As acepções de crítica no Kant pré-crítico

 

Paulo Borges de Santana Jr.[1]

 

Resumo: Um dos desafios do comentário à filosofia kantiana é lidar com as possíveis acepções do termo “crítica”, juntamente com a possível motivação do autor na escolha desse termo, para intitular suas principais obras. Neste artigo, enfatizando a fecundidade de significado do termo “crítica”, mostra-se que a sua ligação com o estabelecimento de limites à metafísica foi um processo sinuoso, o qual perpassou preocupações de naturezas heterogêneas. Para tanto, problematiza-se, primeiramente, o aparecimento do conceito de crítica, em especial, em NEV de 1765 e, posteriormente, com base nas Reflexões até 1770, identifica-se como a sua equivocidade, mais do que um empecilho, favoreceu a construção de seu protagonismo, no corpus kantiano. Assim, o pensamento crítico em Kant, em vez de uma posição diante do problema da metafísica, explicita-se como uma posição diante dos mais diversos problemas do sujeito moderno.

 

Palavras-chave: Kant. Crítica. Equivocidade.

 

Introdução

Em oposição a uma análise do conceito de crítica que visasse a delimitar rigorosamente a sua acepção, em Kant, propomos explicitar a equivocidade desse termo no próprio corpus kantiano, situado entre as décadas de 1760-1770. Contudo, não se trata apenas de uma listagem das suas acepções, mas também de uma reflexão sobre elas, tendo como horizonte geral o processo que culmina (mas não se interrompe) na escolha de KrV pelo termo “crítica”, para designar um trabalho a respeito dos limites do conhecimento da metafísica. Em suma, mais do que atestar que a crítica em Kant padece de sentidos diferentes, esperamos mostrar que a crítica intensifica o dinamismo do pensamento do autor, produzindo inclusive sentidos diferentes nos conceitos que lhe são associados. Assim, evidencia-se uma equivocidade ativa do conceito de crítica, perceptível na década de 1760 e que contribui para a proposta, iniciada nos anos 1770, de vincular o termo “crítica” com a tarefa acerca dos fundamentos do conhecimento metafísico.

Ao designar tal equivocidade como ativa, queremos ressaltar, mais precisamente, que os escritos de Kant trabalham intencionalmente os diferentes sentidos, afastando a hipótese de que o autor seria vítima dessa polissemia. Na realidade, essa abordagem da equivocidade já foi muito bem desenvolvida por Foessel (2007), no que tange ao conceito de mundo. Em resumo, sua interpretação revela que a perspectiva crítica sobre a cosmologia racional leva Kant a negar radicalmente qualquer conceito positivo ou imagem fixa acerca do mundo; no entanto, a referência a uma instância cósmica precisa ser mantida e preservada enquanto discurso, ainda que os termos da cosmologia racional sejam usados explicitamente no registro da homonímia. Ao espelhar esse equívoco, a letra de Kant explicita, em vez de incoerência, o resultado da reflexão crítica. Generalizando essa abordagem – a qual Foessel atribui, em certa medida, ao conceito de sensibilidade[2] –, consideramos que é característica constante de um pensamento crítico, ao tratar de conceitos cristalizados em doutrinas e definições, reconhecer e produzir mudanças de acepções que, consequentemente, alargam o poder desse próprio pensamento e do escopo de temas.

Assim, no contexto brasileiro da pesquisa kantiana, concordamos em grande medida com a proposta de Cunha (2019), que, ao articular essa motivação eminentemente crítica com o estilo de KrV, defende que a acepção do barroquismo kantiano, na verdade, supera a significação pejorativa de artificialismo. Em linha gerais, esse intérprete responde à objeção de Herder, explorando a intenção de Kant de se contrapor à forma geométrica e ao critério cartesiano de clareza e distinção. Ainda seguindo Cunha (2019), a clareza da razão crítica não é a do cálculo sobre características universais, mas a da composição de um Caravaggio, em que a luz emana do centro e se dispersa, organizando (sistematizando) elementos diversos, através de um jogo com as sombras.

A essa equivocidade perceptível na obra de Kant, em geral, acrescentemos a especificidade trazida diretamente pelo próprio conceito de crítica, a qual já fora sinalizada por Tonelli (1978, p. 120):

[...] “critique” e etc. eram carregadas na época com uma significação maior do que a nossa, como símbolos de uma mudança intelectual e social geral que em parte ocorreu e que em parte foi declarada mais ou menos utopicamente. O próprio Kant declarou, no Prefácio à primeira edição de sua Crítica da razão pura: “Nossa época é especificamente a época da crítica (Kritik), à qual tudo precisa se submeter” – e ele não era o único que sustentava essa opinião. 

 

Ainda que seu interesse seja enfatizar a ligação da crítica com a tradição lógica do século XVIII, Tonelli não negligencia o leque de acepções nas grandes cidades europeias e as dificuldades dos autores em transitar entre um sentido mais comum (juízos e avaliações em geral) e os sentidos técnicos mais específicos (estética, lógica, teologia, história, filologia). Nossa proposta será perceber ao menos a matéria bruta a partir da qual Kant forjará um significado de crítica tão original quanto consonante com essa riqueza semântica. Em outras palavras, embora sua associação entre limite e crítica seja original, ela se construiu ecoando e reelaborando as referências múltiplas desse termo, em sua época.

Valendo-nos dessas interrogações sobre a potência da equivocidade na obra kantiana e do vasto campo semântico do termo “crítica”, nos séculos XVII-XVIII, escolhemos um recorte capaz de indicar algumas balizas da construção dessa ideia de crítica, a qual marcará o pensamento do professor de Königsberg. Primeiramente, explorando o Anúncio do programa para o inverno de 1765-66 (NEV), delinearemos o momento em que o termo “crítica” se encontraria afastado da preocupação com o campo transcendental. Depois de demonstrar, com base numa cronologia sólida, que há uma guinada entre esse texto e a carta a Herz de 1772 – em que a crítica se associa diretamente à investigação transcendental –, elegemos algumas Reflexões desse período que atestam a consciência de Kant sobre a polissemia do termo “crítica”. Nesse ponto, mostraremos que a multiplicidade de significações, na verdade, auxiliaria a força criativa do pensamento do autor. Por fim, ainda no campo das Reflexões, nossa terceira seção aludirá a uma fase em que se começa a transposição da crítica para o problema dos limites da metafísica.

 

1 A crítica da razão in concreto

Para a busca das raízes do termo “crítica”, em Kant, convém ter como datação mais segura a famosa carta de 21 de fevereiro de 1772 a Herz, onde se encontra de maneira mais explícita a descrição de um projeto, no âmbito da “crítica da razão pura”. Ainda que não nomeie diretamente tal projeto de Crítica da razão pura, esse termo já descreve alguns conceitos e temas que constariam no projeto crítico definitivo, desde as fontes e limites da metafísica até as questões vinculadas à moralidade e ao gosto (diferença entre o agradável, o belo e o bom). Todavia, quando comparada à sua forma final, a ordem sistemática vislumbrada na carta transparece diferenças significativas. Nesse contexto inicial, a “crítica da razão pura” aparece para descrever, de forma mais detalhada, a tarefa de conduzir a filosofia transcendental ao número determinado de categorias[3] e, em segundo lugar, aponta de modo mais geral o conteúdo da “natureza do conhecimento teórico, assim como do conhecimento prático, na medida em que ele for meramente intelectual” (Kant, 2012, p. 28/ AA 10: 132) cf. Licht dos Santos (2012). Tal associação entre o projeto de Kant e a designação “crítica da razão pura” se encontra mais solidificada numa carta também a Herz, no fim de 1773, na qual essa designação é utilizada como explicação de sua filosofia transcendental[4].

Porém, esse vínculo, que parece dado em 1772-1773, já representa uma considerável guinada no pensamento do autor. Antes de assumir esse lugar transcendental e a tarefa de limitar o conhecimento da razão, o conceito de crítica inicialmente contribui, em Kant, com o desenvolvimento de questões concernentes especificamente ao pensamento comum ou empírico. A preocupação com a delimitação da metafísica – presente de maneira explícita, por exemplo, em 1766, no texto Sonhos de um visionário (TG) – surge em Kant separada do escopo conceitual que ronda o termo “crítica”.

Ainda de maneira segura, recuando na cronologia do corpus kantiano, há uma aparição de crítica da razão (sem a qualificação de pura), em Anúncio de 1765-66 (NEV). Num argumento bastante sinuoso, nota-se a contribuição do termo para enfatizar algumas tarefas específicas da Lógica – ciência aqui concebida sem o seu viés simplesmente formal ou abstrato[5]. Recorrendo à noção de crítica, a Lógica seria considerada segundo dois gêneros: 1) crítica e preceito do entendimento salutar; e 2) crítica e preceito da erudição enquanto tal[6].

Notemos de imediato que, através da crítica associada à noção de preceito[7], o autor pensa acerca de um caráter normativo, cujo papel, no primeiro gênero, cumpriria uma “[...] quarentena (se posso assim me exprimir) que deve cumprir o aprendiz que queira passar do país do preconceito e do erro para o domínio da razão esclarecida e das ciências” (Kant, 1905, AA 02: 310). Nesse gênero, a crítica expressa uma precaução contra os erros associada à imagem médica, no entanto, embora exista aqui o sentido negativo de correção, tal preocupação é bem distante de um teor polêmico[8]. Podemos dizer, ainda com base nesse primeiro gênero de Lógica, que a crítica trataria de um âmbito pedagógico, focado na relação intersubjetiva professor e aluno, situando-se para além da transmissão do conhecimento propriamente dito[9]. Em suma, Kant coloca a crítica na fronteira entre dois países, checando as condições subjetivas (as condições de um novo sujeito supervisionadas por outro sujeito mais experiente) necessárias a um saber objetivo construído pela razão. Em vez de condições subjetivas dirigidas à razão pura ou a um campo transcendental, essa crítica aborda o entendimento salutar e as relações (inter)subjetivas entre aquele que deseja sair do país do preconceito e aquele que já habita um país esclarecido[10].

No segundo gênero, a crítica “[...] jamais poderia ser tratada senão após as ciências, cujo órganon ela deve ser” (Kant, 1905, AA 02: 310). Identificada enquanto órganon, a crítica perde um caráter prévio presente no primeiro gênero e pressupõe um conhecimento substancial da ciência. Ainda que pretenda se fazer valer no interior da Lógica, o sentido de crítica muda claramente, quando se dirige ao lugar do método (via que aplica o conhecimento in concreto). Com certeza, podemos identificar, nesse segundo gênero, uma grande distância com a Lógica formal. Se, num primeiro momento, a crítica cuida da construção sem preconceitos da ideia de uma ciência – ou, mais precisamente, da correção das ideias que os alunos fariam dessa ciência –, no segundo, ela trata do método dessa ciência. Assim, considerada ao mesmo tempo nesses dois lugares e momentos distintos, a crítica se preocuparia com a(s) normatividade(s) presente(s) nas margens externas do campo simplesmente teórico das ciências, uma vez que supervisionaria tanto o momento prévio quanto o momento posterior ao conhecimento objetivamente constituído. Em outros termos, sendo impossível ao âmbito propriamente teórico conter as condições de superar os preconceitos e de determinar completamente seus métodos, caberia à crítica (associada a essa equivocidade do conceito de lógica) exercer tais papéis.

Ao explicar o primeiro tipo de Lógica, por meio da noção de crítica, Kant o circunscreve ao momento inicial de ensino acadêmico, no qual seria necessária uma tarefa de traçar limites [angrenzen] que evitassem a dominação de conceitos grosseiros. Todavia, provavelmente como modo de compensar esse teor relativamente negativo, a crítica se conjuga com uma formação do entendimento comum, incorporando o valor de uma vida ativa e civil. São dois papéis bastante diferentes, mas que Kant, ao nomear da mesma forma, pretende claramente que sejam complementares. Ao pensar no âmbito do método, o autor não se restringe a uma aplicação escolar do conhecimento e, consequentemente, reforça o interesse da ciência com uma vida ativa. Se, ao entrar na universidade, o aluno precisa se colocar numa quarentena para não introduzir preconceitos na ideia de uma ciência, num momento posterior, ao formar uma ideia de ciência, será necessário a esse mesmo aluno pensar a aplicação dentro do contexto de um mundo civil[11]. A crítica se apresenta não apenas na entrada, mas também na saída entre os domínios escolar e mundano. Perfazendo todo esse percurso, percebe-se que a negatividade daquele primeiro gênero de crítica é provisória (assim como sugere explicitamente a própria imagem de uma quarentena) e posta dentro de uma dinâmica pedagógica, cujo fim traz uma positividade que ultrapassa a preocupação com um saber meramente especulativo.

Esse significado a mais revela que a Lógica, concernente a uma preocupação denominada prática, tem sua origem na estética, porém, mais especificamente na dimensão social do campo estético. Ou seja, em vez do belo ou do prazer, trata-se da questão da comunicabilidade entre as pessoas. Como indica Baeumler, a aproximação do gosto com o campo social ocorre, entre os germânicos, desde a recepção de Gracián[12] e, além disso, através de Meier, fortalece-se a incompatibilidade entre o gosto e a figura do pedante[13], definido mais exatamente como alguém que não se deixa compreender, em vez de alguém que utiliza em excesso a sua erudição técnica – isto é, definido mais por sua incapacidade do que por um excedente de habilidade. Desse modo, parece-nos que o resultado da analogia entre lógica e estética[14] é justamente essa proposta de uma comunicação do conhecimento que inclua uma ideia de mundo, fortalecendo o sentido etimológico do termo Weltweisheit.

A crítica e o preceito da inteira sapiência mundana[15] enquanto um todo – essa Lógica completa – podem encontrar seu lugar na instrução [Unterweisung] apenas ao fim da Filosofia inteira, pois só os conhecimentos já adquiridos da mesma e a história das opiniões humanas tornam possível fazer considerações sobre a origem de seus discernimentos [Einsichten], bem como de seus erros, e traçar a planta exata segundo a qual semelhante edifício da razão deve ser erigido de maneira duradoura e regular (Kant, 1905, NEV, AA 02: 310).

 

Nesse trecho, onde o termo “crítica” tem a função de apontar para uma filosofia mais completa, é possível notar, ainda que de forma bastante sintética, duas temáticas importantes que permanecem em KrV. A primeira diz respeito a uma sabedoria de mundo que complemente a sabedoria escolar, proporcionando uma perspectiva concreta. A segunda faz referência à dimensão prática das ciências e ao desenho de um edifício, expressando os argumentos que serão utilizados para justificar a Metodologia transcendental (KrV B735-6). Todavia, apesar de essas temáticas aparecerem em KrV, é evidente, nessa citação, a instrumentalização do termo “crítica”, nos limites do pensamento in concreto, ou seja, aqui não se pensa numa crítica que interfira no interior ou nos fundamentos do conhecimento metafísico.

Na explicação dessas duas partes, a crítica está mais profundamente ligada ao pensamento in concreto, quer enquanto o exercício (sem preconceitos) do entendimento salutar, quer enquanto a parte prática de uma ciência (voltada a uma perspectiva civil). Em virtude dessa posterioridade em relação à filosofia e dessa associação direta entre crítica e órganon – que será constantemente recusada (ou reformulada[16]) por Kant, durante o período crítico –, podemos constatar uma grande distância entre essa “crítica da razão” de 1765 e “a crítica da razão pura” das cartas a Herz. Pelo contrário, dentro do pensamento concreto, Kant ainda aponta para a existência de afinidades entre uma crítica da razão e uma crítica do gosto[17].

Em resumo, apesar de serem bastante concisas as afirmações do texto, podemos perceber que, em 1765, através da crítica, esboça-se uma tentativa de ligação entre o campo da lógica e o da estética (ambos em sentido largo[18]). Talvez caiba pensar essa tentativa dentro de uma perspectiva mais geral, delineada por Baeumler, que observa na modernidade um paralelismo entre a nova estética e uma nova lógica[19]. Em todo caso, mais do que esmiuçar tais características, o nosso interesse se dirige em pontuar essa tentativa e em reforçar que Kant, através do conceito de crítica, defende também um interesse social (ou mundano) em torno das ciências, incluindo a própria metafísica.

 

2 A equivocidade do conceito de crítica nas Reflexões

Recorrendo ao terreno das Reflexões, percebemos que, em vez de um desvio momentâneo no pensamento de Kant, essa ligação da crítica com o pensamento comum está fortemente reafirmada nos anos 1760. Se, por um lado, nessa época, Kant já possui textos publicados sobre o problema da metafísica[20], por outro, o lugar que a crítica ocupa, embora seja bastante amplo, está distante desse contexto específico acerca da limitação do conhecimento puro.

Além da influência dos autores britânicos, que faz Kant enfatizar o elo entre crítica e gosto, é possível reconhecer também, nessas acepções do conceito de crítica, imbricações com questões de outra ordem. Por exemplo, a Refl. 3716 considera que a crítica abarca não somente aquilo que comove [Rührende], quanto uma ciência da probabilidade [Wahrscheinlichen][21]. A ligação da crítica com o conceito de probabilidade, conforme indicam os estudos de Tonelli[22], faz parte de uma tópica da lógica do século XVIII, além disso, podemos acrescentar especificamente a possível interlocução com Leibniz[23] ou Locke[24] sobre uma parte do conhecimento irredutível às demonstrações. O comovente, por sua vez, inclui o campo tanto da beleza quanto do risível, reunindo, consequentemente, tudo o que seria incompreensível apenas através da definição (sem recorrer a uma representação singular concreta). Essa ramificação da crítica em objetos de naturezas diferentes ocorre através do interesse do autor pela dimensão na qual o exercício [Ausübung] do pensamento seja necessariamente anterior à própria regra.

Assim, permeada de objetos irredutíveis tanto à tópica estética quanto à lógica, a crítica nesse momento é utilizada justamente para pensar aquilo que o a priori não seria capaz de determinar ou as singularidades que povoam o domínio do empírico.

Um conceito universal é empírico, se ele não pode ser entendido de outro modo a não ser quando se conhece seu concretum. Não se pode alcançar nenhum conceito de água através de qualquer definição a não ser quando ela é vista. Todos os conceitos da beleza do simples [Einfalt] e do ridículo se tornam compreensíveis apenas em seus concretos. Portanto, as regras aqui podem tampouco ocasionar o exercício, mas é este que faz as regras (Refl. 3716. Kant, 1926, AA 17: 255: 13-19).

 

Além da questão sobre os objetos do campo da crítica, essa mesma reflexão, em consonância com o Anúncio 1765-66 (NEV), expressa novamente uma preocupação de construir uma relação do conhecimento com a cultura de uma época. Porém, permitindo-se uma liberdade maior, Kant indica uma condição política para tal relação.

Todas as ciências e artes ou se relacionam com a cultura da razão salutar ou não. Nesse último caso, domina também uma completa falta de gosto. Somente a época da razão salutar, das artes e das ciências é a época de glória; ela se encontra apenas em repúblicas e monarquias, e não no Feudalismo, onde reina uma desigualdade grande demais (Refl.3716. Kant, 1926, AA 17: 256: 07-12). [25]

 

Sem adentrar a questão política (as condições dadas por um Estado), constatemos, ao menos, como uma preocupação social (a desigualdade) permeia o problema de uma época da razão salutar e de sua relação com as ciências e as artes.

Essa heterogeneidade de objetos e âmbitos da crítica, reunida numa única reflexão, se torna mais interessante, quando temos em mente que KU reencontrará tal heterogeneidade. Tirando a questão da probabilidade que permanecerá apenas como característica da opinião (§90)[26], a primeira parte do livro, sob o nome de “crítica da faculdade de juízo estética”, abrange a analítica do belo (§§ 1-22), um minitratado sobre o riso (§54), considerações importantes sobre a saúde do entendimento comum[27] (§40) e apontamentos sobre a relação do gosto com a sociedade (§41, §60). Assim, poderíamos sustentar que, quando Kant elevou a crítica do gosto à esfera transcendental, em 1790, ele pôde retornar, de maneira mais enfática, a esses conteúdos que já se faziam orbitar nos seus pensamentos, por volta da década de 1760.

Ainda nesse terreno das Reflexões, o caso da Refl. 1579 (Kant, 1926, AA 17:17, pertencente aos anos 1760) parece-nos também relevante, ao enfocar, simultaneamente, dois sentidos diferentes de crítica: por um lado, enquanto substantivo, a crítica seria ciência do universal in concreto (seguido na experiência[28]) e, por outro, enquanto adjetivo, ela qualifica um tipo de dialética que, em vez de enganar, permite apenas uma crítica da ilusão[29]. No primeiro sentido, além do que já foi destacado, a crítica parece aumentar a sua distância em relação ao campo erudito, através da oposição (permanente) com o conceito de doutrina [Doctrin][30]. Porém, ao ser tratada como qualidade da dialética, a crítica é utilizada para se contrapor a posições intelectuais (a sofística e o ceticismo), designando um sentido de dialética apartado da “prática da enganação” (Kant, 1924, AA 16: 23: 11-12). Segundo a mesma reflexão, essa faceta da dialética precisaria ser caracterizada como crítica, porque, sendo incapaz de criar um preceito para o uso puro da razão, o seu próprio exercício conseguiria, de modo direto, evitar erros, levando a razão a um uso purificado, através de um processo catártico.

Assim, nessa equivocidade que envolve o conceito de crítica, perceptível na década de 1760, mais do que algum aspecto diretamente negativo, a crítica gira em torno de regras empíricas do entendimento comum em exercício (Praxis)[31]. Desse modo, inicialmente enquanto práxis de um entendimento comum, podemos enumerar que a crítica (i) amplia seu horizonte para além do domínio do sentimento, (ii) opera uma analogia entre lógica e estética, (iii) aponta para a relação entre ciência e sociedade e, por fim, separando-se da dimensão do preceito, (iv) adquire um poder catártico. Contudo, na década de 1760, seu lugar ainda está aquém do campo da metafísica ou de uma razão pura[32]. Em suma, nesse momento do pensamento kantiano, as ramificações do conceito de crítica – por mais vastas que sejam – se ligam ao tronco do pensamento comum, sem tocar no problema da fundamentação ou da limitação da metafísica e dos seus respectivos objetos.

 

3 A transição da crítica para o contexto da investigação transcendental

Apenas na fase κ (ou 1769, para utilizar a datação de Adickes), as Reflexões atestam as primeiras pretensões da crítica sobre o campo da razão pura[33] que, como já mencionamos, resultariam na associação entre filosofia transcendental e crítica da razão pura, presente nas cartas a Herz de 1772 e 1773.

A metafísica é uma crítica da razão pura e não doutrina. A lógica é a doutrina da razão (1) pura e (2) misturada. [...] A ciência de um conhecimento subjetivo é considerada crítica, [a do conhecimento] objetivo é doutrina. (Refl. 3964 [fase κ¹]. Kant, 1926, AA 17: 368: 09-10, 14-15).

A metafísica é Crítica da razão humana, a lógica é a sua doutrina universal. A primeira é subjetiva e problemática, a segunda [é] objetiva e dogmática. (Refl. 3970 [fase κ]. Kant, 1926, AA 17: 370: 13-15).

 

Para nossa argumentação, resta importante frisar que o projeto de limitar o campo da metafísica no desenvolvimento do corpus kantiano é anterior à incorporação da crítica, nesse campo, encontrando-se relativamente desenvolvido na Dissertação de 1770, sem necessidade de nenhuma menção ao conceito de crítica. Através disso, podemos negar que seria a tarefa de delimitar ou de refutar o conhecimento dos objetos metafísicos o motivo responsável por reconduzir a crítica do contexto do pensamento concreto em direção ao pensamento metafísico. A nosso ver, será o lugar da crítica como oposto ao da doutrina[34] que a torna um conceito capaz de aglutinar as interrogações de natureza subjetiva ou problemática. A função do conceito de crítica é inicialmente caracterizar uma investigação subjetiva anterior a uma investigação objetiva[35]. Por isso, a contribuição nova do termo “crítica”, para as interrogações de Kant sobre a metafísica, não está na noção de limite, todavia, na ênfase de um tratamento prévio e de natureza subjetiva dos problemas dessa ciência. Outra reflexão da mesma fase afirma, ressaltando essa subjetividade, que a razão sente a necessidade de um fundamento real que, porém, escapa de suas leis e, por isso, não poderia ser objetivo[36].

Dessa forma, nos anos 1770, reforçando o âmbito subjetivo do problema da metafísica, o autor transpõe a quarentena, antes sugerida aos alunos do inverno de 1765-1766 em vista de um entendimento salutar, para o próprio entendimento abstrato. Nessa fase das Reflexões, guiado dessa vez por Baumgarten, o conceito de crítica começa uma tendência de se descolar do campo empírico – ainda que mantenha o seu elo com o gosto – e de vincular-se mais fortemente ao exercício do ajuizamento [Beurteilung].

O gosto é o fundamento da crítica do ajuizamento, mas [o] gênio [é o fundamento] do exercício. A crítica é o ajuizamento segundo regras universais. Mas uma vez que essas regras precisam se fundar no gosto, um homem de gosto é melhor que um Critikus instruído. Mas há também uma doutrina do ajuizamento, que se baseia em princípios universais da razão como Lógica, Metafísica e Matemática (Refl. 671 [1769-70]. Kant, 1923, AA 15: 297: 12-17).

 

O antagonismo crítica-doutrina tem um gênero sob o qual ambas aparecem relacionadas: ajuizamento[37] – presente tanto na definição de crítica quanto na de um conjunto de conhecimentos objetivos (doutrina). Embora participe de um contexto sobre o estatuto do gosto, a formulação de crítica, na Refl. 671, através da noção de ajuizamento, desprende-se de uma referência direta ao campo do empírico e da própria sensibilidade, tornando-se apta a outros contextos[38]. A partir desse passo, a noção de crítica pôde assumir uma posição no contexto da metafísica provavelmente quando é definida como “o ajuizamento segundo regras universais”, ou seja, quando sua definição ultrapassa a dimensão das regras empíricas, tornando-se uma noção fecunda em outros âmbitos. Assim, percebendo uma força peculiar na noção de ajuizamento, Kant mistura a crítica enquanto gosto dos britânicos com a crítica enquanto uma arte de julgar nova ou moderna – distinta da lógica formal – e, desse modo, extrai uma crítica capaz de se impor também ao domínio próprio da metafísica.

 

Considerações finais

Como expusemos anteriormente, nas primeiras aparições do conceito de crítica nas Reflexões de Kant, não existe um elo ainda estabelecido com a noção de limite do conhecimento, tampouco com a de polêmica. As suas temáticas estão ligadas aos estudos sobre gosto e, igualmente, a uma investigação lógica em torno do entendimento comum (o entendimento numa práxis ou seu uso). Contudo, comparando e refletindo sobre essas noções equívocas de crítica, Kant percebe como a noção de ajuizamento é capaz, por um lado, de fornecer um patamar genérico acima dessa equivocidade e, por outro, de espraiar o conceito de crítica para suas interrogações sobre a metafísica. E, finalmente, a crítica pode se dirigir à razão pura, sem, porém, despojar-se de uma bagagem bastante múltipla de temas. Essa bagagem fica latente nas produções do período crítico, e ousamos afirmar que o autor tenta pagar, na Crítica da faculdade de julgar, a dívida de seu projeto crítico com a noção de ajuizamento.

Desse modo, convém à análise do conceito de crítica, em Kant, atentar mais à equivocidade do que ao seu suposto significado rigorosamente fechado. Tal equivocidade, em certa medida, poderia ser interpretada como geradora de instabilidades e dificuldades ao sistema filosófico kantiano de ordens diferentes – tanto em relação ao diálogo com intérpretes que valorizaram o termo crítica quanto com respeito ao âmbito mais específico do pensamento de Kant. Entretanto, sugerimos, pelo contrário, que tal escolha proporciona uma visão mais fecunda das obras kantianas e, de certa forma, é um dos motivos que fez com que seu sistema, apesar de sua perspectiva transcendental, fosse capaz de superar as demandas técnicas da metafísica escolar, englobando os campos da ética, direito, política e estética.

 

The meanings of critique in pre-critical Kant

Abstract: One of the challenges of the Kantian research is to deal with the different meanings of the term critique, as well as to ask about the author’s possible motivation in choosing this term to title his main works. Through the emphasis on the fecundity of meaning of the term critique, we will show in this article that its connection with the establishment of limits to metaphysics was a sinuous process, which is capable of encompassing interests of heterogeneous natures. For this purpose, we will first problematize, in particular, the appearance of the concept of critique in NEV of 1765 and, later, based on the Reflections (1765-1770), we will identify how its equivocality, more than an obstacle, favored the construction of its protagonist role in the Kantian corpus. Thus, the critical thinking for Kant, instead of a position facing only the problem of metaphysics, is explained as a position facing the most diverse problems of the modern subject.

Keywords: Kant. Critique. Equivocality.

 

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Recebido: 09/03/2023 - Aprovado: 25/08/2023 – Publicado: 13/02/2024



[1] Professor do Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), União da Vitória, PR – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1240-9690. E-mail: paulo.santana@ies.unespar.edu.br.

[2] Cf. Prefácio de Foessel, Calori e Pradelle (2014, p. 7-19).

[3] “[Conduzir] a filosofia transcendental, ou seja, todos os conceitos da razão completamente pura, a certo número de categorias; não, porém, como Aristóteles que, em seus 10 predicamentos as justapôs ao acaso tal como as encontrou, mas sim como elas próprias, mediante algumas poucas leis fundamentais do entendimento, se dividem por si mesmas em classes” (Kant, 2012, p. 22/ AA 10: 132). Com o intuito de contemplar tanto a exigência da ABNT quanto o padrão internacional da pesquisa em Kant, para as obras traduzidas, será seguido o esquema: Autor, ano de edição da tradução, página da tradução / AA volume da Akademie: página do volume. Para as Reflexões, o padrão será: Autor, ano da edição da Akademie, AA volume da referida edição, página, linhas).

[4] Kant, 1969, AA 10:145. “[...] minha filosofia transcendental, a qual é propriamente uma crítica da razão pura”. A Refl. 4457 (1772) esclarece o sentido dessa identidade, em oposição ao que seria uma investigação transcendental de caráter dogmático. “Na metaphysica applicata muitas coisas são dogmáticas. (^g na [metaphysica] transcendental tudo é crítico; é possível algo ser inventado pela metafísica? Sim, em vista do sujeito, não do objeto). Apenas Enquanto crítica ela tem utilidade. Se tanto a religião quanto a virtude não se fundamentam sobre ela – mas possuem outras fontes –, ela serve para remover os obstáculos. Crítica da ciência e organon* da sabedoria. (g que depende mais da carência do que da aquisição. Sócrates). *(g uma propedêutica dela, a moral é um organon)” (Kant, 1926, AA 17: 558: 11-21).

[5] Sobre o campo da lógica, no século XVIII, Tonelli (1974, p.187) faz uma observação importante para a nossa perspectiva atual. “O assunto posteriormente tratado pela teoria do conhecimento foi atribuído até o final do século XVIII a duas ciências: Lógica e Psicologia. Que ele possa pertencer à Psicologia é facilmente compreensível em nosso tempo; mas que ele pudesse ser considerado pertencente à Lógica pode parecer estranho em muitos aspectos. Em conexão com isso, é preciso ter em mente que a visão da nossa época acerca da Lógica, como Lógica ‘formal’, ou como Lógica ‘simbólica’ era completamente estranha à filosofia até o início do século XIX”. Ainda sobre a necessidade de compreender melhor o sentido de lógica de Kant, em contraste com a nossa concepção mais recente, Longuenesse (1998, p. 135) é de uma precisão esclarecedora, tendo como referência as divisões da lógica feitas em KrV: “Notemos que, para Kant – ao contrário da visão da lógica predominante depois de Frege – a oposição entre lógica e psicologia não se baseia no fato de que a primeira nada tem a ver com nossas atividades mentais. Para Kant, a oposição reside, antes, no caráter normativo da lógica, em oposição ao caráter descritivo da psicologia empírica. Mas mesmo o caráter normativo da lógica é, no fundo, a expressão da capacidade normativa de nossas mentes”.

[6] Kant, 1905, AA 02: 310 [Kritik und Vorschrift der eigentlichen Gelehrsamkeit]. Sobre o modo pelo qual o sentido de estética adquire, em Baumgarten e, especialmente, em Meier, tanto uma característica propedêutica quanto instrumental, cf. Wieland, 2001, §3.

[7] Essa associação se desfaz ao longo da década de 1770, por exemplo, a Refl. 1602 (1773-1775). “Há dois tipos de regras: umas que, sendo (necessariamente) deduzidas do uso, são de maneira crítica regras; outras que, precedendo (gnecessariamente) o uso, são praecepta: Preceitos. (gou das duas ao mesmo tempo. A primeira: entendimento são; a segunda ciência. Crítica e organon)” (Kant, 1924, AA 16: 31: 14-18).

[8] Com base nas edições dos cursos de Lógica (presentes em AA 24), Hinske (1993, p. 67) confirma que o conceito de crítica em Kant “[...] inicialmente não era algo polêmico, mas sim um conceito descritivo. Foi apenas relativamente tarde que se tornou um conceito de batalha – o ‘dogmatismo arcaico e comido por vermes’ (KrV AX), o ‘sono dogmático’ (Prol. A 13) etc. – como era entendido pelos contemporâneos e como é usado desde então e ainda hoje em quaisquer animosidades”.

[9] Sobre a importância da dimensão do ensino, no pensamento kantiano, em relação ao desenvolvimento da máxima do pensar por si mesmo e seu vínculo com a universidade e com o uso público da razão, cf. Terra (2020). Nesse artigo, o intérprete destaca: “Diante do fato de que não é possível aprender filosofia (já que ela não existe puramente enquanto tal), a tarefa do estudante será a de aprender a filosofar, a de aprender a pensar; mas isso não significa que não se deva ler os clássicos ou aprender as ciências. O que muda é a relação com os clássicos. Não basta conhecê-los, decorá-los. Os clássicos são modelos, mas os modelos não estão aí para serem reproduzidos. A caracterização da aprendizagem do filosofar funda-se na própria concepção da filosofia como atividade crítica, já que, como lemos na Lógica: ‘filosofar é algo que só se pode aprender pelo exercício e o uso próprio da razão’ (Lógica, IX 25, p. 42)” (Terra, 2020, p. 23-24).

[10]Tendo como referência as divisões de lógica de KrV, essa primeira parte estaria próxima de uma lógica geral aplicada (empírica). “Diz-se que uma lógica geral é aplicada, quando se ocupa das regras do uso do entendimento nas condições empíricas subjetivas que a psicologia nos ensina. Tem, pois, princípios empíricos, embora seja, na verdade, geral na medida em que se ocupa do uso do entendimento sem distinção dos objetos. Por esse motivo não é um cânone do entendimento em geral, nem um organon de ciências particulares, mas simplesmente um catarticon do entendimento comum” (Kant, 2015, p. 98/ KrV B 77).

[11] Essa argumentação de Kant está alinhada com o papel do saber desempenhado na ideia universidade moderna, ou seja, numa instituição social onde a oposição entre vida contemplativa e vida ativa perde, paulatinamente, o seu sentido. Tratando das condições do esclarecimento e a ideia kantiana de universidade, Nadai é bem preciso, ao destacar a especificidade de Kant, diante de outros autores modernos. Como indica o intérprete, “[Bacon, Descartes e Hobbes] não foram professores universitários e apresentaram a necessidade de um novo método para o cultivo da ciência como apenas podendo ser atendida fora das instituições universitárias de sua época. Refugiaram-se em cortes de reis, príncipes ou princesas com algum amor pela sabedoria, em geral, gente de credo protestante. [...] Não é demais lembrar que, neste contexto, a Universidade representava em geral a defesa de ortodoxia filosófica e religiosa católica, i.e., do aristotelismo e/ou do tomismo” (Nadai, 2020, p. 55). Ainda segundo Nadai, a ideia de universidade se desenvolve mais fortemente, em Kant, com o governo de Frederico Guilherme II e a necessidade de pensar as condições políticas e institucionais para o uso público da razão.

[12] “O gosto em Gracián não tem ainda o elo direto com o problema estético. Ele surge antes da estética e da política. O homem de gosto é o perfeito homem do mundo. [...] No homem completo do Renascimento há uma comodidade e uma segurança que o discreto – mais exposto ao risco, mais subjetivo e mais instável – não possui mais. [...] Gracián é introduzido na Alemanha por Thomasius, através dos franceses. O Discreto se torna um politicus, um homem que se comporta de maneira cortês, que se mostra à altura de todas as situações e que possui o je ne sais quoi” (Baeumler, [1923] 1999, p. 41-42).

[13] Comentando o espírito da frase de Baumgarten – o filósofo é um homem entre outros homens – que fora difundido por Meier, Baeumler ([1923] 1999, p. 142-143) ressalta: “O pouco que sabemos do jovem Kant e de seu amadurecimento apresenta traços da época ‘estética’ e evoca frequentemente o ideal do perfeito honnête homme que se encontra em Meier. O jovem Kant é a antítese do ‘pedante’ que Meier não cessa de ridicularizar. [...] O aestheticus é (enquanto autêntico sucessor do politicus) um homem cheio de tato, que se adapta a seus interlocutores e dá conta do seu auditório nas exposições. Aliás, ‘estético’ em Baumgarten e Meier significa principalmente, no sentido prático, um modo de avançar sobre as verdades ‘obscuras’ – ou seja, de apresentar temas abstratos de uma maneira atraente, compreensível, concreta e de torná-los assim comunicáveis. Sobre esse método, Kant escreve um de maneira pouco ácida que ‘o estético é apenas um meio para acostumar as pessoas de maior delicadeza à rigorosidade das provas e das explicações. Assim como, para as crianças, espalha-se mel na beirada do copo’ (Kant, 1924, AA 16:102: 11-13)”.

[14] A respeito da importância e singularidade de Meier, na articulação entre lógica e estética, juntamente com a recepção kantiana dessa articulação, Lobeiras (2003, p. 57-58) comenta: “Se Baumgarten preocupara-se por delimitar cuidadosamente as tarefas da estética e da lógica, seu discípulo Meier se encarrega por uma sutil combinação entre ambas as disciplinas. A abstração do conhecimento conceitual deve completar-se com a concretude da intuição sensível. A exposição rigorosa do conhecimento deve ter ajuda do discurso sensível e a beleza, e tudo isso em prol de um objetivo importante: a amenidade e a comunicabilidade. [...] Sua lógica se dirige aos ‘eruditos de profissão’, mas também aos eruditos ‘de outro tipo completamente diferente’”. Desse modo, podemos afirmar que, além dos britânicos e da questão sobre o belo, é importante compreender como a estética nasce “dentro dos marcos da lógica”, nesse contexto alemão (contexto de construção de um sentido de universidade, mais autônomo em relação aos valores escolásticos).

[15] Uma vez que Kant menciona vida ativa e burguesa, acreditamos que ele esteja pensando no sentido etimológico de Weltweisheit, o qual indicaria uma diferença significativa com Philosophie, pensada aqui apenas no seu sentido escolar. A Refl. 1652 (Kant, 1924, AA 16: 66-67) contribui para essa diferenciação, embora sua data seja bastante incerta. Em todo caso, sugerimos considerar tal passagem como uma raiz da famosa diferença kantiana entre filosofia considerada apenas segundo o conceito de escola e uma filosofia conforme o conceito de mundo (conceptus cosmicus). Para um trabalho com rigor mais filológico e histórico, dessa divisão, que aparece em KrV B866, cf. Hinske, 2013 – o intérprete vincula a Refl. 1652 a essa passagem de KrV, porém, não faz alusão ao Anúncio de 1765 (NEV). Ainda sobre a tradução de Weltweisheit e sua proximidade com o termo Philosophie, cf. nota de Guido de Almeida (Kant, 2009, p. 89).

[16] Note-se como Kant explica o que seria a segunda parte da lógica do uso particular do entendimento em KrV B 76.

[17] “A afinidade muito próxima entre as matérias fornece oportunidade de, junto com a crítica da razão, a lançar uma olhada à crítica do gosto, isto é, à Estética; a partir disso, as regras de uma servem para elucidar as regras da outra; e o seu contraste é um meio de melhor compreender a ambas” (Kant, 1905, NEV, AA 02: 311). Para uma análise do Anúncio 1765 (NEV) (junto com outras Reflexões de Kant), que explora a afinidade entre crítica e estética, cf. Dumouchel, 1999, p. 109-130. Ainda ressalta Dumouchel (1999, p. 284): “[...] a partir de 1764-65, no contexto de uma reflexão sobre a lógica e sobre a ‘crítica da razão’, Kant fornece ao gosto, dentro do prolongamento do projeto de Baumgarten e Meier, uma função de ‘alargamento’ das faculdades subjetivas de conhecimento, e ele o encarrega, sobre a base da analogia com o senso comum, de completar e enriquecer a faculdade de conhecer intelectual”.

[18] A lógica pensada para além da constituição formal dos conceitos; a estética pensada para além da questão do belo ou do prazer.

[19] Quanto a essa relação entre o campo estético e o lógico no contexto mais geral da modernidade, Baeumler ([1923]1999, p. 123) observa: “Pode-se estabelecer um paralelo notável entre o estado de espírito que acompanha o nascimento da estética moderna e a maneira pela qual o Renascimento substitui a lógica tradicional por uma nova lógica (ou ao menos pela exigência de uma nova lógica)”. Dumouchel, por sua vez, parece ir mais longe que Baeumler, ao considerar que a analogia entre crítica da razão e crítica do gosto pressupõe uma intersecção de vários interesses de Kant, como “[...] a crítica do método da metafísica wolfiana; a inserção dos filósofos ingleses, franceses e alemães que tomaram em consideração o ‘senso comum’; a discussão – provavelmente influenciada por Lambert – sobre a possibilidade de constituir um organon verdadeiro para a filosofia; a problemática da “distinção” (no sentido de Deutlichkeit) dos conceitos sensíveis ou concretos, no conjunto da estética de Baumgarten e da lógica de Crusius e Lambert” (Dumouchel, 1999, p. 116-117).

[20] Por exemplo: em Sonhos (TG 1766), há uma proposta de limitar a metafísica e, em Investigações sobre a evidência ... (UD, 1764), há considerações sobre o método dessa mesma ciência.

[21] “Um conhecimento racional que não tem outros principia que conceitos empíricos pode ser apenas uma crítica; pode-se compreender o universal (por exemplo, o Rührende) apenas a partir do singular, e as regras universais podem apenas ser abstraídas das [regras] singulares do exercício. Então, está na mesma condição da teoria [Lehre] da probabilidade. [...]” (Refl. 3716 (ano de 1763-4). Kant, 1926, AA 17: 255). Segundo Röttgers (1975, p. 25), essa seria a reflexão mais antiga sobre o conceito de crítica, salvo a refl. 1956 do início dos anos 50, em que Kant trata da crítica da língua latina (Kant, 1924, AA 16: 170: 05-09).

[22] “O filósofo católico alemão Amort (1723) ampliou o significado filológico do termo [crítica] à ‘arte de determinar o grau de probabilidade conveniente a qualquer fundamento ou autoridade*’. Isso significava, na terminologia da época, identificar a ‘crítica’ com a ‘lógica da probabilidade’ ou ‘dialética’. (Tonelli, 1978, 134; *a citação de Amort é extraída de Nova philosophiae planetarum et artis criticae systemata, Norimbergae 1723, p. 6)”.

[23] Num contexto em que comenta “as objeções insolúveis” dos modernos (exemplificados por Joseph Scaliger, Hobbes, P. Bayle) contra os antigos e em especial contra a lógica de Aristóteles, Leibniz comenta sobre uma parte da lógica que precisaria ainda se estabelecer: “[Não convém fazer elogios à lógica aristotélica] quando se trata apenas das verossimilhanças [vrai-semblances], pois a arte de julgar motivos verossimilhantes não está ainda bem estabelecida, de modo que nossa Lógica nesse aspecto é ainda bastante imperfeita, e que temos quase que até aqui apenas a arte de julgar demonstrações. Mas esta arte basta [para nosso propósito], pois quando se trata de opor a Razão a um artigo de nossa fé, não nos inquietamos com objeções que resultam apenas na verossimilhança, uma vez que todo o mundo concorda que os mistérios são contra as aparências e não têm nada de verossímil, quando olhamos apenas do lado da razão; mas basta que não haja nada de absurdo”. (Leibniz, Teodiceia [1710]. 1720, p. 25). Além de considerar a verossimilhança ou a probabilidade como objeto de uma arte de julgar, esse trecho tem bastante afinidade com o argumento de Kant no uso polêmico da razão pura.

[24] Cf. Livro IV “Conhecimento e opinião”, de Ensaios acerca do entendimento humano – em especial, capítulos: XIV (Julgamento), XV (Probabilidade), XVI (os graus do assentimento), XX (o assentimento errôneo, ou o erro). O debate com Locke fica mais claro, na secção “Da opinião, da ciência e da fé”, no Capítulo “O cânone da razão pura”. Acreditamos que a ideia de crítica que Locke, ao fim desse livro, associa (ligeiramente) à lógica se refere provavelmente a esses capítulos: “A consideração, pois, das ideias e palavras como os grandes instrumentos do conhecimento não representa aspecto desprezível da contemplação de quem observaria o conhecimento em toda a sua extensão. E, talvez, se fossem distintamente pesados e devidamente considerados, nos oferecessem outro tipo de lógica e crítica, diferente daquele com que até agora temos nos familiarizado” (Locke [1689], 1999, p. 316).

[25] O campo do gosto também se relaciona constantemente com a noção de um entendimento saudável. “O bom gosto ocorre apenas na época da razão salutar (e não meramente sutil)” (Refl. 622, [1769]. Kant, 1923, AA 15: 269: 13-14).

[26] Não seria exagero afirmar que a dimensão da probabilidade perde espaço, no sistema kantiano, com o desenvolvimento da dialética em vista de uma lógica da ilusão. “Chamamos acima à dialética em geral uma lógica da aparência. Não significa isto que seja uma teoria da verossimilhança, porque a verossimilhança é uma verdade, embora conhecida por razões insuficientes; verdade, pois, cujo conhecimento é deficiente, mas nem por isso é enganador, não devendo, por conseguinte, ser separado da parte analítica da lógica” (Kant, 2015, p. 275/ KrV B 349).

[27] A diferença que Kant faz entre entendimento comum e senso comum não serve apenas para valorizar o último, mas para especificar o valor de cada um desses âmbitos. “O uso correto [da faculdade do juízo] é tão necessário e universalmente requerido que por isso sob o nome de são-entendimento não se tem em mente nenhuma outra faculdade que precisamente essa” (KU. Kant, 2016, AA 05, 169).

[28] Ligação que permanece ainda por volta dos anos 1769-1770: “O entendimento salutar julga in concreto e conclui segundo regras in concreto. A experiência ajuda ao entendimento salutar (g minoridade). Utilidades do entendimento salutar, na clareza, infalibilidade, praxi. Não é possível substituí-lo pela ciência. Sua disciplina é crítica. Limites [Schranken] do entendimento salutar. Lógica serve para Crítica do entendimento são, mas é dogmática” (Refl. 1581. Kant, 1924, AA 16: 24: 10-15). Cf. Refl. 1585 – ligação da crítica com a práxis, personificada como o mestre (acima do conhecedor) – e 1587 – ligação com a Gramática.

[29] Essa afinidade entre a dialética e a crítica ainda é reafirmada por volta de 1776-1778: Refl. 5063: “A dialética transcendental é a crítica da ilusão, como a analítica é a doutrina da verdade” (Kant, 1928, AA 18: 76: 20-21). Tal reflexão parece sugerir que antes (ou além) de ser considerada uma lógica da aparência – em forte paralelismo com a lógica da verdade –, a dialética transcendental poderia ser pensada como uma crítica – formulação que acentuaria um quiasmo com a analítica enquanto Doctrin da verdade.

[30] “A lógica do entendimento salutar: Crítica – [a lógica] da erudição: doutrina. A ciência das regras na razão comum (no uso comum da razão) é a Crítica sensus communis” (Refl. 1579. Kant, 1924, AA 16: 18: 28-30).

[31] Nos anos 1770, essa mesma ideia ainda se repete (associada, em alguns casos, ao termo Praxis), em Refl. 1581, Refl. 1585, Refl. 1587 (acrescentando gramática ao campo da crítica), Refl. 1588 (argumento de não haver ciência para o belo). Refl. 806: “O gosto não realiza nenhuma doctrin, mas apenas critick. Exige entendimento prático e, para estabelecê-lo, padrão [Muster]” (Kant, 1923, AA 15: 354: 21-22).

[32] De fato, as Reflexões de Kant reverberam um forte dinamismo de seu pensamento, o qual ele admitira também, em suas aulas: “[...] como, de ano em ano, minha exposição recebe algum melhoramento ou mesmo algum alargamento, principalmente na sua forma sistemática e, por assim dizer, arquitetônica, e na ordenação do que cabe aos limites de uma ciência, os ouvintes não podem tão facilmente se ajudar copiando-se mutuamente de um ano ao outro” (Carta a Herz, 20/10/1778; Kant, 1969, AA 10, 242).

[33] Esse diagnóstico é também afirmado por Baum. “Por volta de 1769 parece ser datada a Reflexão 3957, na qual pela primeira vez a ‘filosofia da razão pura’ é nomeada como totalmente ‘crítica’. Ou ela é dogmática (enquanto lógica teórica, moral teórica e ciência natural universal) ou ‘crítica, portanto, subjetiva’ (Kant, 1926, AA 17: 366, cf. Refl. 3964, 17: 368). Parece, portanto, que surgiu nessa época a ideia de uma filosofia crítica da razão pura” (Baum, [1990] 2019, p. 93).

[34] No prefácio e no capítulo 1 de Kant e o fim da metafísica, essa oposição entre doutrina e pensamento problemático (enquanto marca da crítica) é bastante explorada por Lebrun ([1970] 2002, p. 7, 10, 13): “Existe, após Kant – após ter-se realizado a separação ciência/filosofia – um sentido da palavra teoria que, aplicado à filosofia, só pode ser pejorativo. [...] O discurso [filosófico] se desdobra em outro espaço, à margem ou aquém dos saberes racionais reconhecidos – daquilo que Hegel chamará de ciências finitas ou positivas. [...] um discurso explicitamente antecientífico”.

[35] “Entre as ciências da razão pura, a filosofia do tempo atual é mais crítica do que dogmática, uma investigação do sujeito e, por causa disso, da possibilidade de pensar-se um objeto” (Refl. 4465 [1772]. Kant, 1926, AA 17: 562: 08-10).

[36] “A razão sente a necessidade [fühlt die Bedürfnis] de um fundamento real e não pode pensá-lo através de suas próprias leis; a partir disso é preciso ver que esse conceito não é objetivo” (Refl. 3967. Kant, 1926, AA 17: 369: 07-09). Essa razão que sente uma necessidade será retomada por Kant, em seu texto O que significa orientar-se no pensamento.

[37] Ajuizamento seria uma facultatis diiudicandi que, em Baumgarten (Metaphysica §607, [1750] 1993, p. 88), é separada da aptidão ou hábito de ajuizar denominado iudicium (das Vermögen zu beurtheilen; ou o poder de ajuizar). Em outros termos, podemos interpretar algo como: todos têm a faculdade de ajuizar, mas nem todos possuem Juízo (aquela faculdade em bom exercício ou amadurecida). De fato, o termo “ajuizamento” [Beurteilung] tem uma riqueza nas Reflexões de Kant, que não poderá ser explorada neste artigo. Nossa questão se limita a circunscrever o momento no qual a crítica é transposta ao terreno da metafísica ou das representações a priori. Para uma abordagem do termo Urteilskraft e de suas variações, em Kant, à luz das doutrinas tradicionais de língua alemã, cf. Ibáñez-Noé, 2005. Segundo o intérprete, comparando com Gottsched ou Bodmer, “[e]m Baumgarten uma duplicação acontece. Em primeiro lugar, ele não atribui o gosto nem à sensação nem ao entendimento, mas ao iudicium, e assim eleva a faculdade de julgar [Urteilskraft] a um poder [Vermögen] independente do ânimo. Em segundo lugar, ele distingue uma faculdade de julgar sensível de uma intelectual e identifica apenas a primeira com gosto (gustus)” (Ibáñez-Noé, 2005 p. 132) .

[38] Para o contexto do problema do assentimento e de uma comparação com as posturas dogmáticas e céticas, cf. Refl. 2663: “Crítica é a arte de ajuizar a relação [Verhältnis] do tomar-por-verdadeiro com a certeza. Dogmatismo: modo de pensar de fingir [affectiren] uma certeza apodítica. Ceticismo [é] não permitir nenhuma [certeza]” (Kant, 1924, AA 16: 458: 09-12).