Comentário a “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global”
Referência do artigo comentado: CRUZ, Cristiano Cordeiro. Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 61-84, 2023.
O texto de Cordeiro Cruz (2022), intitulado “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global”, nos coloca de frente com o problema da lacuna existente no desenvolvimento da filosofia da tecnologia de Andrew Feenberg. E, a partir disso, perfaz um caminho em que aponta para epistemologias e práticas presentes no Sul global como resposta possível e satisfatória a essa lacuna, as quais, incorporadas, podem fazer avançar o construtivismo, superando tal lacuna.
Em um primeiro momento, aproxima-nos do construtivismo crítico de Feenberg e suas fontes, desde as perspectivas críticas lançadas pela Teoria Crítica da primeira geração da Escola de Frankfurt, e seu subsequente desenvolvimento, enquanto uma genuína filosofia da tecnologia, que segue em pleno desenvolvimento. Dessa primeira geração, principalmente na figura de Herbert Marcuse, irá projetar-se um interesse por uma compreensão política da tecnologia e suas implicações na estruturação de uma tecnocracia e nos eventos nefastos que marcaram o século XX. Embora interessados pelos aspectos políticos da tecnologia, os teóricos da primeira geração não avançaram para além da crítica à racionalidade instrumental, à exceção de Marcuse, o qual já apontava para um caminho teórico distinto, aprofundando-se na questão da tecnologia. É desse fundo teórico que emerge a noção de tecnologia sempre direcionada por fins políticos: a tecnologia não é neutra.
Feenberg compreendeu o beco sem saída ao qual chegaram os teóricos da primeira geração, com a crítica à racionalidade instrumental, com base na qual foram erigidas perspectivas negativas frente à tecnologia. Essas perspectivas minavam as compreensões acerca dos valores e ganhos inerentes à tecnologia e à ciência, o que será superado na produção teórica da segunda geração, tanto na teoria comunicativa de Jürgen Habermas quanto no construtivismo crítico de Andrew Feenberg. É possível voltar-se para dentro da técnica, assegurando seu expressivo papel nos ganhos na ampliação material da sociedade, e construir uma crítica que pretenda romper com aquele beco sem saída da primeira geração – a proposta de Feenberg pretende apontar que não há apenas instrumentalidade no ato técnico, mas que este já está, de antemão, direcionado por valores ético-políticos incorporados no momento das tomadas de decisões, na proposição das soluções técnicas. Essas soluções ou códigos técnicos não são neutros, pois sustentam toda a arquitetônica dos modos de vida na sociedade na qual são implantadas, partilhando com esta uma relação intrínseca de construção mútua. Porém, a racionalidade tecnológica que sustenta a ordem sociotécnica impossibilita a ampliação do horizonte na compreensão da existência de outros ordenamentos sociotécnicos.
O construtivismo crítico de Feenberg oferece uma crítica a essa racionalidade tecnológica com o intuito de promover um processo de democratização da mesma, torná-la plural. Feenberg compreende que a gramática das lutas sociais pode fazer ressoar transformações no interior dos códigos sociotécnicos, desde o momento em que essa gramática seja traduzida na introdução e ampliação das perspectivas motoras do processo de proposição de soluções, a partir das disciplinas técnicas. De outra forma, Feenberg irá compreender que as vozes que exigem uma transformação da tecnologia são oriundas do mundo-da-vida e que somente a interação com as disciplinas técnicas e, através destas, é que podem surtir, de fato, transformações no quadro sociotécnico hegemônico – a democratização da tecnologia seria o estabelecimento de um diálogo entre tais esferas.
Assim, o texto de Adriano Cruz nos aponta uma lacuna existente no construtivismo crítico de Feenberg, que não avança para além dessa fronteira entre mundo-da-vida e disciplinas técnicas, as quais, extremamente importantes, são contornadas, não oferecendo possibilidades de se repensar tais disciplinas desde dentro (CRUZ, 2022, p. 05). Cruz enfatiza o fato de a racionalidade sociotécnica de Feenberg estar aberta e sensível à gramática oriunda do mundo-da-vida e todo seu cabedal passível como contributo no processo de democratização da tecnologia; porém, todo o quadro epistemológico que sustenta o construtivismo crítico permanece assentado sobre um conceito hegemônico, tanto de ciência quanto de disciplinas técnicas.
É com base nesse ponto que Cruz perfaz um movimento de aproximação às perspectivas e aportes epistemológicos do Sul global, apresentando, de forma clara, que justamente aquela epistemologia hegemônica, não problematizada no construtivismo crítico de Feenberg, é o eixo central e endereço de problematizações e críticas, no pensamento de autores decoloniais, principalmente na obra de Boaventura de Sousa Santos, que irá propor as epistemologias do Sul como resposta alternativa ao paradigma epistemológico hegemônico em crise. Cruz delineia uma trajetória na qual aquela lacuna no pensamento de Feenberg encontra uma resposta nas construções teóricas de Boaventura de Sousa Santos, evidenciando a necessidade de uma mudança de paradigma, na qual, diante da crise e insuficiência da epistemologia hegemônica, possa emergir uma ecologia epistemológica que consiga conter o epistemicídio.
Cruz intenta percorrer um caminho profícuo de interação entre a teoria e a práxis referente às exigências de transformação da tecnologia; à construção teórica de Feenberg (seu construtivismo crítico) e sua permanência na fronteira do mundo-da-vida, evidencia uma lacuna que deflaciona seu conteúdo emancipatório. Trata-se de uma teorização, que, embora com acenos práticos e exigência por transformação (democratização) da tecnologia, permanece sem problematizar a epistemologia que a sustenta, arrefecendo, assim, seu cerne crítico. Cruz traz ao diálogo Boaventura de Sousa Santos e as perspectivas e aportes teóricos já presentes e em movimento constante, no horizonte epistemológico plural esboçado a partir do Sul global. É um salto, desde a fronteira entre o mundo-da-vida e as disciplinas técnicas, para colher as vozes que compõem a gramática necessária às exigências de transformação da tecnologia.
Também traz ao diálogo Yuk Hui e seus conceitos de cosmotécnica e tecnodiversidade, como referência para compreendermos um quadro plural possível à tecnologia, o qual escape ao monólito erigido pela racionalidade tecnológica hegemônica. Assim, perfaz um caminho desde a teoria da democratização de Feenberg até sua compreensão de um âmbito marcado pela materialidade negativa dos grupos sociais marginalizados, esquecidos ou invisibilizados pela racionalidade hegemônica e pela tecnologia sustentada por essa racionalidade. Cruz aparenta buscar nessa força da materialidade negativa, presente nas perspectivas decoloniais, a possibilidade de fazer irromper as exigências por transformações mais significativas no corpo das disciplinas técnicas.
E, como passo último no texto, apresenta três intervenções que se constituem como a corporificação desse horizonte teórico precedente. Aponta, assim, para o possível, mas ainda lacunar; para a exigência e o esperançar, no plural e diverso; e para o concreto, já em trânsito, em movimento, corporificado nas práticas que desafiam o ordenamento sociotécnico hegemônico, os quais perfazem, desde a marginalidade imposta, um movimento de luta e busca de empoderamento e visibilidade. Corroboram, desse modo, a necessidade de construção de uma ecologia epistêmica, a partir da necessidade de rompimento com as forças de objetificação oriundas do processo de colonização, e a expressão de uma transformação da ordem sociotécnica hegemônica, no recurso a um estoque epistêmico e tecnológico que foge à racionalidade tecnológica pura e à epistemologia hegemônica.
Nessa perspectiva, Cruz (2022) expressa a necessidade latente ao construtivismo crítico, que, para avançar em seu desenvolvimento, deve encarar essa lacuna e se abrir às perspectivas epistemológicas do Sul global e da diversidade tecnológica, problematizar sua própria base; além disso, compreender os resultados práticos das intervenções tecnológicas decoloniais na mobilização e construção de outros contextos sociotécnicos possíveis.
REFERÊNCIA
CRUZ, Cristiano Cordeiro. Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 61-84, 2023.
Recebido: 15/01/2023
Aceito: 22/01/2023
[1] Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade Federal do Piauí (PPGFIL/UFPI), Teresina, PI – Brasil. Professor do Curso de Licenciatura em Filosofia no Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Federal do Piauí (CEAD/UFPI). Membro e pesquisador do GT Filosofia da Tecnologia e da Técnica da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3558-3747. E-mail: mauriciofernandes@ufpi.edu.br.