Comentário a “Impulso criador e drama vital em Bergson”

 

Sinomar Ferreira do Rio [1]

 

Referência do artigo comentado: PAIVA, Rita. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 – 274, 2023.

 

Uma característica inerente da vida, conforme revela a filosofia evolucionista de Bergson, é ser impulso criador. Em sua atividade criadora, a vida inaugura o seu outro, a matéria. Esta surge enlaçando a vida, freando seu movimento originário, mantendo-a, aqui e ali, de certa forma, estagnada, dificultando o avançar da vida em todas as suas manifestações. Nesse script, o embate entre vida e matéria se institui no próprio movimento criador, desde o primeiro impulso em que a vida se lança em sua odisseia. A condição dramática da vida em criação parece ser inelutável.

O título “Impulso criador e drama vital em Bergson”, que Rita Paiva (2023) dá ao seu texto, coloca-nos, de início, no enredo desse drama em curso. Ainda podemos perguntar: poderia a vida passar sem a matéria, uma vez que a vida é, nessa compreensão, originária, ela mesma, criadora de suas condições específicas? A pergunta é provocativa e nos coloca mais no interior desse drama. Vladimir Jankélévitch, em seu livro Henri Bergson, faz a seguinte reflexão:

É provável que, se não houvesse matéria, haveria ainda a vida, mas não o élan vital: a evolução propriamente dita perderia sua razão de ser, que é a prevalência crescente da liberdade; o espírito, desesperadamente solitário em um mundo desértico, teria esquecido a alegria, ao mesmo tempo que a angústia de mudar. (JANKÉLÉVITCH, 2015, p. 172, tradução nossa).

 

Sem a matéria, a qual aparece nas palavras do comentador como implicada no movimento evolutivo levado avante pelo élan vital, a vida seria um em si, sem expressão de ser, uma totalidade indiferenciada. Essa condição, ainda que possa ser dita, parece não ser possível como fato, pois a vida, no pensamento de Bergson, é duração, é memória. “Duração é o progresso contínuo do passado que rói o futuro e infla ao avançar”, como segundo frisa Bergson (2009, p. 4, tradução livre), no primeiro capítulo d’A evolução criadora.

Assim posto, duração compreende duas – digamos assim – temporalidades, passado e futuro, sendo o passado um movimento contínuo criador disso que sempre vem a ser o futuro. Essas duas temporalidades implicam uma terceira, o presente, o qual se revela como passagem contínua do passado, ao se efetivar em suas diferenças, originalmente em estado de virtualidade indiferenciada, pelo próprio movimento inerente à duração – na qual o passado está compreendido – de fazer, a partir de si, a sua diferença. Assim pensada, a duração se revela como um dinamismo absolutamente vivo, ativo. Passado, presente e futuro, três temporalidades indissociáveis, constituintes de uma totalidade movente, que é a duração.

Essas considerações muito rápidas de um ponto extremamente chave do pensamento de Bergson tem por propósito destacar que a vida, enquanto vida, é esse dinamismo criador e, como tal, não se detém como passado sempre inatual, como um em si que não progride. A sua natureza é ser mobilidade, a qual se dá como movimento de criação contínua de si por si. É desse movimento que a vida enseja seu outro, a matéria. É por efeito de a vida ser criação que a matéria aparece como um dos seus momentos, como uma necessidade colocada por efeito de seu movimento próprio, que é evoluir. Daí a condição inelutável do drama vital, implicado no seu impulso criador.

Contudo, o que é a matéria e como ela surge, no seio da duração? A resposta a essa pergunta é dada por Bergson, no terceiro capítulo d’A evolução criadora, quando analisa a razão do acordo evidente entre inteligência e matéria, o que exige a análise da gênese de uma e de outra. A matéria e a inteligência que a acompanha se dão por efeito de inversão de um princípio que ele denomina consciência. Não se trata, ressalva Bergson, naquela ocasião, dessa consciência distinta vivida por nós, mas de uma consciência geral, a qual é a vida mesma ou duração originária.

A matéria, assim, surge dessa consciência geral que se inverte, de modo a ser ainda participante do princípio gerador de vida. Considerada em seu conjunto, a matéria “[...] é como uma consciência em que tudo se equilibra, se compensa e se neutraliza”, como nos diz Bergson, no quarto capítulo de Matéria e memória (2011, p. 258). Nesse sentido, a matéria é consciência, embora seja como consciência que a vida tem de si em sua materialidade, derivada de seu movimento original invertido. Ela vem por efeito de a vida se fazer élan vital, a qual se efetiva como diferenças organizadas que se determinam na ordem da existência em diferenciação mantida, como esse e aquele momento efetivado que se quer a si ser o que se fez. Ela se constitui como um movimento da duração, o qual é ele mesmo criação contínua, que se deteve sobre si e se fez tendência a se repetir.

Assim, a matéria é a dimensão da realidade surgida concomitantemente com o movimento que a vida efetiva, ao se atualizar em suas tendências. Ela vem com a criação das condições que a vida requer para evoluir, para se fazer expressão de liberdade. Nessa leitura, essa dimensão material da realidade vem como organização vital que a vida realiza, em seu evoluir, de sorte que a evolução não passa sem a materialidade. Essa compreensão é assinalada por Bergson, no terceiro capítulo d’As duas fontes da moral e da religião, quando está a pensar o amor como uma emoção criadora, por meio da qual a vida se lança e avança como um esforço contínuo de elevar a si mesma e se fazer expressão de amor e liberdade. Ressalta Bergson (2005, p. 272):

Mas mostramos, pelo contrário, que a matéria e a vida, tal como a definimos, são dadas conjunta e solidariamente. Em tais condições, nada impede o filósofo de levar até o fim a ideia, que o misticismo sugere, de um universo que não seria mais do que o aspecto visível e tangível do amor e da necessidade de amar, com todas as conseqüências que acarreta esta emoção criadora, quero dizer com o aparecimento de seres vivos nos quais a descobre o seu complemento, e de uma infinidade de outros seres vivos sem os quais os primeiros não teriam podido aparecer e, por fim, de uma imensidão de materialidade sem a qual a vida não seria possível.

 

Dessa forma, a vida não passa sem a matéria. A matéria aparece como a condição que a vida cria para si, quando avança em seu impulso criador, ou ainda, é o próprio efeito que a vida produz em seu evoluir. Ela surge como um momento de parada, quando se faz tendência em ser o que se fez, isto é, repetição de si na ordem do ser. Mas é por dentro de si que a vida avança como impulso criador. Essa materialidade que lhe veio como efeito de sua atualização dificulta, retarda e até mesmo aprisiona, aqui a ali, a vida que se efetivou, todavia, não a detém por completo. A vida, enquanto impulso, sempre atravessará essa materialidade e imprimirá, na realidade, sua atividade criadora. A matéria estará sempre aí, vinda por efeito dessa atividade criadora que é a vida. O drama vital, em sua relação com a matéria, é inelutável, mas os atos, embora dificultados pela materialidade que a envolve, são sempre escritos pela própria vida.

 

Referências

BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Coimbra: Almedina, 2005.

BERGSON, H. L’évolution créatrice. Paris: Quadrige/PUF, 2009. (Le choc Bergson).

BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. (Biblioteca do Pensamento Moderno).

JANKELÉVITCH, V. Henri Bergson. Paris: Quadrige/PUF, 2015.

PAIVA, Rita. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 – 274, 2023.

 

Recebido: 02/02/2023

Aceito: 12/02/2023



[1] Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Paranaíba, MS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5792-7673. E-mail: sinorrio@yahoo.com.br.