Referência do artigo comentado: CRUZ, Cristiano Cordeiro. Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 61-84, 2023.
Cruz (2022) busca demonstrar como as teses do construtivismo crítico da tecnologia, do prof. Andrew Feenberg, um dos mais proeminentes filósofos da tecnologia, poderiam ser complementadas com uma análise que o autor do artigo considera como “interna das disciplinas técnicas”, para o que ele reúne argumentos de Boaventura de Souza Santos e Yuk Hui. Nesse sentido, o texto não é apenas uma crítica ao modelo de pensamento de Feenberg, mas uma teorização que pretende, de alguma forma, “aterrar” esse pensamento no “Sul global”, cujas circunstâncias são suplementares aos argumentos feenbergianos.
O horizonte do texto, nesse caso, é a perspectiva decolonial que pretende analisar os impactos dessas teorias nos processos emancipatórios dos povos que, historicamente, foram considerados submissos, subdesenvolvidos e sem verdadeira tecnologia. O texto, por isso, ao lançar mão dos argumentos de Santos e Hui, explicita o necessário reconhecimento desse equívoco e, mais ainda, da existência de “ordens sociotécnicas” outras que não aquelas eurocentradas, as quais costumam definir as pautas das disciplinas técnicas e das epistemologias. O texto ainda tem o mérito de trazer à análise, a título de exemplo, três experiências decoloniais que, sistematizadas, oferecem oportunidade para o reconhecimento prático da eficácia desses argumentos.
Sabe-se que o argumento da democratização da tecnologia – um dos mais centrais da obra de Feenberg – se estrutura a partir de uma concepção segundo a qual a tecnologia precisa ser influída pelos interesses daqueles que geralmente são alijados dos processos tecnológicos. Isso significaria dar lugar aos interesses das populações mais vulneráveis e da própria natureza (por meio, principalmente, dos movimentos sociais e ambientais), que confrontariam, por exemplo, a lógica do lucro que orienta a tecnologia unicamente para os interesses do mercado. A inclusão dessas pautas no âmbito tecnológico representaria, portanto, o estabelecimento de novas estruturas de poder e novos “códigos técnicos” e mesmo de novas tecnologias. O resultado é que as próprias disciplinas tecnológicas passariam a incluir esses novos interesses (o autor arrola como exemplo as especialidades ambientais, no âmbito de projetos de automóveis) e estes, por sua vez, passariam a incluir, nos âmbitos teóricos, as demandas do mundo da vida, das experiências concretas das pessoas em busca de vida melhor. Teoria e prática, afinal, estariam em diálogo. Daí nasceria uma nova racionalidade, não apenas tecnológica, mas sociotécnica (na medida em que a primeira se deixa influenciar pelas demandas da “sociedade”).
Nesse ponto, seria preciso, conforme defende o autor do artigo, reconhecer a necessidade de reconhecimento das diferentes demandas que são, na verdade, expressões de diferentes cosmovisões (as quais incluem, por exemplo, práticas, necessidades, conhecimentos e modos de vida). É esse, precisamente, o complemento teórico necessário à tese de Feenberg: a inclusão das pautas dos chamados “atores do Sul global”, com o objetivo de evitar – no campo tecnológico – a reiterada lógica epistemicida que impede o reconhecimento das diferentes práticas, discursos e demandas impostas pela colonialidade tradicional e que vem relegando tais formas de vida à invisibilidade. Trata-se de alcançar, segundo a tese de Boaventura de Souza Santos, aquela “justiça cognitiva” capaz de promover as interações culturais e o fortalecimento das alianças capazes de superar as injustiças históricas dessa relação entre “mundos”.
Nesse ponto, Yuk Hui traduz o esforço de reconhecimento de diferentes cosmologias particulares que formariam o que o autor chama de cosmotécnica. Falar em tecnologia (no singular) tem sido, portanto, até agora, dar voz a uma única cosmotécnica, precisamente aquela do capitalismo, a qual se universaliza com a lógica do lucro e da exploração, em detrimento das várias outras cosmotécnicas. O primeiro passo, portanto, seria “superar o universalismo”, com a afirmação de diferentes tecnologias (no plural), na medida em que elas traduzem diferentes formas de vida com as quais a tecnologia se relaciona. Isso passa, portanto, pela superação da abstração teórica da tecnologia, por meio do reconhecimento das condicionalidades e circunstancialidades que moldam os processos técnicos. Haveria, assim, uma tecnodiversidade: diferentes formas de articular a tecnologia com os horizontes antropológicos dos diferentes povos e culturas – que não aqueles centrados na visão unilateral da sociedade capitalista. Hui, nesse caso, concretiza a tese da necessidade de reconhecimento dessas novas epistemologias, a partir de identidades outras que não aquelas eurocentradas e colonizadoras.
Nasceriam daí as experiências várias das populações “sulistas” que comprovam e desenvolvem outras cosmotécnicas mobilizadas, inclusive, pelas utopias de um outro mundo possível – que são utopias de resistência. Essa resistência, no caso do artigo, se dá por meio de [1] um ateliê de arquitetura orientado pela ideia de projeto participativo que inclui corpos e inconsciente; [2] um projeto participativo de engenharia elétrica/eletrônica/computacional que atua com mulheres bordadeiras colombianas; e [3] um projeto de engenharia popular baseado em economia solidária, tecnologia social e extensão universitária.
Essas três experiências comprovariam, segundo o autor do artigo, a tendência de resgate de cosmotécnicas específicas, tradutoras de diferentes formas de vida e geradoras de outras tecnologias. Em relação a Feenberg, nesse caso, Hui tem a vantagem de ver que a atuação dos movimentos sociais e ambientais, por exemplo, se estruturam na perspectiva do reconhecimento de diferentes cosmotécnicas – e não apenas diferentes interesses ou protagonismos. O que nasce, afinal, não é apenas um novo design, mas a expressão de novos modos de vida.
Tudo isso nos leva a entender esse projeto como uma crítica a uma das bases teóricas mais importantes e características da modernidade. Essa perspectiva foi desenvolvida por Yuk Hui, no seu livro Tecnodiversidade, no qual o autor tenta “[...] levar diferentes ontologias em diferentes culturas a sério" (HUI, 2020, p. 33), contrapondo-se à modernidade, a qual, segundo ele, poderia ser compreendida como um “naturalismo”, ou seja, uma contraposição entre cultura e natureza – a tecnodiversidade propõe precisamente o contrário.
Uma das suas bases teóricas para realizar tal tarefa seriam “[...] muitos antropólogos associados com a virada ontológica [que] voltaram suas atenções para a questão da natureza e da política do não-humano (em linhas gerais, animais, plantas, minerais, os espíritos e os mortos)”, entre os quais está, por exemplo, Viveiros de Castro (HUI, 2020, p. 34). Em poucas palavras, trata-se de pensar a unificação do cosmos e da moral, por meio das atividades técnicas, sejam elas da criação de produtos ou de obras de arte; é por isso que Hui afirma, com veemência: “[...] creio que seja difícil, senão impossível, que a modernidade seja superada sem que se enfrente de maneira direta a questão da tecnologia” (HUI, 2020, p. 38), e isso pode ser feito com uma reavaliação do conceito de cosmopolítica em relação a cosmotécnica.
O que Hui propõe, nesse caso, é acordar as possibilidades adormecidas através de uma investigação sobre a tecnodiversidade capaz de rearticular a questão da tecnologia e os dados antropológicos. Para isso, “[...] precisaremos redescobrir uma multiplicidade de cosmotécnicas e reconstruir suas histórias para projetarmos no Antropoceno as possibilidades que nelas estão adormecidas.” (HUI, 2020, p. 15). A isso precisamente poderíamos chamar de um projeto de decolonização da tecnologia:
Como o pensamento não-europeu e o não-moderno poderiam responder a esta época tecnológica senão com uma pelo retorno à natureza? Com o meu conhecimento limitado sobre América Latina, minha esperança que este trabalho desperte uma curiosidade que leve a perguntas como: o que significa uma cosmotécnica amazônica, inca, Maia? E, para além de formas de arte e de artesanato indígenas a serem preservadas, como essas cosmotécnicas poderiam nos inspirar a recontextualizar a tecnologia moderna? (HUI, 2020, p. 18).
Tudo isso passaria por uma tentativa intencional de fragmentar o mundo – uma estratégia contrária, portanto, ao que propôs a modernidade:
Talvez devêssemos atribuir ao pensamento a tarefa oposta àquela que lhe é oferecido pela filosofia iluminista: fragmentar o mundo de acordo com o diferente, em vez de universalizá-lo através do mesmo; induzir o mesmo através do diferente, em vez de deduzir o diferente a partir do mesmo. (HUI, 2020, p. 72).
Ora, isso passaria, necessariamente, pelo reconhecimento das várias tecnologias, formadoras de diferentes cosmotécnicas. Em algum sentido, isso significa fazer uma crítica à tecnologia branca e à atitude embranquecedora da tecnologia, o que exige identificar “[...] os erros decisivos das populações brancas” (HUI, 2020, p. 77) que fizeram das tecnologias militares e náuticas uma forma de colonização do mundo, pela via do Iluminismo. Em outras palavras, seria preciso superar esse tipo de tecnologia que “[...] adquire e até mesmo executa o pensamento iluminista.” (HUI, 2020, p. 81).
Por isso, para Hui, “[...] se quisermos reagir às perspectivas de auto-extensão global, precisaremos retornar a um discurso cuidadosamente elaborado sobre localidades e a posição que humano ocupa no cosmos.” (HUI, 2020, p. 89). E isso não significa retornar ao nacionalismo, ao essencialismo cultural e ao etnofuturismo, mas aos outros saberes, aos diferentes modos de conhecimento e às várias formas de estabelecer relação com o mundo e com a terra, os quais, muitas vezes, escapam das lentas das ciências e mesmo da tecnologia moderna, permanecendo como terrenos desconhecidos, como perspectivas adormecidas que precisariam ser acordadas.
Referências
CRUZ, Cristiano Cordeiro. Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 61-84, 2023.
HUI, Yuk. Tecnodiversidade. Tradução de Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu, 2020.
Recebido: 02/02/2023
Aceito: 09/02/2023
[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. Pesquisador do CNPq; atual coordenador do GT de Filosofia da Tecnologia e da Técnica, da ANPOF. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2362-0494. E-mail: jelson.oliveira2012@gmail.com.