Comentário a “Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory” 25 Anos da Tese da Mente Estendida

 

Bernardo Alonso[1]

 

Referência do artigo comentado: Peruzzo Júnior, Léo; Stroparo Amanda Luiza. Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 2, p. 193 – 214, 2023.

 

Vinte e cinco anos após The extended mind (CLARK; CHALMERS, 1998) e 133 anos depois de The Principles of Psychology (JAMES, 1890), o embate internalismo x externalismo segue forte. Em suas numerosas variantes e minúcias técnicas, a distinção, que tem como motivação a antiga necessidade de demarcação sobre as confusas fronteiras entre corpo, pensamento, linguagem e mundo, persiste viva como tema de pesquisas em Filosofia da Mente, Filosofia da Psicologia, Psicologia e Ciências Cognitivas. Neste breve artigo, tratarei apenas sobre como processos cognitivos se estendem no mundo, segundo a Tese da Mente Estendida (TME), deixando de fora muita coisa.

A TME, ao apresentar um tipo de externalismo baseado no papel ativo do ambiente na condução dos processos cognitivos, inaugura uma posição estranha ao cognitivismo, o qual, segundo Clark e Chalmers (1998), é fundado em preconceitos intracranianos. De modo resumido, a TME distancia-se do cognitivismo clássico, ao propor que (1) talvez a mente não seja uma res cogitans fundamentalmente distinta de qualquer res extensa física. Ao adotarmos (1), evitam-se os espólios do cartesianismo. E, (2) ao mesmo tempo, é recusado que, seja lá o que a for o que costumamos chamar de “mente”, esta seja idêntica ao cérebro. Tal como a cognição corporificada, a cognição estendida considera que processos e estados cognitivos não se dão apenas no espaço intracraniano.

Embora a cognição corporificada se distancie do cognitivismo, por conceber que a cognição não se dá unicamente de modo neural, ela ainda mantém a cognição dentro dos limites biológicos do organismo. De maneira diversa, a TME afirma que nossa mente não está confinada dentro de um organismo (corpo), tampouco no cérebro, podendo ser estendida para fora dos limites de nossa pele. É sustentado que uma porção significativa da cognição humana se estende além do cérebro (e corpo) para o mundo, incorporando ativamente artefatos, utensílios e ferramentas.

Mas, o que é estendido, exatamente? Mente? Cognição? O que é a marca do cognitivo? Em artigo recente (ALONSO; RAMOS, 2022), foi defendido que uma noção adequada da marca do cognitivo é oferecida por Hatfield (2014,) ao afirmar que “[…] os principais pontos em comum envolvem a noção de que a cognição é o processamento de informações que explica o comportamento inteligente.” Tal definição possibilita abarcar como processos cognitivos a diversidade de fenômenos estudados pelas Ciências Cognitivas, em especial acomodar os mais recentes desafios apresentados por certos tipos de cognição, tais como: cognição estendida, cognição incorporada, cognição estruturada, cognição corporificada, cognição situada, cognição distribuída, cognição de grupo, cognição social, cognição enativa, cognição fundamentada, cognição aumentada e metacognição (SMART; CLOWES; HEERSMINK, 2017, p. 16).

Ao se ter em vista somente a TME, é correto dizer que a extensão da mente pode ser compreendida através de três dimensões distintas. A primeira dimensão que é estendida, segundo a TME, é a dos processos cognitivos. Clark e Chalmers (1998, p .7-8) tomam o exemplo de um trabalho anterior de Kirsh e Maglio (1994) e nos convidam, através de um cenário com o jogo Tetris, a visualizar diferentes formas geométricas bidimensionais que descem, em sequência, pela tela. (a) Podemos fazê-lo enquanto giramos cada peça do Tetris na mente (ou cérebro ou em algum lugar dentro do crânio). Por outro lado, (b) podemos manualmente girar a peça da tela, pressionando um botão no teclado, enquanto verificamos sua congruência com outras peças do jogo, utilizando o sentido da visão (olhos), como fazemos habitualmente ao jogar Tetris no computador. Este último é um caso de processo cognitivo ocorrendo externamente.

Ao que tudo indica, a capacidade de girar as peças com o teclado e a confirmação de seu posicionamento, através do recurso visual de exibição no monitor do computador, garantem que a execução dos movimentos, assim como cumprimento das regras e sucesso das jogadas, seja otimizada. Ainda no exemplo Tetris, (c) em um futuro cyberpunk, a pessoa se senta diante da tela do computador e visualiza diferentes formas geométricas bidimensionais, as quais descem, em sequência, pela tela. Por meio de um implante neural, a pessoa pode girar a forma com a mesma velocidade que faria no cenário anterior (b). É argumentado que, no cenário (c), haveria uma tendência a se considerar como cognitivo o processo realizado, ao contrário de (b), o qual envolve o auxílio de controles manuais e aparatos visuais. Apesar do cenário (c) ter um mecanismo de realização muito próximo ao do cenário (b), a tarefa é intracraniana (implante). Presumivelmente, a localização da realização é o fator levado em conta, ao se decidir se um processo é ou não cognitivo. Considerar o cenário (c) como envolvendo processos genuinamente cognitivos e não (b) constitui um caso de preconceito intracraniano.

A segunda dimensão da extensão, segundo a TME, é a dos estados cognitivos, tais como crenças disposicionais e memórias. Temos o exemplo de Otto, paciente de Alzheimer, o qual armazena informações em um caderno que consulta frequentemente. Sempre que Otto vai ao museu, ele abre seu caderno, confere o endereço e usa “O museu está localizado na rua 53”, para guiá-lo a ações. As informações armazenadas no caderno enquadram-se em uma crença disposicional, o segundo tipo de extensão.

Um ponto que é pouco explorado, embora seja importante para a compreensão do que está de fato envolvido na formulação da TME, é a distinção feita por Kirsh e Maglio (1994, p. 524) entre ações pragmáticas e ações epistêmicas. Ações pragmáticas são aquelas executadas para se alcançar fisicamente um objetivo. São ações que alteram o mundo, em casos nos quais tais mudanças físicas são o objetivo em si mesmas. Varrer o chão, trocar uma lâmpada, costurar uma camisa são exemplos de ações pragmáticas. Por outro lado, ações epistêmicas são caracterizadas por serem tarefas físicas que tornam a computação mental mais fácil, mais rápida ou mais confiável. Utilizar lápis e papel para fazer cálculos, em vez de realizá-los inteiramente “de cabeça”, é um exemplo de uma ação epistêmica. É uma ação externa que um agente executa para alterar seu próprio estado computacional e simplificar o processo cognitivo ao descarregar parte de sua complexidade para o ambiente (ALONSO; RAMOS, 2022, p. 41).

Finalmente, a terceira extensão é a do self. Um indivíduo pode compor um sistema transitório e integrado, quando acoplado a recursos externos; ora, Clark e Chalmers (1998, p. 18) afirmam que isso pode ser tomado como um self estendido:

A mente estendida implica um eu estendido? Parece que sim . . . . As informações do caderno de Otto, por exemplo, são parte central de sua identidade como agente cognitivo. O que isso significa é que o próprio Otto é melhor considerado como um sistema estendido, um acoplamento de organismo biológico e recursos externos. Para resistir consistentemente a essa conclusão, teríamos de reduzir o eu a um mero feixe de estados que ocorrem, ameaçando gravemente sua profunda continuidade psicológica.

 

Esse impulso naturalizante não é novo. O filósofo e psicólogo americano William James (1890, p. 294) integrou o impulso naturalizante à psicologia, ao propor uma filosofia científica do self:

Apropriadamente falando, um homem tem tantos eus sociais quantos são os indivíduos que o reconhecem e carregam uma imagem dele em sua mente. Ferir qualquer uma dessas imagens é feri-lo. Mas como os indivíduos que carregam as imagens se enquadram naturalmente em classes, podemos praticamente dizer que ele tem tantos eus sociais diferentes quantos grupos distintos de pessoas cuja opinião ele se importa.

 

Segundo a citação sugere, a sociedade não é algo que se acrescenta, por assim dizer, ao self como uma espécie de ambiente puramente, unicamente externo. De modo diverso, a sociedade é refletida no self estendido em termos de uma multiplicidade de constituintes, os quais exibem diferentes níveis de organização e divisões de trabalho. Este é o nosso comentário a partir do texto de Peruzzo Junior e Stroparo (2023).

 

Referências

ALONSO, B.; RAMOS, R. A Marca do Cognitivo e Cognição 4E. Princípios, UFRN, v. 29, n. 58, 2022.

CLARK, A.; CHALMERS, D. The extended mind. Analysis, Oxford University Press, v. 58, n.1, p.7-19, 1998.

HATFIELD, G. Cognition. In: SHAPIRO, L. (ed.). The Routledge Handbook of Embodied Cognition. 1. Ed. New York: Routledge, 2014. cap. 34, p. 361-373.

JAMES, W. The Principles of Psychology. London: Macmillan, 1890.

KIRSH, D.; MAGLIO, P. On Distinguishing Epistemic from Pragmatic Action. Cognitive Science, Blackwell, v. 18, n. 4, p. 513-549, 1994.

Peruzzo Júnior, L.; Stroparo, A. L. Dissolving the Self: the cognitive turn of the extended mind theory. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 2, p. 193 – 214, 2023.

SMART, P.; CLOWES, R.; HEERSMINK, R. Minds Online: The Interface between Web Science, Cognitive Science and the Philosophy of Mind. Foundations and Trends in Web Science. Now Publishers, v. 6, n. 1-2, p. 1-232, 2017.

 

Recebido: 10/01/2023

Aceito: 14/01/2023



[1] Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3595-4907. E-mail: bernardo.alonso@ufmt.br.