MULTINATURALISMO E TEORIA DA EXPRESSÃO

 

Maurício Fernando Pitta[1]

 

Resumo: Partindo da caracterização da obra de Baruch de Spinoza como “teoria da expressão” e da influência que a filosofia de Gilles Deleuze exerce sobre o perspectivismo multinaturalista, especula-se aqui sobre a possibilidade de uma teoria da expressão para o multinaturalismo. Serão feitas primeiramente algumas considerações deleuzianas sobre a ontologia spinozana para, em seguida, articular a influência de Deleuze sobre o modo como a antropologia multinaturalista dialoga com mitologias e cosmologias indígenas. Por fim, apoiando-se sobre descrições da cosmologia yanomami articuladas por Davi Kopenawa e Bruce Albert, em A queda do céu, e em provocações de certos autores, como Jean-Christophe Goddard e Fabián Ludueña, será buscada, nos problemas dos sonhos, das imagens e dos espectros, uma via possível para a futura elaboração de uma teoria multinaturalista da expressão.

 

Palavras-chave: Pensamento indígena. Perspectivismo. Spinoza. Univocidade. Yanomami.

 

Las manos y el espacio de jacinto

que palidece em el confín del Ghetto

casi no existen para el hombre quieto

que está soñando un claro laberinto.

Jorge L. Borges, “Spinoza”, El otro, el mismo (2017)

 

Introdução

Este artigo, a modo de ponto inicial de uma pesquisa maior, almeja levantar questões preparatórias acerca das condições de possibilidade de uma teoria da expressão, no contexto da teoria antropológica do perspectivismo multinaturalista ameríndio, conforme elaborada por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima. Tomamos o conceito de “expressão” no sentido conferido por Gilles Deleuze, em Espinosa e o problema da expressão (2017), texto no qual o filósofo compreende a palavra em termos topológicos: expressar é dobrar e desdobrar algo, involucrar uma multiplicidade em uma unidade que a abarque (“envolver”, “implicar”) ou exteriorizar o múltiplo contido no uno (“desenvolver”, “explicar”).[2] Tal conceituação topológica é importante aqui, em vista tanto de sua relação intrínseca com a noção de “imanência” (em contraposição à “transcendência” própria de ontologias dualistas), já que a não separação entre multiplicidade e unidade, entre o desdobramento e a dobra, é inerente à noção de expressão, quanto com relação ao funcionamento topológico próprio do perspectivismo multinaturalista, o qual pressupõe a imanência como campo de interação entre perspectivas.

O multinaturalismo, fruto do entrecruzamento de práticas etnológicas de viés majoritariamente estruturalista e do pensamento cosmológico e contra-antropológico de povos indígenas das terras baixas da América do Sul, recebe decisiva influência de filósofos franceses pós-1968 e, em especial, de Deleuze, para quem a obra de Baruch de Spinoza[3], caracterizada pela categoria da expressão, é um importante, embora não único, marco teórico.[4] No entanto, a teoria spinozana da expressão, rearticulada pela filosofia deleuziana, enfrenta desafios, quando disposta ao lado de cosmologias indígenas, como a yanomami, descrita pelo xamã Davi Kopenawa, em diálogo com Bruce Albert, em A queda do céu (2015), sobretudo em vista da presença de imagens, espectros e sonhos. Ademais, a preponderância das noções de equivocidade e disjunção como operadores fundamentais da dinâmica do perspectivismo multinaturalista termina por conflitar com o conceito de univocidade do ser, “âmago do pensamento de Deleuze”, segundo Alain Badiou (1997, p. 34).

Seria possível articular uma teoria da expressão equívoca que levasse em conta a dimensão dos espectros disjuntos da cosmologia yanomami, expressos em sua mitologia? Como precisar os impactos do pensamento ameríndio sobre pressupostos deleuzianos importantes para o perspectivismo multinaturalista? Seria necessário abdicar da univocidade do ser, mesmo em sua conceituação mais sofisticada (o “plano de imanência”), em função da equivocidade multinaturalista, ou as duas dimensões, a disjunção absoluta do domínio mítico-espectral e a univocidade ontológica, podem conviver e se superpor, quando vistas pelo prisma de cosmologias como a dos Yanomami?

Para lidar com essas questões, a primeira parte deste artigo visa, seguindo a leitura de Deleuze (2017), a reconstruir alguns dos principais elementos da teoria da expressão spinozista, para então aportar nas transformações da expressão e da univocidade, no contexto da filosofia deleuziana, com base na exposição feita pelo filósofo sobre os três “momentos do unívoco” (2018a, p. 66-69). Na segunda parte, buscaremos expor alguns pontos de proximidade e afastamento entre a teoria da expressão spinoza-deleuziana e o multinaturalismo perspectivista, a partir de um breve resumo sobre o mecanismo conceitual do perspectivismo ameríndio, de modo a demonstrar como alguns pressupostos da filosofia da imanência de Deleuze entram em conflito com as exigências de disjunção e equivocidade presentes em cosmologias ameríndias, como a dos Yanomami.[5] Na terceira e última parte, dissertaremos, de maneira meramente aproximativa, sobre as fraturas que os problemas do sonho e do espectro explicitam, no naturalismo spinoza-deleuziano, de forma a abrir vias para a articulação de uma teoria multinaturalista da expressão, em pesquisas futuras.[6]

 

1 Univocidade e expressão em Deleuze

Ao afirmar que Spinoza foi o primeiro a “[...] a não ter aceitado nenhum compromisso com a transcendência”, Deleuze e Guattari atribuíram ao filósofo sefardita o epíteto de “príncipe dos filósofos” (2010, p. 60). Os autores rearticulam os dois principais conceitos de Spinoza — o da substância absolutamente infinita, em si e por si, e o dos modos que modificam a substância na singularidade —  no que eles chamam de “plano de imanência e de univocidade” (1980, p. 326), plano pré-filosófico de virtualidades que condiciona a emergência do conceito e do conceituado, do sujeito e do objeto, do olhar e do olhado, sem se confundir com eles. Em seu último texto escrito em vida, Deleuze chega a dizer que a ideia de plano de imanência termina por “[...] reintroduz[ir] o espinosismo no mais profundo da operação filosófica” (2016, p. 409).

Em termos que Deleuze já introduzira, em 1968, quando da publicação de Espinosa e o problema da expressão, o plano de imanência pode ser pensado como o lado “complicado” da dinâmica de expressão, algo até certo ponto análogo ao conceito spinozano da substância absolutamente infinita, ou melhor, da “essência” ou “potência” da substância, não fosse o fato de que tal contínuo de intensidades, segundo François Zourabichvili, é antes um “plano modal” (2017, p. 419), sobre o qual as essências dos modos finitos, graus intensivos dessa Potência, se afetam e se modulam mutuamente. É nesse plano de diferenças intensivas que se encontra todo o rendimento da teoria da expressão deleuziana: o plano de imanência, enquanto contínuo de Potência, exprime a “complicação” inerente à Natureza unitária e infinita (a qual, em Spinoza, se amalgamava no conceito de “substância”), e, através de seus atributos qualitativos, é ao mesmo tempo expresso na “explicação” da multiplicidade inumerável de modos finitos, perspectivas em choque que se diferenciam, enquanto graus intensivos, na medida em que guardam em comum a expressão de uma mesma potência, um mesmo sentido.

Antes de mais, é preciso compreender que a filosofia da Natureza, em Spinoza, se concentrava na díade substância–modo. Nela, a Natureza, que, para o filósofo, era intercambiável com “Deus” (Deus sive Natura — “Deus, isto é, a Natureza”), possuía um sentido ativo, naturans, como “[...] aquilo que é em si e é concebido por si”, e outro passivo, naturata, como “[...] tudo aquilo que se segue da necessidade da natureza de Deus” (Spinoza, 2018, p. 97, E1P29S1)[7]. O que articulava essa díade e garantia seu caráter prioritariamente unívoco, em contraposição ao caráter equívoco e eminente ou analógico do par Criador–criatura, era o eixo do atributo, forma, nome ou expressão de Deus. O ser se diz no mesmo sentido de Deus, substância única que se expressa continuamente, e dos modos, os quais formam uma série causal expressa por cada um dos atributos, numa univocidade ontológica que sintetiza a multiplicidade formal de infinitos atributos.

De acordo com Deleuze (2017), temos em Spinoza duas tríades ou relações principais da expressão, cada qual composta de três termos que refletem, respectivamente, as Naturae naturans e naturata: (I) a tríade da substância e (II) a tríade do atributo. Em I, a substância se expressa em uma infinidade de atributos, que expressam a substância de maneira definida, conforme uma qualidade ou essência específica (“pensamento”, “extensão”…), dando à substância um sentido definido. Em II, cada atributo se expressa em um encadeamento causal numericamente infinito de modos, cada qual expressando uma modificação específica da essência da substância, conforme expressa pelo respectivo atributo. Exprimente, expressão e exprimido: estes são os três momentos de cada tríade, duplicados na expressão original naturante e na re-expressão naturada.

São também três os principais termos expressivos em jogo na relação entre substância, atributos e modos: a complicatio, a explicatio e a implicatio — todos, termos topológicos relativos ao verbo plicare, “dobrar”, tão antigos quanto a tradição platônica (Deleuze, 2017). A substância é uma “complicação” ou “co-implicação” que “[...] traz o múltiplo na origem” (Zourabichvili, 2009, p. 30), as dobras a serem expressas entremeadas na forma indiscernível da substância única. Os atributos, por sua vez, “explicam” o endobramento da substância, discernindo suas dobras segundo certa qualidade, certa forma (“pensamento”, “extensão”…), mas eles também “implicam” os modos singulares da substância que a explicam, do infinito (imediato e mediato) ao finito — e, da explicação, o movimento retrocede implicativamente à substância, sempre e a cada vez, em simultaneidade. A expressão, que encontra no atributo seu locus, se desenvolve em um meio de pura imanência e pura univocidade, no qual “[...] é o mesmo ser, ao qual as coisas estão presentes, que está presente nas coisas” (Deleuze, 2017, p. 194). Pela mediação do atributo, a Natureza se expressa em todos os modos possíveis, de forma imediata, sem qualquer distância analógica entre substância e modos. Esse esquema é fundamental para Deleuze: com a teoria da expressão unívoca de Spinoza, o filósofo francês encontra a afirmação completa da multiplicidade na imanência, potência da filosofia sempre buscada, a despeito de seus desvios transcendentes.

Paradoxalmente, é a unidade que dá suporte à multiplicidade: é preciso que a diferença se afirme, tendo como ponto de ancoragem a repetição, embora o movimento seja sempre o de repetição da diferenciação intensiva, de multiplicação reiterada de graus possíveis de potência.  Nesse sentido, ainda que Spinoza seja o arauto da imanência, sua teoria é, para Deleuze, insuficiente: “[...] subsiste ainda uma indiferença entre a substância e os modos: a substância espinosista aparece independente dos modos, e os modos dependem da substância, mas como de outra coisa. Seria preciso que a própria substância fosse dita dos modos e somente dos modos” (Deleuze, 2018a, p. 68, grifo nosso). Por isso, Spinoza se encontra a meio caminho entre uma ideia de univocidade do ser indiferente tanto ao Uno quanto ao múltiplo, e uma ontologia do “ser universal do devir” (2018b, p. 93) que submete o Uno ao fluxo da phúsis.

No primeiro caso, primeiro “momento do unívoco”, teríamos Duns Scotus, quem, a fim de manter a condenação cristã do panteísmo e evitar as armadilhas da teoria analógica de Deus, termina por neutralizar o ser em um conceito abstrato, alheio tanto à unidade da substância divina quanto à multiplicidade do devir. Apesar disso, para Deleuze, não só Scotus “[...] pensou o ser unívoco”, como também “[...] soube definir dois tipos de distinção que reportavam à diferença este ser neutro indiferente” (2018a, p. 66), a saber, distinções formal e modal, conceitos que, na obra spinozana, adquirem papel central nos dois tipos de multiplicidade em jogo na expressão: formal ou real entre atributos e modal ou numérica entre os modos de dado atributo.  

Já no segundo caso, Deleuze reencontra Nietzsche. Com a morte de Deus, Nietzsche procede a uma “[...] subversão categórica mais geral, segundo a qual o ser se diz do devir, a identidade se diz do diferente, o uno se diz do múltiplo etc.” (Deleuze, 2018a, p. 68), fornecendo condições para se pensar a imanência como tal: nos elementos da diferença e do devir. O “eterno retorno” é o conceito operatório, aqui, explicitando a mútua dependência de diferença e repetição, ser e devir, síntese necessária para garantir a consistência ontológica da diferença na efetuação das distinções singulares e sua contraefetuação, no “[...] acontecimento puro que comunica com todos os outros e se volta sobre si mesmo através de todos os outros, com todos os outros” (Deleuze, 2015, p. 184). Se, por um lado, Spinoza mantinha o devir e suas transformações subordinadas à unidade autoidêntica da substância, deixando cada modo finito no ímpeto de seu próprio conatus, Nietzsche, por sua vez, explicita, com a teoria do eterno retorno, “[...] o ser comum de todas as metamorfoses, a medida e o ser comum de tudo o que é extremo, de todos os graus de potência na medida em que são realizados” (Deleuze, 2018a, p. 69, grifos nossos).

Ao menos no plano da teoria, a última metamorfose do unívoco poderia ser observada não em Nietzsche, mas com o próprio Deleuze — quem, para Fabián Ludueña, produziu “[...] uma das metafísicas mais sofisticadas do século XX” (Deleuze, 2018, p. 192). Com a noção de plano de imanência, o projeto de “dessubstancialização” da univocidade promovido com o eterno retorno nietzschiano chega a seu cume. Se a permanência da substância e sua “preeminência” em relação aos modos (ainda que não “eminente” stricto sensu) era problemática, em Spinoza, não o era em vista de uma simples defesa acrítica do devir, por parte de Deleuze, mas porque implicava sua preexistência “[...] como sujeito ou causa primeira, como argumento da expressão” ou “[...] sujeito do devir, o autodesignado último e exclusivo da expressão” (Zourabichvili, 2017, p. 417). Trata-se do mesmo problema do conceito de sub species æternitatis, “do ponto de vista da eternidade”, lema da beatitudo spinozana, terceiro e mais elevado gênero de conhecimento e ensinamento final da Ética: a primordialidade da substância em relação aos modos finitos exige, no fim, o ponto de vista da eternidade, isto é, o ponto de vista da substância.

No entanto, ao evocar a dimensão experimental do pensamento, a própria teoria das “noções comuns”, segundo gênero de conhecimento em Spinoza, resgata, para Deleuze, a necessidade de se pensar “[...] do ponto de vista do que somos” (Zourabichvili, 2017, p. 418) — modos singulares que se cruzam, afetam-se e, com isso, modificam-se mútua e continuamente. Antes do terceiro gênero de conhecimento, é preciso que haja um encontro entre ao menos dois modos, para que o intelecto finito perceba uma primeira ideia adequada, isto é, uma conveniência comum entre o corpo do eu e o corpo do outro. A aposta na experimentação lança luz sobre uma dimensão fundamental e orientadora do próprio plano, a suplantar a supremacia da substância: trata-se do “[...] plano modal, plano dito de consistência ou de imanência” (Zourabichvili, 2017, p. 419), entendido como contínuo de Potência e complicação indiscernível de todos os encontros entre corpos — análogo, aqui, do “espaço interperspectivista” nietzschiano (Marques, 2003, p. 194). No limite, com a morte de Deus, restaria, para Deleuze, só a segunda parte da fórmula Deus sive Natura, estrato que se confundiria com o plano modal de imanência, enquanto simples liame que unifica e dá consistência ao dinamismo do devir, reduzindo a “espessura ontológica” da substância à “[...] simples realidade abstrata ou virtual de um plano (como se diria de um ângulo de vista ou de uma perspectiva) […] como uma superfície intensiva onde se distribuem singularidades” (Zourabichvili, 2017, p. 420).

Foi preciso, por um lado, que se retirasse a univocidade da indiferença scotiana, insuficiente para aceder tanto ao absoluto quanto ao singular, a fim de que tão logo se pudesse escapar ao peso excessivo que Spinoza atribuía à substância em relação aos modos, guardando um resquício de eminência. Também foi preciso, por outro, salientar a univocidade quase oculta do eterno retorno nietzschiano, na consideração de uma verdadeira fronteira abstrata e “transcendental” que garantisse a estabilidade, a organização e mesmo a comunicabilidade dos devires e das diferenciações, sem que, com isso, o devir se perdesse “[...] na explosão de termos esparsos, indiferentes e transcendentes uns aos outros” (Zourabichvili, 2009, p. 109), ameaçando o retorno da criação eminente — mesmo que, agora, acentrada.

Por consequência, o quarto momento do unívoco, “momento deleuziano”, não seria ainda aquele da afirmação absoluta da disjunção após a morte da Substância, mas sim o da “síntese disjuntiva”, síntese do devir absoluto que ainda demanda a univocidade como garantia da diferença, dado que “[...] a coisa, reportada ao plano originário ou ‘transcendental’ da síntese disjuntiva, só existe como singularidade ou ponto de vista [desde que] englobando uma infinidade de outros pontos de vista” (Zourabichvili, 2009, p. 109). O que Deleuze parece sugerir, enfim, é que a permanência da univocidade como horizonte condicional sobre o qual os corpos ou perspectivas podem se encontrar, articulada no conceito de “síntese disjuntiva”, é ainda condição necessária para assegurar o funcionamento da expressão de maneira verdadeiramente perspectiva.

Se Spinoza, com Descartes e Leibniz, se afasta dos teólogos e se, contra Descartes, tenta se livrar dos últimos fantasmas da equivocidade entre Deus e a criatura, é porque o filósofo sefardita já se coloca, se seguirmos Deleuze, na direção do próprio niilismo ativo característico do perspectivismo nietzschiano: de Deus à Natura naturans e dela, à naturata como verdadeiro plano perspectivista. Contudo, é nesse mesmo horizonte aberto por Spinoza que a própria possibilidade de equivocação não mais transcendente, mas imanente, se vê restrita a operar apenas sob o umbral ainda insistente da univocidade — umbral que Deleuze não pretende cruzar.

 

2 Deleuze e o multinaturalismo: influxos e tensões

Amparado no pressuposto básico de que, no pensamento de vários povos indígenas das terras baixas da América do Sul, o Grande Divisor naturalista entre natureza e cultura não só se inverte, como se complica, o multinaturalismo assume para si o pressuposto básico do plano modal deleuziano: o lema “muitas naturezas”, identificado normalmente com “muitos corpos”, é similar à ideia de um contínuo modal constituído por diferenças intensivas de graus de potência, cuja base unívoca (a Potência e, em especial, a potência de pensar) se aproxima da ideia de “cultura única”, “humanidade de fundo” do perspectivismo — compreendendo-se “cultura”, aqui, como estrutura intencional e subjetiva, e “humano”, como condição ou posição em uma hierarquia de perspectivas, posição que pode ser virtualmente assumida por qualquer espécie, na dinâmica de predação das cosmologias indígenas.

Abarcando dois planos distintos, um, animista ou mítico-cosmológico, e outro, perspectivista ou ontológico, é possível traçar uma analogia entre o multinaturalismo e a relação entre plano modal e modos singulares. Da mesma forma como a substância, em Spinoza, tem seus atributos realmente distintos, dos quais apenas dois são conhecidos pelo ser humano — o pensamento e a extensão —, o plano mítico também é pensado, segundo Viveiros de Castro, como uma “complicação infinita” que “[...] se bifurca ou se explica […] na invisibilidade (as almas humanas e os espíritos animais) e na opacidade (o corpo humano e as ‘roupas’ somáticas animais)” (2006, p. 323, grifos nossos).

O caso, porém, não é tão simples. Se há, por um lado, vários influxos spinoza-deleuzianos no multinaturalismo, este se produz também (e principalmente) através da prática etnográfica e, portanto, da intersecção entre a invenção–convenção do antropólogo e a invenção–convenção do nativo (Viveiros de Castro, 2015). Se o multinaturalismo tem uma face marcadamente spinozana (ainda que a modo Deleuze), ele também possui uma face distinta que contraefetua a primeira e se produz pela contranarrativa de povos indígenas. Assim, se parece haver multiplicidades modal e formal sobre uma unidade ontológica, o multinaturalismo admite igualmente uma pluralidade verdadeiramente ontológica: há tantos mundos quanto corpos, tantas Naturezas ou planos quanto modos singulares em atributos paralelos. Além disso, a “cultura” ou “humanidade” de base também vacila, quando as próprias cosmologias ameríndias explicitam “complicações de complicações” — seres mitológicos que não são simplesmente humanos, mas humanos monstruosos (Valentim, 2018), ou humanos para xamãs humanos, mas ursos para xamãs-ursos (Goldman, 1975), fazendo a antropomorfia de fundo parecer mais uma “antropo-terio-dendromorfia, teratomorfismo generalizado” que um “humanismo universalizado” (Valentim, 2018, p. 64).

Mesmo diante de todas as tensões, a teoria da expressão parece implicitamente permear as leituras multinaturalistas do pensamento ameríndio. É o que indica, por exemplo, a interpretação de Viveiros de Castro sobre a cosmologia yanomami expressa por Kopenawa e Albert (2015). Por esse prisma, é possível ler a transição entre mito e cotidiano incorporada pelo xamã como uma implicação no plano mítico e uma explicação do estado mítico do cosmos para a comunidade atual. Em seu relato, Kopenawa dá mostras de que alguns dos personagens principais da mitologia yanomami parecem compor uma dinâmica expressiva desse tipo. Por um lado, os ancestrais “humanimais” yarori pë (Albert; Kopenawa, 2023, p. 133) são como o próprio mito: postados como “ancestrais originários”, são sempre “originantes”; estão a todo momento reverberando na atualidade, expressos em duplos e duplos de duplos. São “humanimais”, porque essencialmente monstruosos; mas também são espectrais, “espírito-espectro” (Valentim, 2018, p. 233), modulados diferencialmente a depender do ponto de vista (e, portanto, da dinâmica entre corpos que eles mesmos também são): “[...] espectros são como espíritos veem outros (humanos, por exemplo); espíritos são como espectros (não) veem outros (animais, por exemplo); mas, sobretudo, espectros podem ser espíritos para outros (humanos ou animais)” (Valentim, 2018, p. 234). Há, pois, uma triangulação complexa envolvida na forma como os próprios ancestrais se expressam: os yarori pë possuem suas “imagens” utupa pë, expressas em “espíritos” xamânicos (xapiri pë) e nas “peles” (sikɨ pë) das espécies atuais, em posições alternadas de presa e predador, todos em contínua reverberação, no seio de cada existente atual.

Assim, o que o xamã vê são “imagens” (utupa pë), mas imagens de um tipo paradoxal. Não são reflexos falsos decalcados de um modelo-essência, como as imagens falsas dos poetas criticados por Platão, cópias de cópias que participam, de maneira imperfeita, de uma mesma Forma originária. Antes, as utupa pë compõem o “[...] ‘potencial de alteração’ pelo qual sujeitos (humanos, por exemplo) se formam sob a perspectiva de outros sujeitos radicalmente diferentes (extra-humanos)” (Valentim, 2018, p. 220). O xamã entra num verdadeiro “campo imaginal”, no qual as imagens não se apresentam como representações visíveis, mas como condições da própria visualidade, “[...] imagens através das quais vemos outras imagens” (Viveiros de Castro, 2006, p. 325). São, por isso, a própria condição de constituição de um ponto de vista. Essas imagens “transcendentais” são expressas por via do e ao próprio xamã, como a face externa de um corpo — espíritos xapiri pë, invisíveis a olhos comuns, como a noção ocidental de “espírito” interior, entretanto, exteriorizadas e tornadas corpo ao corpo do xamã. Já enquanto “[...] fonte do animatio corporis e da energia vital” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 669) e “[...] núcleo anímico da pessoa” (Valentim, 2018, p. 228), as utupa pë constituem a própria interioridade da pessoa, animal ou humana, xamã ou não. Por outro lado, a “carcaça” sikɨ a dos ancestrais yarori pë se expressa para pessoas comuns, ocultando a pessoalidade das espécies, sob o aspecto de mera caça animal ou de predadores e espíritos monstruosos.

Para Viveiros de Castro, a noção de xapiri pë, “[...] que traduzimos por ‘espírito’”, reflete algo da ordem da “[...] multiplicidade virtual intensiva” (2006, p. 321) que caracteriza o plano de imanência deleuziano. Como visto, a descrição de Kopenawa contém relações expressivas, já que os xapiri pë são imagens dos animais de caça da floresta, suas expressões imagéticas, mas também expressões xamânicas das imagens dos yarori pë. Em outras palavras, uma mesma utupë é condição da expressão e, simultaneamente, é ela mesma uma multiplicidade de expressões, observáveis a partir de uma modulação corporal-xamânica, que lhe permite ver frequências invisíveis em situações normais.

No entanto, essas relações expressivas, embora presentes, explicitam a necessidade do equívoco na dinâmica do multinaturalismo. Vejamos, por exemplo, o relato que Kopenawa apresenta a Albert sobre uma de suas viagens à terra dos brancos, no qual um espelho serve de estopim para uma reflexão sobre o estatuto ontológico dos espíritos xamânicos:

[…] quando se diz o nome de um xapiri, não é apenas um espírito que se nomeia, é uma multidão de imagens semelhantes. Cada nome é único, mas os xapiri que designa são sem número. São como imagens dos espelhos que vi em um dos hotéis onde dormi na cidade. Eu estava sozinho diante deles mas, ao mesmo tempo, tinha muitas imagens idênticas espalhadas neles. Assim, há um só nome para a imagem da anta xama enquanto xapiri, mas existem muitíssimos espíritos que chamamos de xamari pë. É assim com todos os xapiri. Há quem pense que cada um é único, mas suas imagens sempre são muito numerosas. Apenas seus nomes não o são. São como eu, de pé diante dos espelhos do hotel. Parecem únicos, mas suas imagens se justapõem ao longe sem fim. (Kopenawa; Albert, 2015, p. 116-7, grifos nossos).

 

Aqui, a dinâmica expressiva se complica: ao invés de uma substância única com infinitos atributos (“nomes”), como o Deus judaico que inspirou o Deus spinozano (Beltran, 2016), trata-se de infinitas imagens com um só nome, uma só expressão ou atributo xapiri a explicado através do xamã, em “[...] uma espécie de nominalismo exorbitante, que submete a unidade do nome à multiplicidade da imagem” (Valentim, 2018, p. 224, grifos nossos). Tudo se passa como se o exórdio de Paulo, em I Coríntios 13:12, sobre o Amor de Deus, o qual eliminaria todo o mistério do equívoco que, na criação, se mostra “por espelhos, em enigma”, perdesse a resolução divina que, “face a face”, sintetizaria os fragmentos do real, e os enigmas se multiplicassem ao infinito.

Ademais, é preciso considerar que, se cada existente é não só um corpo modal, mas também uma “substância” ou um “mundo” constituído por duplos, atributos real ou qualitativamente distintos — núcleo imagético, núcleo nominal, núcleo animal etc. (Leite, 2010) —, deve haver, para precisar a analogia com a ontologia spinozana pervertida por Deleuze, não só mais de uma substância/Natureza, o que é uma heresia a Spinoza, mas também uma relação entre substâncias/naturezas, sendo que o atributo de uma (p. ex. o pensamento) “vê” na outra, por uma torção perspectivista, o atributo que não vê em si mesma (p. ex. a extensão): [...] se os salmões parecem aos salmões o que os humanos parecem aos humanos” — isto é, se seu atributo “pensamento” expressa a essência da “substância” do salmão como pensamento —, “[...] os salmões não parecem humanos aos humanos, nem os humanos aos salmões” (Viveiros de Castro, 2002, p. 376) — ou seja, o salmão re-expressa a essência expressa pelo atributo “extensão” ao pensamento humano, bem como a recíproca.

Afirmar o equívoco contra a univocidade — eis o desafio de uma teoria da expressão, para o multinaturalismo. Seria preciso, contudo, dar um passo atrás na analogia imperfeita que se pode estabelecer entre o multinaturalismo e a teoria da imanência spinoza-deleuziana: é necessário buscar as condições para se afirmar, no multinaturalismo, a equivocidade como pressuposto de uma univocidade relativa e investigar a possibilidade de uma teoria da expressão equívoca que não se confunda com um expressionismo abstrato da eminência divina, como encontrado em Leibniz. Seria possível conceber e mesmo construir uma teoria da expressão imanente, mas baseada na ideia de equivocidade, ou ambos os conceitos compõem, desde o início, uma contradição insolúvel? Como pensar o multinaturalismo, de fato, para além da mera distinção intensiva entre corpos ou diferença extensiva entre seus componentes sem, contudo, obedecer ao axioma de uma univocidade oniabarcante que garanta a consistência dos devires?

 

3 Sonhos e espectros: o caso Espinosa

Em uma correspondência de julho de 1664 a Pieter Balling, amigo próximo de Spinoza e autor de um pequeno ensaio sobre o conhecimento de Deus, através da luz íntima da razão, o autor da Ética consola o amigo pela perda de seu filho, vitimado pela peste bubônica. Balling recordava ter ouvido gemidos de seu filho, já falecido, quando ainda estava saudável, e pensa ter tido um presságio de sua iminente morte. Para aplacar a tristeza do amigo, pressupondo, como é evidente pela Ética, IV-V, que o uso da razão é condição necessária para a devida organização dos afetos, Spinoza relata um sonho seu e, em seguida, fornece uma distinção entre dois tipos de imaginação, julgando, com isso, fornecer a Balling instrumentos para compreender o que se passou e em que sentido seu delírio era consequência natural de seu elo filial com o falecido:

Quando certa manhã, com o céu já luzente, acordei de um sonho pesadíssimo, as imagens que me ocorriam estavam tão vividamente diante dos olhos como se fossem coisas reais, sobretudo a de um certo brasileiro negro e sarnoso [nigri, et scabiosi Brasiliani], que nunca havia visto antes. Essa imagem desaparecia em sua maior parte quando, para me distrair com outra coisa, fixava os olhos em um livro ou em outro; porém, tão logo voltava a desviar os olhos de tal objeto, aparecia a mesma imagem do mesmo etíope com a mesma vividez, alternadamente, até que desaparecia paulatinamente pela cabeça. Digo que ocorreu no teu ouvido o mesmo que me ocorreu no sentido interno da visão. Mas porquanto a causa foi muito diversa, teu caso foi um presságio, e o meu não. (Spinoza, 2020, p. 218-9, grifos nossos).

 

“Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso” (Kafka, 2019, p. 28). Spinoza não se transformou no “brasileiro negro e sarnoso”, mas seu torpor com o incidente foi tamanho que, fosse um romance de Kafka, bem poderia ter sido esse o caso. Embora a causa de seu delírio visual lhe fosse pouco evidente, como também era pouco evidente, para Balling, a causa de sua alucinação auditiva, era pouco provável que, de fato, Spinoza jamais tivesse visto um homem negro (ou, nos termos correntes na Europa dessa época, um “etíope”). Como explica em nota Samuel Ferreira, tradutor da carta (Spinoza, 2020, p. 218, nota 6), circulavam nos Países Baixos escravos africanos traficados pelas Companhias das Índias Ocidentais, desde, pelo menos, 1603, vindos diretamente das costas da África e, posteriormente, de algumas colônias, incluindo partes do Brasil. Ademais, o adjetivo “sarnoso” ou “escabioso” (scabiosi) tinha relação direta com surtos de peste bubônica (ou “negra”, como era qualificada) ocorridos em Amsterdã, entre 1663 e 1664, trazida por navios mercantes e negreiros. As mesmas companhias investiram no negócio de captura, conversão e translação de pessoas indígenas — em especial, Potiguaras — para a própria Holanda, a fim de que servissem à invasão de Pernambuco entre 1630 e 1645 (Mello, 2021; Navarro, 2022).

A carta de Spinoza deixa entrever uma diferença crucial entre o estatuto gnosiológico da razão e o da imaginação, que, por sua vez, expressa também uma incompatibilidade clara com a própria teoria multinaturalista. Para o filósofo, a alucinação auditiva de Balling se segue do uso de sua razão: “[…] segue os vestígios do intelecto em todas as coisas, e concatena e conecta suas imagens e palavras umas com as outras, segundo uma ordem, assim como o intelecto com suas demonstrações” (Spinoza, 2020, p. 219). Assim, a razão intelectual, a qual reflete a série ordenada de cada um dos atributos de Deus, consegue estimular uma imaginação virtuosa, positiva, aquela que só seria levada ao erro se deixada a esmo, isto é, se carecesse “[...] da ideia que exclui a existência das coisas que imagina presentes a si” (Spinoza, 2018, p. 169, E2P17S1), mas que não estão de fato.

O luto de Balling, portanto, poderia ser uma espécie de “presságio racional”, ligado tanto à ordem causal das ideias no pensamento, servindo de esteio à imaginação, quanto à relação de amor filial que liga de maneira lógica pai e filho, como corpos que se convêm e que, por isso, formam um corpo de maior potência — Spinoza conjectura isso, na forma de uma hipótese, não de uma certeza. Já no sonho do filósofo sefardita, o que se tem é apenas “[...] a simples persistência retiniana, em estado de vigília, de uma imagem onírica, o efeito sobre a imaginação de uma alteraçãozinha besta do corpo, assim como a febre é causa de delírio” (Goddard, 2017, p. 20). A imaginação é, para Spinoza, faculdade da mente, mas reflete apenas os encontros extensivos passageiros entre corpos — principalmente entre corpos cuja conveniência depende de uma rede muito ampla de conexões, como na relação entre afins potenciais, caso paradigmático de encontro perspectivo, no multinaturalismo. Desses encontros, a mente retém uma imagem ilusória, vestígio no corpo que permanece, pela memória, quando a conexão corporal há muito se desfaz; talvez, um dos escravos negros que Spinoza pode ter visto, ou mesmo com quem pode ter se encontrado por acaso nos portos de Amsterdã, cuja retenção mnêmica pode ter sido tão forte a ponto de reaparecer, na forma de delírio, em Rijnsburg.

Aliada à razão, a imaginação pode ser útil, como no presságio de Balling, homem que imagina “tão firme e vivamente” o destino do filho, porque “[...] ama tanto seu filho que ele e seu dileto filho são como que um só e o mesmo” corpo, o que ocasiona em sua mente “[...] uma ideia das afecções do filho e das coisas que daí se seguem” (Spinoza, 2020, p. 219-20). Já o brasileiro negro sonhado por Spinoza é fruto de uma imaginação deixada a esmo, resultado de um mero desarranjo corporal, quando “[...] febres e outras alterações corpóreas são causa de delírios” (Spinoza, 2020, p. 219). O perturbador sonho do filósofo, o qual insiste em seu campo visual na forma intensa de um delírio psicoativo, talvez seja resultado de uma noite mal dormida, de uma dieta desequilibrada ou de um sintoma gripal — nada que Spinoza tivesse real e imediatamente diante de si; uma imaginação sem a ideia que exclui a existência do brasileiro negro, que se esvai logo, quando o filósofo fixa os olhos sobre um de seus livros de disputas escolásticas, antevendo a firme luz da razão contra a negritude da irrazão à qual alude Balling, em seus próprios escritos. Mas, como sugere Michael Rosenthal — interpretação que Ferreira, na nota que mencionamos acima, rejeita[8] —, pode ser que o sonho tenha sido uma reação inconsciente às matanças ocorridas nos barcos negreiros ou nas terras distantes de Pernambuco:

[…] Spinoza chegou à conclusão errada sobre seu próprio sonho. A causa imediata do sonho pode muito bem ter sido um delírio, mas o conteúdo do sonho — isto é, a imagem assustadora de um indígena colonial [colonial native] — não poderia ser explicada puramente por causas corporais, mas sim pela confusa consciência mental de Spinoza sobre o próprio empreendimento colonial (Rosenthal, 2005, p. 218).

 

Apesar do tom psicologista estranho, por exemplo, à leitura que Deleuze opera sobre Spinoza, essa hipótese não é de todo absurda, se considerarmos que, fazendo parte de uma família de comerciantes, o próprio filósofo já “[...] participou diretamente da ampla rede mercantil, administrando pessoalmente o que ainda restava dos negócios de importação e exportação do pai com Portugal, França, Brasil, Marrocos e as Ilhas Canárias” (Israel, 2018, p. 148). O brasileiro “etíope” de Spinoza seria, se seguirmos Rosenthal, um fantasma a assombrar o filósofo sefardita – menos “[...] um morto ou uma pessoa desaparecida” que “[...] uma figura social” (Gordon 1996, p. 8), índice da máquina de opressão colonial que transformou o negro em “[...] espectro da modernidade” (Mbembe, 2018, p. 229). Desse ponto de vista, o espectro do sonho seria “signo” do “[...] sítio onde a história e a subjetividade constroem a vida social” (Gordon, 1996, p. 8), fruto do próprio esforço de Spinoza em exorcizar seus fantasmas — seu Bento de Espinosa, duplo “marrano” que havia sido reprimido para que o filósofo pudesse entrar no “Panteão dos bibliógrafos com o nome de Benedictus de Spinoza” (Goddard, 2017, p. 19).

Afinal, Spinoza — ou Espinosa, o Bento canibal-hispânico — era descendente de judeus sefarditas, os quais, vivendo por séculos na Península Ibérica, foram finalmente forçados a se exilar para as Américas ou para os Países Baixos, por pressão da Santa Inquisição. Espinosa seria, assim, uma “[...] imagem interdita, recalcada, daquilo que o Grande Filósofo não é”, reflexo quiçá do homem negro que havia atacado Isaac, avô de Spinoza (Spinoza, 2020, p. 18, nota 6), cujo ataque pode ter permanecido nas memórias da família como “[...] a visão de si mesmo que assombra todo judeu em exílio através da interpelação do Outro, do gói que […], empurrando-o, intima-o, como ao pai de Freud, a deixar a calçada para retornar à lama imunda da sarjeta” (Goddard, 2017, p. 23).

Tomada do ponto de vista do multinaturalismo, contudo, essa interpretação psicologista não se sustenta, sobretudo se se considera a forma como ela reduz as imagens a phantasmata subjetivos.  Tampouco seria esse, como alude Antonio Negri, o “[...] problema do Caliban — que é o da força liberatória da imaginação natural” enquanto a “[...] mais alta abstração da meditação filosófica” (1993, p. 132). A imaginação, como pensada por Spinoza, só teria valor em face de sua subordinação ao intelecto, subordinação que, de fato, a enquadra no qualificativo “natural”. Antes, para o multinaturalismo, tratar-se-ia da possibilidade de uma imaginação para-natural, contranatural ou, propriamente, multinatural, se levarmos em conta o sonho de Spinoza, não como uma manifestação inconsciente ou um exorcismo psicológico, mas como a manifestação de um espectro real que, de fato, o acossa — algo que, do ponto de vista de povos como os Yanomami, por exemplo, não seria absurdo, mas muitíssimo provável, já que o sonho, para eles, é ponto de contato entre a utupë a do sonhador e diversos espectros sobrenaturais que habitam o cosmos.

Não à toa, de acordo com Goddard, mais alinhado com o multinaturalismo yanomami que com o psicologismo de Rosenthal, o duplo espinosano de Spinoza é propriamente seu duplo “canibal”, pois evidencia que a imaginação, enquanto equívoco, opera nos elementos do pensamento ameríndio — “[…] movimentos de captura, depredação, relação de simbiose e conexões transversais entre heterogêneos” (Goddard, 2016, p. 208) —, em contraste frontal com a reta imaginação natural de Balling, a qual funciona através da filiação pai-filho e da subordinação conceito-imagem. Se a imaginação, para Spinoza, se equivoca, é por conectar planos que só se podem fazer comunicar por um trabalho que ultrapassa os limites do intelecto, porque ultrapassa os limites da Natureza.[9]

Aquilo que é denegado por Spinoza seria, no fim, a mesma “condição natural” partilhada com Thomas Hobbes, que distorce as comunidades do continente americano como exemplares do estado pré-civil e primitivo do homem. Essa condição está totalmente atrelada ao estatuto vicioso da imaginação sem a Potência intelectiva de Deus: “Espinosa não nega a socialidade lupina que Hobbes pressupõe”, amparada em uma ficção sobre os selvagens “canibais” das Américas, “[...] mas mostra que ela é produzida através dos mecanismos comparativos e mortais da imaginação” (Parris, 2018, p. 20). Ainda assim, subsiste Espinosa sob Spinoza; isso é o que, de certo modo, evidencia Deleuze, que extrai Bento das profundezas do pensamento spinozano, ao elevar o estatuto dos modos sobre o da substância e produzir sobre a ontologia spinozana uma verdadeira imagem do pensamento nova e própria — a do “rizoma”, signo da imanência.

Todavia, do ponto de vista do pensamento indígena, ainda é preciso questionar a univocidade do ser: não estaria o papel da imaginação subjugado ao intelecto, por conta da univocidade substância-atributo-modo ou entre plano de imanência e seus graus intensivos? Como compreender a equivocidade perspectiva entre um tipo de imaginação “natural” filial e outro tipo delirante, o qual traz à tona duplos inacessíveis pela razão e, por isso, considerados phantasmata irreais, mas que demonstram plena realidade plural, nas cosmologias xamânicas? De que forma tornar esse desencontro inteligível, senão evocando uma dimensão anterior de equivocidade perspectiva, em que a imaginação opera sob uma lógica inversa e eminentemente corporal, como condição da univocidade (relativa) da compreensão natural, na qual a imaginação precisa obedecer à hierarquia natural da razão?

Nesse ponto, a obra de Ludueña, com seu conceito de espectro, pode fornecer instrumentos para se pensar a relação entre teoria da expressão e equivocidade, no multinaturalismo — embora seja preciso cautela na aproximação entre multinaturalismo e a espectrologia do filósofo argentino. Em outras correspondências — dessa vez, com o jurista e amigo Hugo Boxel, trocadas em setembro de 1664 —, Spinoza é levado a expor sua opinião quanto à existência de “[...] aparições e espectros ou lêmures” (Spinoza; Boxel, 2016, p. 529), produzindo uma reflexão que, novamente, se ampara no estatuto ambíguo da imaginação: “[…] a ideia do espectro”, argumenta Ludueña, “[...] provém não do pensamento, mas da imaginação, do mesmo modo que as harpias, os grifos ou as hidras”, pertencendo ao “mundo onírico” como “um reino do ontologicamente irrelevante, das quimeras da imaginação humana que não participam da perfeição e da gravidade do ser” (2018, p. 17).

Do ponto de vista da correspondência a Balling, Spinoza parece insistir na mesma denegação de seu duplo espectral, de sorte que se poderia especular, em outra leitura um tanto psicologista de suas afirmações na epístola, que a experiência do sonho o havia atordoado em consonância com o contexto político-econômico e sanitário dos Países Baixos, à época, como também sugerem as correspondências entre Spinoza e Henry Oldenburg, contexto que reivindica ao pensamento do autor, diante dos fatos concretos do mundo ao redor, “[...] a validade da imaginação” (Negri, 1993, p. 135). Todavia, novamente, outro aspecto se apresenta nessa recusa: a impossibilidade do espectral (e, portanto, do sobrenatural) que não corrompa a pristina univocidade do ser. Para Ludueña, a univocidade, que garantia o mesmo sentido entre o pensamento da substância e o pensamento do modo finito, “[...] implicava a negação da existência de autonomia ontológica entre um e outro”, algo que torna “impossível uma existência independente objetivamente do espectro “[…] se este não pode ser remetido à infinitude do pensamento divino” (2018, p. 19). Nesse contexto, é possível retomar a dupla concepção de imaginação que Spinoza apresentara a Balling: a “potência de imaginar”, na qual se supõe, na discussão com Boxel, a capacidade de inteligir espectros, é uma “virtude de su natureza” (Spinoza, 2018, p. 169, E2P17S1), desde que não se vincule “[...] a imagens plenas, ou seja, não correspondentes a ‘imagens de coisas (rerum imagines)’ exteriores”, momento em que “os conteúdos imaginativos estão dissociados completamente da esfera do ser e, portanto, são evanescentes e potencialmente errôneos” (Ludueña, 2018, p. 20).

Em outras palavras, fora do circuito da univocidade do ser, que faz o sujeito pensante e os objetos inteligidos participarem da mesma complicação infinita da substância e que coloca essa mesma complicação como condição necessária da própria imaginação virtuosa, é impossível não apenas o conhecimento adequado, mas mesmo a existência de “entidades”, como os espectros ou outros existentes “sobrenaturais”, os quais escapam às dinâmicas mecânicas e potenciais do mundo natural racionalizável. Se Spinoza, como Leibniz, se afasta acertadamente da ansiedade cartesiana que impede uma teoria da expressão, agora, também como Leibniz, o filósofo sefardita retorna a Descartes, na recusa da imagem, do sonho e dos espectros.

 

Considerações finais

Em uma das proposições de Princípios de espectrologia, Ludueña afirma que “[...] o espectro é o horizonte que marca uma disjunção no Ser e advém como uma subsistência para-metafísica” (2018, p. 194, §1). Já de início, torna-se patente a associação entre a figura do espectro e a disjunção — conceito central que, para Deleuze, marca, junto à noção de “síntese”, o eixo que conecta a multiplicidade intensiva de perspectivas e o “[...] ser unívoco como a Diferença” (Zourabichvili, 2009, p. 105). Contudo, no caso de Ludueña, trata-se de outro tipo de disjunção: ao invés de “[...] um só fantasma para todos os vivos” (Deleuze, 2015, p. 185), é preciso já tratar o espectro no plano da disjunção, com qualquer síntese possível só ocorrendo na constituição posterior de um mundo ou de um corpo (isto é, de uma perspectiva, uma “natureza”), cuja unidade é sempre precária, porque constituída e atravessada pelo espectro disjunto. Logo, “[…] é necessário sublinhar”, enfatiza Ludueña, em referência direta à inter-relação entre síntese disjuntiva e univocidade do ser em Deleuze,

[...] que nosso conceito de disjunção tem enraizamento completamente diverso, uma vez que não autoriza nenhuma forma sintética (mesmo a que permite, em seu grau zero, apenas a afirmação da relação) que torne possível a indicação do Ser como “ontologicamente uno” e “formalmente diverso”. Nossa teoria da disjunção busca, precisamente, contradizer a ideia de que possa existir uma unidade ontológica contrabalanceada por uma diversidade formal (mesmo a que permitiria um empirismo transcendental) (Ludueña, 2018, p. 192).

 

Essa recusa à univocidade no espectro se associa diretamente a duas proposições principais e interdependentes, em Ludueña, as quais nos dão pistas sobre o problema da univocidade no multinaturalismo: (1) o mundo, o corpo e o sujeito são todos resultados precários ou “efeitos residuais” (Ludueña, 2018, p. 121) da agência sobrenatural, caso que faz, desses três conceitos, formas metaestáveis de resposta ao acosso do espectro, embora sua formação seja tão somente mobilizada pela própria intrusão espectral; (2) não só os singulares são membra disjecta ou disjunta, conforme assinala Deleuze (2015, p. 185), mas o próprio real é disjunto, apresentando-se na forma de uma “[...] multiplicidade marcada pela dispersão infinita das séries que assinalam, precisamente, as fissuras que habitam o real” (Ludueña, 2018, p. 191).

Não há, para Ludueña, um “[...] eventum tantum para todos os acontecimentos, forma extrema para todas as formas que permanecem disjuntas nela, mas que fazem repercutir e ramificar sua disjunção” (Deleuze, 2015, p. 185), como um lance de dados que unifica o acaso, complicando todos os arranjos possíveis e afirmando a unidade consistente ou o “ser” do devir. Admitindo-se a disjunção já no seio da própria noção de espectro, e admitindo-se que a própria expressividade do real só se condensa uma vez que ele tenha sido formado a partir dessa mesma disjuntividade, parece ser preciso admitir também que não há, em absoluto, uma síntese das diferenças que as complique numa unidade de sentido, um “plano de imanência”, e mesmo a univocidade relativa de dado plano fica ameaçada, exceto se pensada como metaestabilização temporária e regional da disjunção espectral: “[...] as estabilizações de sentido são possíveis, não obstante, como fenômenos de localização, mas não como propriedade ontológica daquilo que é para além do Ser” (Ludueña, 2018, p. 196).

As considerações de Ludueña a respeito das dificuldades da noção de univocidade não estão tão distantes, enfim, das cosmologias indígenas, com seus duplos e perspectivas metaestáveis, subordinadas a um fundo mitológico de espectros e imagens marcados intimamente por uma disjunção primária e expressos não pelo encadeamento geométrico acessível ao intelecto através causas próximas e filiais, porém, por saltos de afinidade, por relações heterogêneas e por metamorfoses radicais, acessíveis pelas fraturas no interior dos mitos, pelos sonhos delirantes da imaginação e pela psicotropia xamânica.[10] É preciso, portanto, levar a fundo a crítica que Ludueña empreende à “univocidade do ser”: para se falar realmente em multinaturalismo, seria preciso que ele viesse acompanhado de uma teoria multiversal, “multicosmológica” e não apenas “multiontológica”. Enquanto os corpos/mundos/perspectivas são múltiplos, também o próprio “plano de imanência” cósmico é múltiplo, plural e sem instâncias superiores unificadoras.

A cosmologia yanomami, por exemplo, não se reduz à hutukara, terra-floresta (urihi a) atual e antigo céu que caiu nos primeiros tempos, pois há também outros planos: o céu atual, o segundo céu, o plano ctônico onde vivem os seres aõpatari e o ser do caos, Xiwãripo etc. (Albert; Kopenawa, 2023). Cada plano constitui, por si só, um universo todo, como a terra-floresta, que, nos relatos xamânicos, se compõe de uma multiplicidade intensiva e expressiva. Ao mesmo tempo, os planos estão em comunicação contínua, todavia, de tipo diverso da comunicação modal entre perspectivas sobre um mesmo plano; trata-se de uma comunicação puramente disjuntiva, uma transversalidade do espectro que não forma sínteses, mas coligações provisórias e instáveis, e que demanda a colocação de outro estrato paracosmológico e para-ontológico de expressão, a atravessar e disjuntar tanto as perspectivas modais quanto os próprios planos de imanência. Basta remeter à forma pela qual os xapiri pë descem do céu aos espelhos da floresta ou como seres ctônicos, como Xiwãripo, estão a todo momento irrompendo e desarranjando os arranjos metaestáveis do cotidiano. O espectral não teria, assim, uma posição “emanativa”, pois estaria nos interstícios entre os cosmos, as perspectivas e seus duplos. O xamanismo, nessa chave de leitura, não faria apenas a comunicação entre corpos e a modulação de partes extensivas entre graus intensivos de potência, porém, operaria a comunicação entre vários cosmos e, por isso, entre planos distintos de complicação.

Teríamos, assim, dois momentos da expressão no multinaturalismo: um, relativo ou regional (entre perspectivas), e outro, absoluto ou geral (entre planos cosmológicos). A “sobrenatureza”, aqui, não seria apenas “[...] a forma do Outro como sujeito, implicando a objetivação do eu humano como um tu para este Outro”, conforme argumenta Viveiros de Castro (2002, p. 103); em um estrato prévio, seria um termo a ultrapassar o mero plano da Natureza unívoca, articulando mundos e planos cosmológicos e exigindo “[...] uma nova óptica não ontológica [sobre] o problema do que se costuma chamar de sobrenatural” (Ludueña, 2018, p. 203).

Enfim: de Deus sive Natura, passando pela morte de Deus e pela consolidação do plano de imanência, seria o momento de se perguntar, com pensadores como Kopenawa e Ludueña, se não seria o caso de uma teoria da expressão que tivesse como referência outra fórmula: Spectrum sive Supernatura — o espectro, isto é, a sobrenatureza, enquanto domínio disjunto prévio à consolidação de algo como uma “Natureza” ou um “mundo”. No entanto, sem uma unidade sintética, uma Potência una que complique toda expressão possível e permita comunicação involutiva, como pensar a expressão? Seria o caso de haver expressões em sentidos equívocos e unificações apenas relativas, mas nunca oniabarcantes? Ou seria o caso de abandonar a própria categoria da expressão, ao menos no âmbito mais mítico ou espectral do multinaturalismo, e buscar outros meios de compreender a relação entre planos cosmológicos e suas intensidades espectrais? Que tipo de teoria da expressão pode ser pensada, ao se reposicionar a equivocidade, a disjunção e fenômenos do imaginário, enquanto eixos de interpretação diante dos quais a síntese disjuntiva e a complicação unitária se apresentariam como efeitos secundários e provisórios de uma desarmonia absoluta?

 

MULTINATURALISM AND THEORY OF EXPRESSION

Abstract: Starting with the characterization of Baruch Spinoza’s work as a “theory of expression” and with the influence that Gilles Deleuze’s philosophy has on multinaturalist perspectivism, this article speculates on the possibility of a theory of expression for multinaturalism. First, one proceeds to raise some Deleuzian considerations on Spinozist ontology to articulate the influence Deleuze has on the manner in which multinaturalist anthropology dialogues with indigenous mythologies and cosmologies. At last, with the help of some descriptions of Yanomami cosmology, as articulated by Davi Kopenawa and Bruce Albert in The Falling Sky and of provocations raised by authors such as Jean-Christophe Goddard and Fabián Ludueña, this article will investigate the problems of dreams, images and specters a possible way to elaborate a multinaturalist theory of expression.

 

Keywords: Indigenous thought. Social Anthropology. Spinoza. Univocity. Yanomami.

 

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Recebido: 10/03/2023

Aceito: 25/04/2023

Publicado: 10/10/2023



[1] Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR – Brasil e pesquisador de pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR – Brasil, com financiamento CAPES/PDPG-POSDOC. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9642-4072. E-mail: mauriciopitta@hotmail.com / mauricio.pitta@uel.br.

[2] “Explicar é desenvolver. Envolver é implicar. Os dois termos, entretanto, não são contrários: indicam apenas dois aspectos da expressão. Por um lado, a expressão é uma explicação: desenvolvimento daquilo que se exprime, manifestação do uno no múltiplo (manifestação da substância nos seus atributos e, depois, dos atributos nos seus modos). Mas, por outro lado, a expressão múltipla envolve o Uno. O Uno permanece envolvido naquilo que o exprime, impresso naquilo que o desenvolve, imanente a tudo aquilo que o manifesta: nesse sentido, a expressão é um envolvimento” (Deleuze, 2017, p. 19).

[3] Optamos, no transcurso deste texto, por nos referir ao filósofo com a grafia latina “Spinoza”, em vista do contraste, sugerido por Jean-Christophe Goddard (2017), entre o Spinoza acadêmico-holandês e o Espinosa canibal-ibérico. No caso de títulos e citações, manteremos a grafia da versão utilizada.

[4] Diante do peso da influência deleuziana sobre o perspectivismo ameríndio, não lidaremos por ora com outras acepções do conceito spinozano de “expressão”, ainda que contrapontos sejam tão inevitáveis quanto frutíferos no prosseguimento da presente pesquisa — como a análise do conceito spinozano de imanência, feita por Marilena Chauí, no primeiro volume de seu A nervura do real (1999), sugestão muito bem-vinda de um dos pareceristas, a qual, em virtude das limitações em extensão da forma artigo (e do estado da atual investigação), infelizmente não pode compor o presente texto.

[5] Importante destacar que não se trata de um confrontamento direto entre Spinoza e o multinaturalismo, pois Deleuze é influência mais direta ao multinaturalismo. Ademais, os autores da história da filosofia deleuziana passam por um processo de “perversão” — como bem relembrou um dos pareceristas —, visto que, como afirma o filósofo, junto a Félix Guattari (2010, p. 37), “[...] não estamos nunca sobre o mesmo plano [de imanência]”, o que implica que todo conceito tem que se deslocar e se “transduzir”, quando incorporado a outra filosofia. Nesse sentido, vale resgatar o que Deleuze ressalta, em relação a seu método de perversão conceitual: “[…] minha principal maneira de me safar […] foi concebendo a história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso. […] que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer” (2013, p. 14-15). Assim, aqui e doravante, deve-se ler Spinoza (e mesmo Espinosa, no terceiro capítulo), em vista de Deleuze e das tensões que esse “outro” Spinoza (mais próximo de Guattari que do Spinoza original) constitui, na recepção multinaturalista do pensamento deleuziano.

[6] Um dos pareceristas deste artigo, a quem agradeço por este e outros apontamentos críticos, sintetizou de maneira muito eficaz esse intento em três fórmulas; cito-o: “‘O ser se diz de muitas formas’ – ‘Muitas formas podem ser ditas no ser’ – ‘Muitos seres podem ser ditos de uma só forma’”. A essa síntese, nós apenas acrescentaríamos ainda um quarto momento, que sumariza o final (provisório) deste texto: Muitos seres podem ser ditos de muitas formas.

[7] As citações da Ética (Spinoza, 2018) seguirão o formato sugerido pela Revista Conatus – Filosofia de Spinoza, editado e mantido pelo GT Benedictus de Spinoza, que recomenda indicar livro (E), definição (Def), axioma (AX), proposição (P), escólio (S) e corolário (C), acompanhados dos respectivos números em algarismos arábicos.

[8] “[…] advertimos o leitor para que, antes de conjecturar questões raciais a partir dos adjetivos ‘negro’ e ‘sarnoso’ — como o faz Michael Rosenthal, no artigo The black, scabby Brazilian […] —, é preciso ter em conta, em simultâneo, que à época […], acreditava-se que a peste bubônica teria sido trazida à Holanda por navios que tinham africanos na tripulação, e que um dos sinais da doença é justamente o aparecimento de ínguas (‘bubões’) onde a pele é picada por pulgas” (Spinoza, 2020, p. 218, nota 6). Contudo, mesmo que a associação da peste aos navios negreiros que aportavam na Holanda tenha sido fruto da mera recorrência empírica — a coincidência do pico de surto e do influxo de escravos africanos nos portos neerlandeses —, o fato não necessariamente exclui a possibilidade de que tais termos tenham tido, à época, uma semântica racial, amalgamada no inconsciente linguístico das populações europeias, sobretudo em um cenário de colonização em meio ao qual os Países Baixos assumiam, entre outras nações, protagonismo. Essa conotação pode muito bem ter estado latente no imaginário de Spinoza, mesmo que contra sua vontade e em contradição com seus ideais mais íntimos. Em outras palavras, embora seja importante não tomar isso como uma certeza dada, por se tratar de mera conjectura psicologista, a interpretação de Rosenthal não é de todo descartável.

[9] Inclusive, se assumirmos o pressuposto yanomami de que sonhar com os mortos é ser por eles convocados, correndo o risco de passar “[...] para o lado dos mortos” (Limulja, 2022, p. 108), é possível considerar que, se o sonho com o homem tropical é o sonho com um homem morto ou em vias de morrer (condição muito provável para um indivíduo acossado pela escravidão ou pelo genocídio coloniais), o espectro do homem “negro e sarnoso” convocava Spinoza a participar em um devir-outro — morto, talvez, mas quiçá um “brasileiro”: o devir-Bento de Benedictus.

[10] A aproximação tensa entre Ludueña e o pensamento indígena deste artigo, que não deve ser tomada a modo de equivalência, reverbera a espectrologia indígena elaborada por Marco A. Valentim, em Extramundanidade e sobrenatureza, obra na qual, amparado, entre outros, em Ludueña, Viveiros de Castro, Lévi-Strauss e Kopenawa, o autor assevera que a “[...] espectralidade não é […] o atributo exclusivo de uma pessoa ou povo, mas o potencial metamórfico constitutivo de todo agente cósmico, o seu ser-imagem” (2018, p. 229). É preciso assinalar também que o espectro enquanto imagem, utupë a, ao mesmo tempo concorda e discorda do sentido romandiniano de “espectro”, porque, à divisa entre ontologia e mito-cosmologia presente no multinaturalismo, poderíamos acrescentar talvez outra, algo como uma distinção entre uma espécie de “espectrologia regional” e “espectrologia geral” — retomando a distinção aristotélica entre ontologia geral e regional, contudo, em sentido divergente, já que o “geral” aqui aponta para o que Ludueña chama de Outside, domínio eminentemente “disjuntológico” ou não unário do espectral. O espectro imagético seria, então, instanciação regional do espectro romandiniano; mas, enquanto região do instanciado, seria, ao menos em certa medida, o mesmo que o instanciado. De toda maneira, ainda que em outro sentido, a discussão de Ludueña a respeito da disjunção nos auxilia na aproximação do problema da univocidade no multinaturalismo, iluminando seus limites e abrindo uma via de investigação; por isso, sua proeminência nestas considerações finais.