Comentário a “Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão”: Os prazeres de Céfalo

 

Admar Costa[1]

 

Referência do artigo comentado: ROHDEN, Luiz. Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 2, p. 221 – 248, 2023.

 

Platão aborda o tema do prazer e do desejo, em diversas obras, e isso traz implicações diretas para a sua concepção de quem é o ser humano e como ele deve ser educado, como vive em comunidade, como resolve seus conflitos psíquicos e como deve escolher seus líderes.

Nas primeiras páginas da República, o tema comparece em um interessante contexto. Céfalo, com a idade de 70 anos, confessa a Sócrates que, com o passar do tempo, descobriu que os prazeres da conversa aumentavam à medida que os prazeres do corpo diminuíam. A descoberta é celebrada por tornar a velhice – a qual é reputada como uma fase difícil da existência – mais prazerosa. Por esse motivo, Sócrates ouve a reclamação de que anda sumido, de que deveria vir mais vezes ao Pireu, para conversar, não só com o dono da casa, mas com os filhos e amigos que lá se encontram, como expectadores do longo diálogo que receberá o nome de Politeía.

A fala de Céfalo[2] sugere que aqueles que não substituíram os prazeres do corpo pelos prazeres da conversa continuam a lamentar a velhice e a sonhar com os dias passados. Relacionando a vida a prazeres sensuais, esses velhos concluem que já não vivem ou que não é vida o que usufruem, no momento. Até que ponto Céfalo tem razão? Podemos trocar um prazer do tipo físico, como o sexo, pelo prazer de conversar com amigos? Podemos trocar o prazer de dançar e sair para a “balada”, pelo prazer de ver ópera ou filmes na televisão? O que Platão acharia disso?

No Filebo (PLATÃO, 2012), um diálogo que investiga a fundo a questão do prazer, encontramos algumas pistas para pensar o problema. Esse diálogo afirma que dor e prazer constituem um movimento de afecção o qual se realiza no corpo e na alma, movimento que pode ser chamado de sensação (aísthesisFil., 34ª3). Na sequência, é dito que a memória (mnémen Fil., 34ª10) é a conservação da sensação. Como somos movidos, constantemente, por desejos ou apetites, o próprio viver se confunde com esse movimento que segue a cadência da falta e da plenitude, constantemente. Por essa razão, os prazeres estariam para a obtenção de plenitude, assim como as dores se associam à falta, ou seja, dor é caracterizada como movimento de dissolução ou perda de algo, ao passo que prazer é o oposto: restauração de um estado perdido. Nesse movimento, porém, a memória desempenha função primordial, por ser a conservação da sensação de plenitude ou de falta e, ao mesmo tempo, a informação de como ela é alcançada, isto é, beber é a solução para quem tem sede e assim por diante.

É comum, então, que a alma busque o objeto já associado ao prazer ou repleção de uma falta já conhecida, enquanto evita o objeto que a leva à dor. A recorrência nas escolhas, porém, ignora duas dificuldades, quando pensamos em desejos não primários. Primeiro, por estarmos submetidos à temporalidade, tanto a alma quanto o objeto que ela deseja sofrem mudanças e, quando essa mudança é grande, ela causa uma alteração, a saber, o que antes causava prazer, agora pode vir a causar dor e vice-versa. Além do tempo, o Filebo ensina que o prazer é complexo ou multifacetado (poikílon – 12c). Com uma tal natureza, portanto, é provável que nos enganemos ao tentar identificar certo objeto de prazer, já que a mesma coisa pode aparecer também como dor, a depender da intensidade e da ocasião ou, simplesmente, pela natureza mista que a identifica.

Para que a alma não reitere sempre na escolha do mesmo tipo de objeto que lhe cause frustração, é útil, pois, que se busquem os mais puros prazeres possíveis, cuja interrupção não nos faça cair, imediatamente, na dor. Um tal prazer, apresentado como o de aprender, por exemplo, não se transforma em dor, quando é interrompido ou perdido, servindo de alento para aqueles que não querem abrir mão dos prazeres, mas temem a porção de sofrimento que, às vezes, eles trazem.

Voltando a Céfalo, é possível defender como válida a sua opinião sobre os prazeres, pelas seguintes razões. Uma vez que os prazeres tocam tanto o corpo quanto a alma, é possível, sim, substituir um objeto de prazer por outro e evitar a situação em que a perda de um prazer signifique, necessariamente, sofrimento. Ainda em alinhamento com o Filebo, o prazer da conversa pode ser pensado como um prazer mais puro que o sexo e, ao mesmo tempo, como uma espécie de restauração – em constante luta contra a dissolução – de uma memória cuja preservação se dá através de conversas amigáveis, cujo benefício, na velhice, é tanto maior pela ausência da competitividade com outros prazeres que acometem os jovens. A única e pequena objeção que se poderia fazer a Céfalo é que ele deveria ter feito essa descoberta antes, pois também os jovens se beneficiam das conversas, já que elas abrem a porta à filosofia e à uma vida menos vulgar.

Por fim, apesar de toda a importância da temática dos prazeres, nos autores antigos, é sempre bom relembrar que, em geral, felicidade para os gregos não se restringia apenas a momentos de obtenção de prazer, mas, muito pelo contrário, se relacionava à realização plena de uma vida e do fim a que ela se destina. Por esse motivo, é comum encontrar a discussão sobre felicidade associada mais a preocupações de ordem política, atinente à ordenação da pólis e do coletivo, e menos centrada no individual, nos interesses que o caracterizam e na quantidade de prazer que ele pode obter, ao longo da existência. Assim terminamos nossa reflexão a partir do texto de Rohden (2023).

 

Referências

PLATÃO República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.

PLATÃO. Filebo. Tradução de Fernando Muniz. Rio de Janeiro: Loyola, 2012.

ROHDEN, Luiz. Ética hermenêutica: circularidade virtuosa entre o conhecimento e o prazer a partir do Filebo de Platão. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 221 – 248, 2023.

 

Recebido: 21/01/2023

Aceito: 26/01/2023



[1] Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9744-6601. Email: costa.admar@gmail.com.

[2] “Na medida em que vão se perdendo (apomaraínontai) para mim os prazeres do corpo, nessa mesma crescem (aýxontai) o desejo e o prazer da conversa” - Rep. 328d. Cf. PLATÃO (1980).