Comentário a El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger

 

Paulo Mendes Taddei[1]

 

Referência do artigo comentado: Ayala-Colqui, Jesús. El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 133 – 158, 2023.

 

Duas limitações se destacam no trato acadêmico com a tradição fenomenológica, de modo geral: uma atenção exclusiva à mera exegese de autores clássicos, em detrimento de questões sistemáticas (GALLAGHER; ZAHAVI, 2021, p. 33), e a tendência a interpretá-la como possuindo divisões internas inegociáveis (ZAHAVI, 2003, p. 326). A combinação das duas limitações gerou nichos acadêmicos os quais raramente dialogam entre si e que pouco se engajam com os problemas de sua época. Se, por um lado, a pesquisa exegética em Husserl pode ao menos contar com um material bibliográfico elaborado por um aparato crítico rigoroso e com uma tarefa bem definida, qual seja, a de interpretar um autor cujos manuscritos davam conta de uma riqueza de material que em muito excedia suas publicações em vida, por outro lado, a pesquisa exegética em Heidegger sequer dispunha de um aparato crítico adequado para a interpretação de seus póstumos, gerando uma situação que Kisiel caracterizou, já nos anos 90 do século passado, como um verdadeiro escândalo do trabalho acadêmico (1991, 1995, 2007).

Quaisquer que sejam os méritos que possua uma literatura secundária de tal natureza para nossa compreensão de Husserl, de Heidegger e de outros autores dessa tradição – e não há dúvida de que os tem –, representam incontestavelmente um marco na história da recepção da fenomenologia as assimilações, a partir de questões sistemáticas as quais começaram a ser realizadas nos anos 60 e 70 do século XX, por autores tão distintos como Tugendhat, Føllesdal e Dreyfus, dentre outros. Mapeando Husserl e, no caso de Tugendhat e Dreyfus, também Heidegger, no âmbito de debates tão diversos, como os concernentes ao conceito de verdade, às noções de sentido e referência e ao campo da inteligência artificial, tais interpretações puderam mostrar a fecundidade dessa tradição, no diálogo com a chamada filosofia analítica.

Em alguns casos, como no da chamada interpretação West Coast de Husserl, proposta por Føllesdal e Dreyfus, tais interpretações incorreram em certos abusos exegéticos. Se hoje ela é vista enquanto uma linha interpretativa equivocada, ela é celebrada por haver ressuscitado o debate em torno de conceitos centrais de Husserl (STAITI, 2015, p. 3). É, todavia, a interpretação que Dreyfus realiza de Husserl e Heidegger que pode ser considerada típica da segunda limitação a qual acima caracterizamos – Dreyfus toma os modelos de fenomenologia de Husserl e de Heidegger como duas alternativas excludentes (DREYFUS, 1991, p. 3, 30). Nisso, não está sozinho, no que se refere à interpretação de Heidegger – um intérprete tão diferente de Dreyfus como Van Buren, influenciado pela tradição desconstrucionista de Derrida, defende algo semelhante (VAN BUREN, 1994, p. 203). Tampouco concerne a fenômeno restrito à relação entre Husserl e Heidegger: conforme aponta Zahavi (2002), também a relação entre Husserl e Merleau-Ponty foi erroneamente caracterizada como a de uma ruptura radical. Nesse sentido, como Zahavi bem ressaltou, é a leitura de Heidegger e sua radical crítica à subjetividade moderna que motivou exegeses que buscaram divisões internas insolúveis, no âmbito da tradição fenomenológica.

É por essa razão que o trabalho de Crowell (2001, 2013) deve ser apreciado como decisivo na literatura secundária da fenomenologia: tratou-se de buscar a continuidade da tradição fenomenológica ali onde sempre se supôs haver um abismo intransponível – a saber, entre Husserl e Heidegger. Não se trata de homogeneizar os autores da tradição, mas de mostrar que, se formos hermeneuticamente benevolentes com todos os autores, as linhas de continuidade se deixam prolongar a muito além do que se esperava – o que, por sua vez, permite a circunscrição muito mais precisa das reais rupturas e cisões, superando, com isso, julgamentos simplórios dos modelos de fenomenologia baseados em diferenças no vocabulário e em caracterizações genéricas de projetos filosóficos. A principal consequência disso foi a redescoberta de uma unidade de fundo da tradição fenomenológica.

Independentemente das inegáveis virtudes do trabalho de Crowell, seu foco na dimensão de “espaço de sentido”, de normatividade e de responsividade evidencia seu compromisso com uma fenomenologia transcendental. E, embora esse caráter transcendental não precise ser considerado incompatível com propostas modestas de naturalização, é no contexto dessas propostas que podemos mais bem apreciar a contribuição de Ayala-Colqui: a proposta de mútuo esclarecimento entre fenomenologia e ciências cognitivas, levada à frente por Gallagher e Zahavi (2008, 2012, 2021), dentre outros, resguarda um espaço para uma dimensão transcendental e uma dimensão empírica, contudo, recomenda que fenomenologia e ciências empíricas – especialmente, mas não apenas, as ciências cognitivas – entrem em diálogo para o benefício de seu mútuo desenvolvimento.

A importante contribuição de Ayala-Colqui sobre alteridade animal em Husserl e Heidegger faz justamente isso: a partir de uma cuidadosa leitura de Husserl e de Heidegger, o autor os põe em diálogo com indícios empíricos contemporâneos da zoologia – da biologia evolutiva à genética. Trata-se não de julgar anacronicamente os autores, como Ayala-Colqui bem aponta, todavia, de buscar entender se os modelos de fenomenologia do animal não humano e de sua diferença com relação ao humano se prestam a assimilar tais resultados ou se os põem em xeque. Sua conclusão, a saber, de que a fenomenologia de Husserl se mostra mais propícia para o diálogo com as ciências biológicas do que a fenomenologia de Heidegger[2], pode surpreender aqueles que conhecem a fenomenologia husserliana a partir unicamente do método da epoché, e, ademais, interpretam esse passo em função do ponto de vista de um solipsismo metodológico, isto é, de uma filosofia de poltrona (armchair philosophy), mas ela é perfeitamente condizente com a influência, hoje reconhecida, a qual o fundador da fenomenologia exerceu sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty, cujo diálogo com as ciências empíricas da psicologia e da biologia é conhecido. Nesse contexto, conquanto o trabalho de Heidegger também se baseie na biologia de sua época, a saber, no trabalho de Von Uexküll, uma tese como a do hiato entre humanos e animais não humanos é colocada em questão por resultados contemporâneos da zoologia. É, assim, o caráter eminentemente hermenêutico da fenomenologia heideggeriana – mais do que o caráter transcendental da de Husserl – que representa o maior desafio para um diálogo com as ciências biológicas.

Nesse contexto, proponho aqui esboçar, em prol de um mapa dos modelos de fenomenologia, uma terceira posição com relação às posições de Husserl e de Heidegger, no que se refere à alteridade animal: trata-se justamente da posição de Merleau-Ponty. A posição do fenomenólogo francês é intermediária às dos dois autores. Enquanto, em Husserl, vemos em ação uma fenomenologia que se propõe elucidar camadas de sentido naturais que fundam camadas de sentido personalistas, em Heidegger, temos uma fenomenologia hermenêutica unidimensional: qualquer assunção de uma dimensão natural embutida na experiência implica, para Heidegger, a aceitação da ontologia de ser-simplesmente-dado (Vorhandenheit). Assim, a natureza, por intermédio da perspectiva hermenêutica de uma fenomenologia da cotidianidade, aparece no contexto da manualidade (Zuhandenheit).

Como enfatiza Dupont (2008, p. 13), o comportamento animal tem, em Fenomenologia da Percepção, o poder de contribuir para a compreensão do comportamento humano. Nessa obra, Merleau-Ponty faz claro uso da ideia husserliana de Fundierung, com uma análise de dimensões naturais do corpo-próprio como um sistema de funcionamento anônimo. O corpo-próprio diz respeito à nossa vinculação pré-objetiva ao mundo – note-se que a expressão être-au-monde, tradução do in-der-Welt-sein heideggeriano, ganha um significado que não é restrito ao humano, mas se estende aos organismos (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 128). Nesse sentido, Merleau-Ponty alude ao corpo como um eu natural, ao mesmo tempo diferente do eu pessoal e um pressuposto para este – uma dimensão de funcionamento “pré-histórico”, ou “mais velha do que nós”, anterior às nossas decisões pessoais e ao nosso senso de objetividade.

Por essa caracterização, poder-se-ia levar em conta que Fenomenologia da Percepção segue a proposta husserliana. É preciso ponderar, todavia, que Merleau-Ponty complexifica o quadro husserliano, ao considerar que a atuação do espírito – isto é, de nossa dimensão pessoal – tem a possibilidade de descer até a dimensão natural:

É impossível sobrepor, no homem, uma primeira camada de comportamento que chamaríamos de “naturais” e um mundo cultural ou espiritual fabricado. No homem, tudo é natural e tudo é fabricado, [...] no sentido em que não há uma só palavra, uma só conduta que não deva algo ao ser simplesmente biológico – e que ao mesmo tempo não furte à simplicidade da vida animal, não desvie as condutas vitais de sua direção, por uma espécie de regulagem [d’échappement] e por um gênio do equívoco que poderiam servir para definir o homem. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 257, grifo no original)

Assim, diferentemente de Husserl, torna-se impossível distinguir, em Merleau-Ponty, uma camada de mera natureza de uma camada espiritual (cf. HUA I, HUSSERL, 1991, p. 121-130); diferentemente de Heidegger, isso não nos impede de extrair lições valiosas para compreender o ser humano, a partir do comportamento animal. O complexo quadro merleau-pontiano do humano envolve a compreensão da ambiguidade de nosso ser-no-mundo: se “[...] até mesmo os reflexos têm sentido” (2006, p. 126), isso não implica que “[...] a sublimação biológica em existência pessoal, do mundo natural em mundo cultural” (2006, p. 125) seja absoluta e sem falha. “O que nos permite centrar nossa existência é também o que nos impede de centrá-la absolutamente.” (2006, p. 125). A elucidação dessa ambiguidade e dessa precariedade fundamental, Merleau-Ponty pretende nos oferecer através de uma fenomenologia do tempo, a qual explicaria a transformação do tempo natural em tempo pessoal e histórico – o que está para além das indicações aqui esboçadas.

 

Referências

Ayala-Colqui, J. El animal, ¿es una otredad posible? Indagaciones fenomenológicas a partir de Husserl y Heidegger. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 2, p. 133 – 158, 2023.

CROWELL, S. G. Husserl, Heidegger, and the Space of Meaning: Paths Toward Transcendental Phenomenology. [s.l.] Northwestern University Press, 2001.

CROWELL, S. Normativity and Phenomenology in Husserl and Heidegger. [s.l.] Cambridge University Press, 2013.

DREYFUS, H. L. Being-in-the-World: A Commentary on Heidegger’s Being and Time, Division I. [s.l.] MIT Press, 1991.

DUPONT, P. Dictionnaire Merleau-Ponty. Paris: Ellipses, 2008.

GALLAGHER, S.; ZAHAVI, D. The Phenomenological Mind. 1. ed. [s.l.] Routledge, 2012.

GALLAGHER, S.; ZAHAVI, D. The Phenomenological Mind. 2. ed. [s.l.] Routledge, 2012.

GALLAGHER, S.; ZAHAVI, D. The Phenomenological Mind. 3. ed. [s.l.] Routledge, 2021.

HUSSERL, E. Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge. [s.l.] Martinus Nijhoff, 1991.

KISIEL, T. The Genesis of Heidegger’s ‘Being & Time’. [s.l.] University of California Press, 1993.

KISIEL, T. Heidegger’s Gesamtausgabe: An International Scandal of Scholarship. Philosophy Today, v. 39, n. 1, p. 3-15, 1995.

KISIEL, T. In Response to my Overwrought Critics. Studia Phaenomenologica, v. 7, n. n/a, p. 545-552, 2007.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

STAITI, A. Commentary on Husserl’s “Ideas I”. [s.l.] De Gruyter, 2015.

VAN BUREN, J. The Young Heidegger: Rumor of the Hidden King. [s.l.] Indiana University Press, 1994.

ZAHAVI, D. Merleau-Ponty on Husserl: A Reappraisal. In: TOADVINE, T.; EMBREE, L. E. (ed.). [s.l.] Kluwer Academic, 2002.

ZAHAVI, D. Steven Galt Crowell: “Husserl, Heidegger, and the space of meaning: Paths toward transcendental phenomenology”. Continental Philosophy Review, v. 36, n. 3, p. 325-334, 2003.

 

Recibido: 12/01/2023

Aceito: 20/01/2023



[1] Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. Professor de Filosofia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5895-7604. E-mail: paulo.taddei@gmail.com.

[2] Ayala-Colqui (2023) conclui também que os modelos de fenomenologia de Husserl e de Heidegger, em diferentes graus, seriam marcados por uma perspectiva “ontocêntrica e especista”. Não pretendo discutir essa conclusão, neste comentário, mas entendo ser necessário ponderar o fato de a própria fenomenologia, enquanto projeto, envolver a recondução dos objetos aos seus modos de doação, o que implica, de modo mais ou menos explícito, uma consideração da subjetividade.