens uma vida feliz? É pelo conhecimento, ou pelo prazer?” A partir das pistas propostas no diálogo, o autor desenvolve a noção de vida boa e feliz como processo e resultado da mistura correta entre o conhecimento e o prazer. Sob a égide da hermenêutica gadameriana, tomada enquanto práxis ética, ele busca fundamentar a tese de que a felicidade é fruto da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer, em contraposição à circularidade viciosa que implementa a infelicidade, instaura uma vida escrava, a qual implica a destruição pessoal, social e ambiental. Isso é feito, conforme esclarece Rohden, explicitando-se, inicialmente, o tipo de ontologia e a racionalidade própria para lidar com a vida boa e feliz conjugada com o prazer, possibilitando serem indicadas pistas da alquimia apropriada – mediante a apuração dialógico-phronética – entre o conhecimento e o prazer, para instaurar a vida boa e feliz. A contribuição original dessa reflexão reside em propor critérios para aferir se a mistura foi bem feita, através da apresentação de implicações da circularidade viciosa e corolários da circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer. O autor busca mostrar que a circularidade viciosa fomenta a infelicidade, ao passo que a virtuosa faculta a criação de uma vida boa e feliz, em termos individuais, sociais, além de instaurar uma relação harmônica e de integração com o meio ambiente.

Escrito por Rita Paiva, vem “Impulso criador e drama vital em Bergson”, comentado por Pablo Enrique Abraham Zunino e Sinomar Ferreira do Rio. Ao voltar-se para a teoria de H. Bergson acerca do processo evolutivo, este texto toma como objeto de reflexão o caráter antinômico das tendências fundamentais do movimento vital: tempo puro e materialidade. Partindo da importância da imagem, nessa filosofia, Paiva se debruça sobre a ontologia bergsoniana, problematizando tanto a noção de elã vital quanto o modo pelo qual a matéria advém e o tempo real nela se inscreve. Ao destacar a ambiguidade do papel desempenhado pela materialidade, no tensionamento das forças vitais, a discussão explicita que o impulso originário instaura, ele próprio, seu antípoda. Revela-se, assim, o caráter dramático que impregna o movimento intrínseco à história da vida, no qual esforço e luta são correlatos dos limites do impulso que a move e quesitos incontornáveis para o ato criador que a define.

O penúltimo artigo é “A visão em Deus e o primado da representação em Malebranche”, de Sacha Zilber Kontic. O artigo visa a examinar a noção de representação presente na exposição malebranchiana da tese da visão das ideias em Deus. Para tanto, em primeiro lugar, trata da progressiva precisão atribuída por Malebranche ao termo ideia, buscando ressaltar o caráter radicalmente representativo do conceito. Em seguida, analisa de que modo essa ideia representativa prescinde, na filosofia do oratoriano, de uma correspondência com a existência. Por fim, busca mostrar como esse primado da representação se articula com a tese da visão em Deus. Com isso, argumenta Kontic, torna-se possível conceber como essas ideias representativas podem fundar, na filosofia de Malebranche, uma verdadeira ciência.

Por fim, publicamos “Jean Jacques Rousseau’s concept of freedom and equality in the Social Contract”, de Trang Do. Uma das características comuns dos primeiros filósofos modernos da Europa Ocidental é a ênfase na liberdade e na igualdade. Os filósofos desse período buscavam respostas para “o que é liberdade e igualdade?” e transformaram a liberdade e a igualdade em direitos humanos fundamentais. De John Locke a Montesquieu e Jean Jacques Rousseau, todos consideram a liberdade e a igualdade como direitos naturais do ser humano. O conceito de liberdade e igualdade de Rousseau é refletido em O Contrato Social. No início desse trabalho, ele comenta uma famosa frase de abertura: “O homem nasce livre, mas está em toda parte acorrentado”. Esse é o argumento fundamental para dar uma visão única de liberdade e igualdade. Dentro do escopo do artigo, Trang Do concentra-se em analisar seus pontos de vista sobre liberdade e igualdade, em muitos aspectos diferentes – liberdade e igualdade no estado de natureza, liberdade e igualdade na sociedade civil e como alcançar a liberdade e a igualdade – apresentando, assim, as valores e limitações de seus pontos de vista sobre liberdade e igualdade.

Assim está constituído este fascículo da Trans/Form/Ação. Desejamos boa leitura e boas reflexões e discussões, a partir do conhecimento socializado!

 

 

Referência

ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9-20, 2021.

 

Recebido: 12/02/2023

Aceito: 21/02/2023



[1] Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.