Comentário a “Impulso criador e drama vital em Bergson”: A dialética do devir e a dramatização do elã vital

 

Pablo Enrique Abraham Zunino[1]

 

Referência do artigo comentado: PAIVA, Rita. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 – 274, 2023.

 

O objetivo deste comentário é estabelecer um diálogo com o artigo de Rita Paiva (2023), intitulado “Impulso criador e drama vital em Bergson”. Para tanto, retomamos três elementos do artigo original: (1) o problema da apreensão da passagem do tempo, ou seja, do “devir”; (2) a noção de “drama” ou a dramatização como recurso a personagens metafísicos; (3) o conceito de “ação” entendido como luta ou esforço.

Ao contornar obstáculos, a matéria viva se abre caminho e se organiza, prolongando-se em ação: essa seria uma das teses centrais do artigo, a qual interpretamos livremente como uma dialética da criação da matéria como obstáculo ou, sinteticamente, como uma dialética do devir. A presença do obstáculo, como aquilo que opõe uma resistência necessária à criação, opera aqui uma negatividade inerente à positividade da ação. Os obstáculos que a própria materialidade impõe à vida são como uma negação que limita, mas ao mesmo tempo exige criação. O elã vital, portanto, precisa de um meio para agir, um solo que lhe permita exercer sua adaptação inventiva. Nisso consiste sua luta.

Assim, a abertura de um canal se explica pela própria força da água que, ao deparar com certos obstáculos, prolonga sua ação no sentido que lhe ofereça menor resistência. O movimento, segundo Bergson, é um ato indivisível como aquele que fazemos, ao erguer a mão, onde a contração muscular vence a gravidade. O impulso criador também se compreende de modo análogo, visto que a matéria viva é atravessada por uma ação indivisível que prolonga seu esforço invisível: “Imaginemos que, em vez de mover-se no ar, minha mão tenha que atravessar uma quantidade de limalha de ferro que se comprime e resiste à medida que progrido.” (BERGSON, 2005, p. 103). Se fixarmos um determinado momento dessa evolução, teremos um arranjo de grãos dessa limalha que expressa negativamente o movimento indiviso da mão que os organizou.

Contudo, é preciso aclarar que o termo “dialética” não remete a um “diálogo” cuja finalidade seria a de estabelecer o acordo sobre o sentido das palavras, nem a uma “distribuição” das coisas, segundo as indicações da linguagem (BERGSON, 2006a, p. 91). Usamos essa expressão – dialética do devir – para indicar uma mudança radical do pensamento de Bergson em relação à metafísica tradicional. O movimento dialético não estaria em nossa racionalidade, muito menos em nosso discurso, mas antes na própria realidade em devir. A intuição é o reconhecimento dessa dialética imanente à duração, uma espécie de “instinto” pelo qual abrimos o espaço à nossa frente, à medida que fechamos o tempo que vai passando (BERGSON, 2006b, p. 169). Merleau-Ponty sintetiza bem essa ideia: “Visão dialética, porque é um mesmo movimento que abre o futuro e fecha o passado. Ultrapassamos o simples misto de sujeito e objeto para constituir uma verdadeira dialética do tempo.” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 88-89). Nesse sentido, o movimento de inversão sublinhado por Rita Paiva pode ser interpretado como uma “dialética da passividade e da atividade” (WORMS, 2004, p. 61), a qual explica como o real pode passar da tensão para a extensão e da liberdade para a necessidade mecânica por via da inversão.

Ora, se o propósito de Bergson era reencontrar a “unidade verdadeira, interior e viva” da natureza, talvez as críticas de Barbaras e Lebrun sejam instrutivas, porquanto advertem que o privilégio metafísico atribuído à duração acaba por substancializar o devir. Em outras palavras, a dramatização metafísica do elã vital poderia ofuscar a realidade em devir, se buscamos traduzir em imagem o sentido dessa evolução dialética. O castelo de Bergson é maleável, feito areia molhada, onde o processo de fazer e desfazer quase não se distinguem.

É claro que a noção de imagem que propõe Paiva está mais próxima do cinema que da fotografia, isto é, trata-se de uma imagem-movimento e não de recortes fixos; de um conceito fluido, antes que de uma essência. Malgrado Deleuze (1983), o problema não se resolve no cinema, pois a dialética do devir exige uma diferenciação mais nítida entre positividade e negatividade, entre o ser e o nada.

Ao deslocar a positividade da essência para o devir, Bergson teria substancializado o devir, ao invés de conceder-lhe a negatividade que faltava à essência. Dessa maneira, o filósofo da duração apenas teria mudado o conteúdo do Ser: “Bergson reconhece sem dúvida que a verdadeira mobilidade, a duração, é diferença consigo, mas é para fazê-la aceder à dignidade substancial. O bergsonismo é, portanto, menos uma crítica à metafísica do que um deslocamento da sua tópica: o Ser só mudou de conteúdo.” (LEBRUN, 1972, p. 240 apud BARBARAS, 1998, p. 51). Para eles, Bergson atribui ao devir um privilégio metafísico contraditório.

Barbaras buscará em Merleau-Ponty uma saída para esse impasse: “A neutralização do nada não conduz ao devir por oposição à essência imutável, mas antes a um sentido do ser que inclui o negativo, por oposição à plena positividade.” (BARBARAS, 1998, p. 51). Enquanto Bergson acentua a positividade do devir contra as perspectivas clássicas que o relegam ao não-ser, Merleau-Ponty amplia essa análise e vê no imutável uma modalidade do positivo sob a qual o Ser pode abrigar a negatividade em seu seio. Assim, a duração assume um sentido original do ser, integrando a negatividade sem sabê-lo: uma “negatividade nativa”, ou seja, aquilo que é próprio do ser percebido como ser à distância: “[...] a distância faz parte do seu ser. Tal é o sentido autêntico da negatividade interior ao Ser sobre a qual se debruça a crítica do nada.” (BARBARAS, 1998, p. 56).

Essa distância fenomenológica supõe a “separação” entre duas regiões do real: a subjetividade e o Ser – justamente um dos falsos problemas que Bergson queria superar com a imagem do elã vital. Porém, o que era apenas um movimento imparcial tende a solidificar-se na palavras “consciência” e “vontade”, instituindo-se quiçá como princípio filosófico. Esse procedimento de dramatização, capaz de despertar entidades metafísicas, deve ter motivado certas interpretações, como as de Barbaras e Lebrun.

Sem embargo, a noção bergsoniana de “coincidência” não admite tal separação, visto que o real se integra em um mesmo movimento: a dialética do devir. Entretanto, Bergson consente que é impossível manter esse esforço antinatural que faria coincidir, ao menos em algum grau, a ação humana com a vontade do elã:

Na ação livre, quando contraímos todo nosso ser para lançá-lo para frente, temos a consciência mais ou menos clara dos motivos e dos móveis e mesmo, a rigor, do devir pelo qual estes se organizam em ato; mas o puro querer, a corrente que atravessa essa matéria comunicando-lhe a vida é algo que mal sentimos, algo que no máximo roçamos de passagem. (BERGSON, 2005, p. 258).

 

Por um esforço de vontade, então, nós nos instalamos no puro querer do elã vital, mas essa coincidência não durará mais que um instante e sempre será um “[...] querer individual e fragmentário.” (BERGSON, 2005, p. 258). A coincidência parcial, portanto, não pode ser concebida como fusão ou contato com o Ser, mas como “[...] uma coincidência que está sempre defasada ou sempre por vir, uma experiência que se segue de um passado impossível e que antecipa um futuro impossível.” (BARBARAS, 1998, p. 58). Não se trata apenas de renovar a metafísica pela substituição dos conteúdos, senão de mostrar a possibilidade de outra metafísica:

A duração não é somente mudança, devir, mobilidade, é o ser no sentido vivo e ativo da palavra. O tempo não é colocado no lugar do ser, é compreendido como ser nascente, e agora é o ser inteiro que é preciso abordar junto com o tempo. (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 204).

 

Bergson não busca um princípio filosófico absoluto, seja da vida, seja da materialidade, nem quer pôr o devir no lugar da essência, realizando o sonho da metafísica tradicional. Os conceitos de ação e movimento caracterizam a fluidez dessa nova maneira de fazer metafísica aliada ao esforço da intuição. Em certa medida, a metafísica clássica e a intuição sugerem dois esforços em sentido contrário, pois “[...] o mesmo esforço pelo qual ligamos ideias a ideias faz desvanecer a intuição que as ideias se propunham a armazenar.” (BERGSON, 2005, p. 258).

Na história da filosofia, qualquer intuição original se desenvolve por conceitos. Entretanto, para reestabelecer o contato primitivo com a intuição, haveria que desfazer toda essa construção conceitual. Daí se desprende a “dialética bergsoniana” como uma distensão da intuição (PRADO JÚNIOR, 1989, p. 29). Para um discípulo atento, exercer a intuição de acordo com o mestre significa habituar-se a esse “[...] vai-e-vem contínuo entre a natureza e o espírito.” (BERGSON, 2005, p. 259).

 

Referências

BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience. Paris: Vrin, 1998.

BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, H. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.

BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.

DELEUZE, G. Cinema I – A imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2018.

LEBRUN, G. La patience du concept. Paris: NRF, 1972.

MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

PAIVA, R. Impulso criador e drama vital em Bergson. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 253 – 274, 2023.

PRADO JÚNIOR, B. Presença e campo Transcendental. São Paulo: Edusp, 1989.

WORMS, F. Bergson ou les deux sens de la vie. Paris: PUF, 2004.

 

Recebido: 23/01/2023

Aceito: 30/01/2023



[1] Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Feira de Santana, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1175-265X. E-mail: pabloiobr@yahoo.com.br.