MAIO DE 68 NA PERSPECTIVA DE CLAUDE LEFORT: A REINVENÇÃO DO AGIR POLÍTICO NO DECLÍNIO DO HORIZONTE REVOLUCIONÁRIO

 

Martha Gabrielly Coletto Costa[1]

 

Resumo: O artigo visa a situar a interpretação de Claude Lefort sobre a onda contestatória que tomou a França, em Maio de 68, e ressaltar os impactos que esse evento histórico provocou em seu pensamento político, sobretudo no que diz respeito à compreensão do estatuto da ação política, no âmbito das sociedades democráticas contemporâneas. Num primeiro momento, busca-se mostrar que sua leitura do acontecimento está ancorada numa reflexão sobre o fenômeno burocrático, o que permite a Lefort discernir a contestação social generalizada, sobrevinda não por acaso na Universidade, enquanto uma recusa da lógica capitalista-burocrática presente nas instituições francesas da época. Em seguida, abordam-se as repercussões de Maio de 68 no âmbito da reflexão teórica de Lefort e a maneira pela qual o filósofo é instigado a repensar as noções de história, sujeito político e revolução a distância de uma matriz de pensamento marxista. Trata-se, enfim, de acompanhar o esforço filosófico do autor, em sua dupla dimensão: a crítica do presente e a elaboração de um novo paradigma de emancipação.  

 

Palavras-chave: Maio de 68. Lefort. Burocracia. Capitalismo. Revolução.

 

Introdução

Passados mais de cinquenta anos, o “fogo de Maio” – para empregar uma expressão do sociólogo Emir Sader – continua aceso. A prova disso se encontra na intensa disputa, travada desde a irrupção da onda contestatória, em 1968, na França, até os nossos dias, em torno de suas causas, efeitos, significados, heranças. Trata-se de um acontecimento histórico arredio a classificações unívocas e, por isso mesmo, capaz de ensejar uma profusão de interpretações, as quais buscam apreender e estabilizar o seu significado. É o que se percebe em algumas das principais classificações que Maio de 68 recebeu, ao longo do tempo: psicodrama social, festa burlesca e diversionista da juventude burguesa, revolução cultural, ápice e declínio do social politizado, antessala do narcisismo, da apatia e do individualismo contemporâneos, campo de gestação de uma nova técnica de governo fundada no empreendedorismo etc.

Tais expressões são aqui evocadas apenas para indicar o embate entre algumas linhas interpretativas e chamar a atenção para a natureza específica do nosso tema de investigação. Mais do que um “objeto de análise”, Maio de 68 é um acontecimento, como explica Pierre Rosanvallon (1976, p. 97):

O acontecimento é inseparável de um desejo e de um imaginário, pois ele não existe em si, como uma coisa. Um acontecimento apenas existe, inicialmente, se ele é conhecido e reconhecido como produtor possível de efeitos, ou seja, se ele é lido e interpretado por um desejo e uma vontade. A “materialidade” de Maio de 1968 é muito pouca coisa perto de sua leitura/escritura. É a palavra e o desejo de ser de outra maneira que criaram Maio de 1968, que, do contrário, teria se resumido a uma grande greve operária e a um vigoroso protesto estudantil. O acontecimento não existe senão na maneira pela qual é lido pelos seus atores e espectadores (que se tornam assim um pouco seus atores também).

 

O acontecimento, portanto, existe na e pela leitura de seus intérpretes, que investem nele um certo significado (mais ou menos transformador), a depender da maneira como se inscrevem no mundo social e do tipo de desejo que nutrem em relação a ele. Isso explica não apenas a proliferação de discursos sobre Maio – o que é próprio da existência do acontecimento enquanto tal –, mas também a disputa pelo seu sentido, notável na oposição ferrenha das interpretações, conforme observado por Sader (1998, p. 4):

Muito se teorizou sobre 1968. Quando o fogo de maio ainda produzia fervura, as interpretações variavam da ideia de um “ensaio geral” na mais articulada versão trotskista, a de Daniel Bensaid e Henri Weber, uma espécie de 1905 russo, antevéspera do outubro de 1917, à tese de um renascimento do ideário anarquista, agora sob a forma de uma rejeição radical da sociedade de consumo de que o livro de Guy Debord (A sociedade do espetáculo) é a melhor expressão.

 

Como se apreende pela análise do sociólogo, o aspecto mais “rebelde” e “anárquico” dos acontecimentos ficou em primeiro plano somente nas primeiras interpretações. Nas décadas seguintes, teve início o apagamento das “chamas revolucionárias” de Maio:

No novo cenário das décadas de 70 e 80, as análises adquiriram o tom da virada conservadora, especialmente forte na França. No seu décimo aniversário, Régis Debray se encarregou de fazer a mais difundida nota fúnebre e “desmistificadora” de 68 [Modeste contribution aux discours et cérémonies officielles du dixième anniversaire[2]]. Os “novos filósofos” fizeram muito mais do que isso, associaram a utopia aos gulags, unindo-se alegremente ao ascendente coro direitista (Sader, 1998, p. 4).

 

            Nesse “coro direitista” dos anos 1980, seguindo o tom do discurso da pós-modernidade, destacaram-se vozes como a de Gilles Lipovetsky, em L’ère du vide: essais sur l’individualisme contemporain[3] (1983), e as de Luc-Ferry e Alain Renaut, em La pensée 68: essai sur l’anti-humanisme contemporain[4] (1985), autores que colaboraram para vincular o significado das contestações de Maio de 68 ao surgimento de certos fenômenos, como o individualismo, a heteronomia, o narcisismo e a indiferença[5]. O ajuizamento de Lipovetsky continua sendo paradigmático, nessa linha de comentário.

[...] como não assinalar em Maio 68 a deserção e a indiferença que trabalham o mundo contemporâneo? “Revolução sem finalidade”, sem programa, sem vítima nem traidor, sem enquadramento político, Maio 68, a despeito da sua utopia viva, permanece um movimento laxista e descontraído, a primeira revolução indiferente (Lipovetsky, 1983, p. 41).

 

Na sequência deste artigo, ao focalizarmos a perspectiva de Claude Lefort, pretendemos oferecer uma alternativa a tais intepretações que tendem a esvaziar o potencial político de Maio de 68. Seguindo uma trilha aberta pelo sociólogo Jacques Donzelot, objetivamos mostrar que a história desse acontecimento pode ser contada de modo que nos permita captar uma reconfiguração do “social” num sentido inverso ao do individualismo, com implicações mais fecundas para a vida coletiva[6].

Tal empreitada nos parece justificável pelas seguintes razões. Do ponto de vista da história intelectual, trata-se de resistir ao apagamento da memória em torno do fecundo intercâmbio que houve entre o pensamento de Lefort e o movimento de Maio de 68, intercâmbio que se deu, vale lembrar, no quadro mais amplo de atuação do Grupo Socialisme ou Barbarie[7], do qual Lefort e Castoriadis foram os principais animadores, como bem observa Olgaria Matos (1981, p. 51):

A crítica ao autoritarismo, a reflexão sobre as relações entre Teoria e Prática políticas, à forma tradicional da política virá à luz no contexto francês com o Grupo Socialismo ou Barbárie, que viveu de 1953 a 1965 ao redor de C. Lefort e C. Castoriadis. Foi da oposição ao comunismo oficial, quando uma postura libertária passa a envolvê-lo, que nasceu essa revista. Ela significará uma recusa do dogmatismo marxista no que ele tem de mais exasperador. O movimento de Maio retomou as críticas ao Partido e ao Estado burocráticos de origem “socialista”, os escritos da revista sobre as revoltas populares contra a burocracia na Alemanha Oriental, na Polônia, na Hungria, na Tchecoslováquia, as análises sobre a crise do stalinismo, sua morte ideológica e sua sobrevivência real.

 

Do ponto de vista interno ao pensamento lefortiano, a importância não é menor, visto que as análises sobre Maio de 68 possibilitam compreender um momento de transição decisivo, em seu percurso filosófico: a transição de um pensamento elaborado dentro de uma matriz marxista revolucionária a outro que será desenvolvido numa matriz política democrática. Buscaremos evidenciar que os acontecimentos de Maio de 68 contribuíram para que Lefort problematizasse a figura do sujeito histórico universal e a ideia tradicional de revolução (como tomada do poder de Estado, segundo o programa e a disciplina de um partido), ensejando a inauguração de uma nova linguagem política e de um novo estilo de ação e resistência ao poder. Ao tomar distância do horizonte da revolução, Lefort nos coloca diante de uma democracia em movimento permanente, como instituição contínua do social e, por essa razão, capaz de ultrapassar os seus limites, embora não esteja livre das ameaças de regressão.

Assim, a interpretação de Maio de 68 é um ponto de virada do pensamento do filósofo, a partir do qual sua concepção madura da democracia vai ganhar contornos ao longo dos anos 1970-80 e se caracterizar, fundamentalmente, como uma forma de sociedade que acolhe os efeitos benéficos do conflito, o qual proporciona a criação contínua de direitos e/ou a contestação contínua da ordem estabelecida, sendo, por isso, marcada pelo excesso da força de instituição sobre o instituído, ou seja, pela força de uma “desordem criativa”[8] que trabalha continuamente a sociedade democrática e permite enxergar a sua dimensão selvagem[9].

 

1 Maio de 68 na perspectiva de Claude Lefort

A visão de Lefort é comandada por uma metáfora que fornece a chave de compreensão fundamental do acontecimento em questão: a brecha. O movimento de Maio de 68 é uma espécie de abertura nos muros da avançada sociedade francesa da época. Por essa fenda transbordaram reivindicações até então canalizadas pelas organizações políticas tradicionais (sindicatos: sobretudo a CGT[10]; e partidos: especialmente o PCF[11]), invadindo o campo social nos seus mais diversos setores. Vale lembrar que  Lefort não se relaciona com esse evento como mero observador; está, ao contrário, implicado nele, precisamente numa época em que era professor em Caen e tinha alunos envolvidos no movimento, com os quais manteve proximidade, prestando, em alguns casos, apoio e proteção. Exercitando sua capacidade acurada de pensar o tempo presente, Lefort (2018, p. 57-85) redige o ensaio “A desordem nova”, ainda no calor dos acontecimentos.

Mergulhado no turbilhão, o filósofo não é capaz, obviamente, de antever o desfecho do movimento, mas dá por certo aquilo que considera a sua conquista simbólica irreversível: Maio de 68 aparece-lhe como um evento que destruiu o mito da racionalidade do sistema social de então e expôs a perda de legitimidade dos detentores do poder. Ainda mais notável é o fato de que a onda contestatória evidenciou “[...] que as grades do capitalismo têm uma abertura” (Lefort, 2018, p. 60); em outras palavras, ela desfez a aparência de inelutabilidade e de invulnerabilidade que o estágio avançado do capitalismo industrial havia forjado para si; enfim, ela mostrou que é possível lutar na sociedade moderna e que o poder não está totalmente imune aos desejos sociais de transformação. Além disso, o movimento difundiu em toda parte a percepção de que a pretensa “organização social” cobre e até mesmo engendra a desorganização, que a autoridade é acompanhada pela incompetência e que o universo das burocracias apenas sobrevive pelo recurso permanente à força policial e pela resignação dos governados. Trazida à luz pela explosão dos movimentos, essa percepção “[...] pode doravante ser posta à prova, se referir a um acontecimento importante, seguir seu caminho na consciência do grande número” (Lefort, 2018, p. 62).

            Embora marcada por forte hierarquização social e pelo conservadorismo nos costumes, a França governada por Charles de Gaulle, em 1968, era um típico exemplar da sociedade capitalista industrial moderna, desfrutando das benesses do Estado de bem-estar social. A modernidade, nesse caso, consistia na adoção de determinadas maneiras de organizar a produção, o trabalho, o conhecimento e, numa escala maior, as próprias relações sociais e intersubjetivas, com base numa suposta hierarquia de saberes e competências. Na realidade, a dita modernidade era o nome dado ao processo de burocratização que se alastrava por todos os setores da sociedade francesa, impondo seu quadro de regras e valores, considerados racionais e científicos. Mais precisamente, o fenômeno de burocratização caracterizado por Lefort (2018, p. 69) significa que, em todas as organizações da sociedade,

[...] uma minoria de dirigentes se cinde da massa dos executores, a informação se retrai ao espaço do poder, hierarquias manifestas ou ocultas se tornam os suportes dos aparelhos, os setores de atividade se compartimentam, o princípio de eficácia que rege a divisão do trabalho e do saber se faz passar por princípio de realidade, o pensamento se deposita e se petrifica em programas que fixam a cada um os limites do que é permitido fazer e pensar; em todas elas também, tentativas análogas se exercem para suscitar a participação do grande número em ações cujo sentido lhe é subtraído, técnicas análogas aparecem para ressuscitar a iniciativa desfalecida ou simplesmente produzir o simulacro de uma comunidade.

 

            Foi nessa sociedade tomada pela modernização/burocratização – onde cada elemento estava ordenado para impossibilitar o surgimento da contestação – que, inesperadamente, aflorou uma contestação generalizada, na qual diversos setores da sociedade tomaram parte (estudantes, operários, quadros, técnicos, artistas, pesquisadores etc.). Embora o caráter generalizado da contestação possa embaralhar as categorias de entendimento, Lefort identifica o lugar social específico que esclarece os motivos da propagação do movimento. A seu ver, não foi à toa que a Universidade tenha sido o seu epicentro. No entanto, não devemos buscar a chave de explicação no arcaísmo universitário, nem na suposta inadequação do ensino às demandas da economia moderna, nem na resistência do corpo docente às reformas, nem na oscilação da autoridade acadêmica ou mesmo na repressão desastrada da polícia. Para Lefort, se a Universidade foi o celeiro da agitação social é porque ela tinha (e tem) um papel fundamental na manutenção da sociedade capitalista-burocrática, uma vez que ela se funda na divisão entre dirigentes e executores.

Ora, tal divisão supõe e tira a sua justificativa de uma outra: a divisão entre competentes e incompetentes – é dessa dinâmica que a Universidade participa. Em outras palavras, a Universidade atua na reprodução da sociedade capitalista industrial, porque ela orienta suas ações de acordo com quadro normativo burocrático, preparando os estudantes para o reconhecer e se adequar a ele:

Falaremos de alienação, de opressão, de exploração na Universidade? Seria melhor dizer que nesse lugar, onde elas apenas se manifestam, tudo é estabelecido sob o signo de uma denegação constante do conflito, para que sejam aceitas lá onde reinam cruamente, ou seja, em todo o resto da sociedade. A Universidade trabalha para naturalizar a divisão entre dirigentes e executores, entre os que sabem e os que não sabem, [para naturalizar] a compartimentação das atividades, a fixação de cada um em sua função, a estrita separação do público e do privado, da atividade profissional e da vida política, de tal modo que a lei do capitalismo moderno encontre a obediência em toda parte – o que significa tanto o encargo da dominação quanto a submissão à autoridade (Lefort, 2018, p. 78).

 

Vemos, assim, a essência da relação social do capitalismo burocrático (relação social baseada na divisão entre competentes e incompetentes) ser questionada de dentro, isto é, desde o lugar destinado a reproduzi-la e a justificá-la. Por isso, não é fortuito que a ação dos estudantes tenha ganhado um significado e um alcance muito mais amplos, junto à sociedade. A reivindicação estudantil de participar da gestão da Universidade, por exemplo, chocou-se diretamente com o poder do Estado e com a lógica burocrática predominante no campo social. O choque, no entanto, é bastante revelador. Ele revela, precisamente,   

[...]  que a constituição de uma massa de meios de trabalho, separada da massa dos estudantes e dos professores que utilizam tais meios, responde a exigências que não são apenas exigências técnicas de formação; que é essencial ao funcionamento do sistema que, apesar de sua concentração nas grandes unidades de formação, os estudantes permaneçam indivíduos separados, cujo trabalho possa ser medido e sancionado em função de critérios objetivos; que, na falta de uma medida do trabalho estudantil, ou rigorosamente falando, de uma redução desse trabalho ao processo mensurável de aquisição de técnicas e conhecimentos, toda organização econômica fundada na especialização e na hierarquia das funções tornar-se-ia inviável (Lefort, 2018, p. 78-79).

 

            Apontadas as conexões entre Universidade e capitalismo moderno, Lefort volta-se à compreensão da natureza específica dos acontecimentos, buscando não se enganar pelas imagens de superfície. Em outras palavras, Maio de 68, ainda que tenha sido o palco de múltiplas reivindicações, não pode ser lido pela grade de um movimento reivindicativo, em sentido estrito. Embora tenha havido reivindicações relevantes, as quais passavam pela questão da participação, da autogestão, da contestação das hierarquias e das compartimentações, das práticas e métodos universitários, o mais notável, a seu ver, foram os efeitos simbólicos, o desvelamento de mecanismos profundos e invisíveis que mantêm uma ordem social e suas instituições em pé. Além de abalar o núcleo de sustentação do funcionamento e da autoridade da instituição universitária, as ações dos estudantes traziam à cena o processo de corrosão do próprio campo da legalidade, sob o impacto da ação pública e irreverente, almejando fazer reconhecer a sua própria legitimidade[12].

Sem programa, sem disciplina de partido, sem objetivo definido, os estudantes adentravam a cena pública, ou melhor, forçavam nela a abertura de um novo lugar para fazer circular as ideias, para realizar uma ação direta, performática, cuja eficácia consistiu em “[...] emperrar um mecanismo essencial ao funcionamento do sistema social” (Lefort, 2018, p. 67) e, com isso, expor e minar “[...] a adesão inconsciente da massa dos estudantes e dos professores àquilo que fazia a realidade de sua vida cotidiana” (Lefort, 2018, p. 67). Essa experiência foi capaz de extrapolar o âmbito da Universidade, porque os estudantes revelaram, pela sua própria ação, que os mesmos conflitos e as mesmas revoltas estavam presentes em outros setores da sociedade, igualmente tomados pelo processo de burocratização.[13]

É importante ressaltar que Maio de 68 favorece um novo entendimento dos caminhos que tomam as reivindicações, numa democracia moderna, na ótica lefortiana. Com frequência, as reivindicações precisam construir o próprio espaço em que vão se colocar, ou ainda, precisam cavar[14] no espaço público existente o direito a se exporem nele, a fim de fazer circular suas demandas. Isso fica claro quando pensamos em reivindicações oriundas de grupos minoritários na história moderna. A luta geralmente começa pela conquista de se fazer presente no campo do debate. Maio de 68 foi bastante paradigmático a esse respeito e, visto retrospectivamente, coloca em questão teorias que postulam a harmonização dos discursos pela condução de uma razão comunicativa ou a existência prévia e garantida de um espaço público pronto a acolhê-los. A passagem na qual nos baseamos para formular essa chave de leitura é aquela em que Lefort narra a conquista do espaço público por um grupo específico do movimento estudantil da Universidade de Nanterre, os Enragés[15].

Que não se procure noutro lugar a razão de seu sucesso: eles aparecem no meio estudantil radicalmente diferentes daqueles que os cercam e clamam a sua vontade revolucionária. Eles estão em ruptura com o seu meio. Numa sociedade saturada de discursos e de organizações, na qual a palavra e a ação são obrigadas a ter endereço fixo (assignés à résidence), na qual é preciso ter o seu lugar, enunciar sua identidade para ter o direito de agir ou de falar, eles criam um novo espaço. Seria melhor dizer: eles cavam um não lugar. Aí o possível renasce, um possível indeterminado, um possível que vai se revitalizar e se modificar de acontecimento em acontecimento, e que traz consigo um número de estudantes cada vez mais importante, desestabilizando, no seu curso, os próprios militantes políticos (Lefort, 2018, p. 70-71).

 

            Tais efeitos somente foram possíveis, porque os estudantes “contestaram os profissionais da contestação”, libertaram-se da imagem, da disciplina e da tutela das instituições partidárias e sindicais clássicas, ou seja, saíram dos caminhos trilhados pelas organizações tradicionais e foram capazes de empreender ações que impactavam a imaginação coletiva e despertavam o desejo de imitação. Para o olhar do filósofo político, importa destacar do conjunto dessas práticas o surgimento de um estilo de ação política sem precedentes: “É preciso também compreender que o encontro de um pequeno número a distância das organizações só tem eficácia, por sua vez, porque lhes é oferecida a possibilidade – por eles reconhecida – de intervir numa situação concreta, aqui e agora (Lefort, 2018, p. 72).

A ênfase no estilo e na temporalidade da ação política surgida em Maio de 68 é o traço que Lefort reteve como sendo a principal marca e talvez o principal legado do movimento. É a esse aspecto que Lefort se voltaria, vinte anos depois, no ensaio “Releitura” (2018, p. 255), conferindo-lhe ainda mais ênfase:

A referência aos grandes princípios não basta mais; com frequência, ela parece até mesmo suspeita. A teoria enquanto tal desperta uma desconfiança análoga à que inspira a disciplina do partido. Impõe-se a ideia de que é aqui e agora, frente aos outros – em situações que geralmente fazem parte de uma encenação – que se oferecem as oportunidades da ação. Daí a prática da interpelação, da provocação (que só raramente se transformou em perseguição), cujo objetivo é fazer aparecer o que o discurso convencional dissimula e, para além disso, a crença na ordem que o sustenta. Ora, foi justamente essa prática que tornou possível a propagação da contestação da autoridade de um meio a outro, da universidade ao liceu ou ao hospital, à empresa por vezes, à família por certo, até as igrejas.

 

Ao inventar um novo estilo de ação, performática e enraizada num meio específico, no aqui e agora, capaz de decifrar a política numa situação próxima e cotidiana, de denunciar a opressão e a exploração no contexto em que se manifestam, de apontar a face concreta da opressão onde quer que ela se encarne, os agitadores de Maio colaboraram para transformar o entendimento, o alcance e a temporalidade da ação política: realizaram, segundo a expressão de Donzelot, a promoção do presente[16]. Ao liberarem suas práticas da caução de uma teoria totalizante, distinguiam-se também dos militantes tradicionais, hábeis em construir grandes narrativas, discursos fechados, destinados a garantir “[...] um domínio imaginário sobre a sociedade” (Lefort, 2018, p. 75). O grupo de estudantes que ficou conhecido como Enragés não se mostrou movido pelo projeto de instituir novos partidos ou microburocracias, não elaborava novos programas políticos, mas se associava em tarefas imediatas que nem por isso deixavam de ter um sentido político transformador, na medida em que era capaz de operar “[...] uma contestação radical das relações sociais específicas da sociedade burguesa” (Lefort, 2018, p. 75).

Assim, debruçando-se sobre o estilo de ação e os discursos que se manifestaram na revolta estudantil, fulcro dos demais movimentos, Lefort os interpreta sob o signo da “extrema audácia” conjugada ao um senso de “realismo” – para usarmos os termos próprios do filósofo. A seu ver, um dos saldos mais importantes da experiência de Maio de 68 foi proporcionar uma compreensão mais acurada sobre as sociedades democráticas modernas, nas quais a instância do poder não pode ser suprimida e cuja intervenção é cada vez maior, e sobre os modos criativos, eficazes e realistas de atingi-lo (não de destruí-lo, tomá-lo ou extingui-lo). Para o filósofo (2018, p. 85), Maio tornou sensível a prática de uma oposição incessante ao poder e colaborou para impor uma revisão à ideia tradicional de revolução:

[...] o poder, em qualquer lugar que pretenda reinar, encontrará opositores que, no entanto, não estão prontos para instalar um poder melhor. Os opositores estarão sempre prontos para atrapalhar os planos de uma sociedade que procura se fechar em seu engodo e encerrar os homens em suas hierarquias. Eles apanharão todas as ocasiões para estimular as iniciativas coletivas, derrubar os compartimentos, fazer circular as coisas, as ideias e os homens, colocar cada um em condições de afrontar os conflitos em vez de mascará-los. Se não me engano, essa linguagem não se alimenta da ilusão de uma boa sociedade, livre de contradições. Se elas inspirarem ações de um novo gênero nos anos vindouros; [se inspirarem] grupos mais numerosos que outrora, se estes ganharem o gosto do possível sem perder o sentido do real, deveríamos então convir que a revolução amadureceu.

 

Este ponto merece destaque: o movimento de Maio de 68 ensejou uma profunda mudança na compreensão tradicional sobre a revolução e o sujeito histórico responsável por ela, o proletariado. Desse evento, Lefort buscou extrair consequências para aprofundar o entendimento sobre as ações políticas nas sociedades democráticas. A seu ver, as lutas políticas, para além das formas conhecidas de organização (partidos, sindicatos), tenderão a se desenvolver pela iniciativa de agitadores improvisados, à margem das instituições representativas tradicionais, agitadores “[...] capazes de apanhar uma ocasião, de explorar, no setor em que se encontram, a revolta que a opressão burocrática suscita e de fazer a demonstração prática de que a mesma revolta atua nos outros setores da sociedade” (Lefort, 2018, p. 75). A despeito da imagem de racionalidade, ordem e organização sob a qual a sociedade francesa de então se apresentava, a erupção de Maio tornou visível que essa mesma sociedade é permeada por brechas, através das quais a ordem estabelecida e as autoridades podem ser contestadas; são as mesmas brechas por onde, eventualmente, a pressão das reivindicações pode obter reconhecimento por meio da criação de direitos. As lutas democráticas serão apreendidas, cada vez mais, como a exploração dessas brechas, em contextos muito concretos, num aqui e agora.

Lançando um olhar sobre a trajetória do pensador francês, impõe-se a seguinte pergunta: afastado o horizonte da revolução, o que se pode esperar dessa nova perspectiva que entra em cena, promovendo o presente e a ação pontual enraizada num contexto específico, ou seja, renunciando a uma solução total e perene dos problemas da coexistência humana?

 

2 O horizonte tradicional da revolução em questão

Maio de 68 expôs um mundo cuja complexidade de relações e conflitos é muito diferente da configuração da sociedade burguesa que Marx tinha em seu horizonte, no século XIX. No passado, observa Lefort (1979, p. 367),

[...] o proletariado era estrangeiro; e é porque ele era tal e ao mesmo tempo o portador das forças produtivas, ele mesmo a maior força produtiva, que se designava como a Classe revolucionária. No presente, a posição do estrangeiro não aparece como aquela do produtor; mas, antes, ela se conquista na recusa dos modelos e das normas da sociedade industrial.

 

A passagem acima é reveladora da transformação que o entendimento acerca do sujeito político sofre, no pensamento lefortiano, sob os efeitos da onda contestatória do final dos anos 1960. Tal transformação pode ser compreendida como um alargamento do campo de ação tradicional do sujeito político: a esfera da produção perde o status de lugar privilegiado onde a ação social efetivamente transformadora pode emergir. Não que a esfera produtiva deixe de ser importante, nas dinâmicas de luta social no mundo contemporâneo, mas já não possui o protagonismo exclusivo, ou melhor, deixa de ser a instância, a qual, em última instância, determinaria a realidade social. Maio de 68 evidencia que o sujeito político não é apenas ou fundamentalmente aquele que ocupa uma posição específica na esfera da produção.

Mais ainda: revela que não há sujeito político prévio à ação, contudo, que ele só se constitui propriamente na ação, seja recusando as normas vigentes da sociedade capitalista-industrial, seja inventando novos modos de vida e sociabilidade, seja, enfim, reivindicando a efetivação ou a criação de leis e direitos. Em suma, ser sujeito político não é algo dado (um estado) decorrente da ocupação de uma posição determinada, todavia, um movimento (um vir a ser) e uma conquista permanentes que ganham forma e figura nos mais diversos âmbitos da trama social. Está aberto, assim, o caminho para a concepção de democracia desenvolvida por Lefort, nos anos 1970-80, cuja mola propulsora está na luta dos movimentos sociais por reconhecimento e direitos[17].

Além dessa mudança no estatuto do sujeito político, os acontecimentos desse período trouxeram à luz a emergência de atitudes contestatórias e de oposições tão heterogêneas, que se torna impossível resumi-las ao conflito entre os proprietários dos meios de produção e aqueles que se encontram privados deles, os proletários. Esse reconhecimento atinge a compreensão clássica sobre a centralidade da esfera produtiva como campo privilegiado da luta social. Nas palavras de Lefort (1979, p. 367):

[...] torna-se totalmente impossível fazer tudo convergir para uma sede revolucionária única; de conservar a imagem de uma sociedade centrada sobre a práxis de uma classe; de sustentar, parafraseando Marx, que a burocracia caminha para sua própria morte pela necessidade que ela tem de erguer contra ela, como um único homem, a massa dos despossuídos. As sedes de conflito são múltiplas; a reivindicação por excelência revolucionária da autogestão coletiva se expande de uma a outra; porém, se ela é mais bem reconhecida, ela também está cortada da raiz que lhe dava a teoria do proletariado – o grande Vivo, segundo Marx, no universo da Repetição.

 

            A crítica da ideia de revolução, que se elabora impulsionada pelos acontecimentos históricos, deve ser bem-compreendida, a fim de evitar a conclusão apressada sobre o seu significado: ela não redunda numa atitude teórica de aceitação da ordem estabelecida ou no elogio mais ou menos tácito das democracias ocidentais existentes. No entanto, dizer isso não nos torna imunes às resistências que tal crítica suscita. Afinal, a ideia de revolução é tão profundamente arraigada no pensamento e no imaginário político moderno, que problematizá-la desperta, de imediato, a seguinte questão: como abrir mão da referência a uma transformação radical da ordem estabelecida, sem nos expormos às promessas reformistas de eliminação gradual das desigualdades sociais, de ampliação progressiva de direitos e de participação social? No fundo, não seriam promessas cujo efeito seria apaziguar a luta de classes, frustrar as esperanças de transformações profundas, fortalecer as burocracias políticas e sindicais que monopolizam o tratamento das reivindicações e, assim, manter intacta a estrutura da ordem social?

            A questão é relevante e não pode ser contornada, mas desde já adiantamos que a crítica lefortiana da revolução não se deixa compreender no terreno da dicotomia revolução ou reforma. O próprio movimento de sua crítica nos esclarece que, ao se distanciar de uma certa ideia de revolução, Lefort visa, sobretudo, a recusar o ponto de vista de sobrevoo em relação à história humana, ponto de vista que apresenta a transformação social efetiva unicamente como resultado de uma ação que opera um corte radical entre o passado e o futuro, trazendo uma solução definitiva aos conflitos que surgem da divisão social. Lefort observa que está implícita, nessa concepção, a ideia (ou pretensão) de um domínio completo do social, ou seja, ela pressupõe que o social é uma matéria que se oferece sem resistência a um projeto de organização total pelo poder. Moldada pelas análises críticas do totalitarismo, nas décadas anteriores, a crítica lefortiana passa a mirar, nos anos 1960, as implicações mais ou menos veladas que constituem a imagem de uma sociedade instituída pela revolução, a saber, uma sociedade realizada, sem divisões, homogênea, harmômica, transparente, comunicável de ponta a ponta, em suma, uma “[...] sociedade inteiramente referida a si mesma, na qual as atividades reenviariam simultaneamente umas às outras e seriam medidas a um denominador comum” (Lefort, 2007, p. 237).

            Por sua vez, tal imagem implica necessariamente um saber totalizante sobre o social. Para que uma sociedade seja conciliada consigo mesma, é necessário, por exemplo, haver um saber sobre o que, quanto, como produzir, no âmbito da economia; quanto, como investir em educação; é necessário um saber que defina o que é cultura, o que e como pode ser produzido culturalmente; enfim, é necessário haver um saber acerca dos valores, regras e normas que constituem o “denominador comum da sociedade”, ao qual todas as atividades devem estar harmonicamente referidas. Nesse sentido, a representação da sociedade como espaço unificado e homogêneo, ao se mostrar dependente de um saber totalizante, revela-se também indissociável da representação de um ponto de vista do poder que seja externo ao social.

Em outras palavras, um saber totalizante, que organiza e unifica o social, somente é possível a partir de um olhar do alto, exterior ao social, de um poder capaz de ver e apreender o social por inteiro. São esses os desdobramentos envolvidos na ideia clássica de revolução, que somente a experiência do totalitarismo tornou visíveis. A reflexão madura de Lefort sobre a democracia depende, portanto, do afastamento dessa visão da história, centrada na práxis de um sujeito social único, na qual se anuncia a superação da divisão social e a constituição de uma sociedade harmônica e homogênea, controlada por um poder exterior e onisciente:

Em suma, era a crença numa solução, numa fórmula geral de organização da sociedade que eu tinha que denunciar como ilusória, mostrando que sobre essa ilusão havia se edificado – se edificava – o poder da burocracia, e que romper com essa ilusão (tentar romper, pois se trata de uma ruptura sempre por refazer) era, em contrapartida, a condição fundamental de uma luta em todos os terrenos, contra as formas atuais ou potenciais da dominação (Lefort, 2007, p. 239).

 

            Delineando-se em oposição ao paradigma revolucionário clássico, a sociedade democrática começa a despontar no pensamento lefortiano como uma forma de sociedade heterogênea, trabalhada incessantemente pelos conflitos, portadora de uma tensão insolúvel, onde as lutas contra a opressão e a dominação não têm previsão de fim; forma de sociedade, portanto, na qual o campo das lutas políticas é radicalmente alargado, desdobrando-se em múltiplas frentes. O horizonte da revolução sai de cena, mas é posto em seu lugar um campo efervescente e profundamente diferenciado de lutas sociais:

Luta, portanto, contra as camadas que monopolizam as decisões que afetam a sorte da coletividade em cada setor de atividade; luta contra a apropriação dos meios de produção e dos meios de conhecimento; luta que impede a petrificação do social sob o efeito de um poder coercitivo, necessariamente levado a crescer, a fechar-se sobre si, a imaginar-se na origem da instituição social; luta, nesse sentido, que não tem que se determinar em função da alternativa reforma ou revolução, objetivo parcial ou global, que tem sua justificação interna, pois seus efeitos ressoam a distância do lugar em que ela se desenvolve, pois sua eficácia pontual é ao mesmo tempo simbólica, ou seja, ela atenta contra o modelo estabelecido das relações sociais, modelo supostamente natural. Que essa luta possa se colocar sob o signo da autogestão nas empresas, disso estava e continuo persuadido, e também [continuo persuadido] de que ela deva visar, segundo as condições históricas, à criação de órgãos que reivindiquem sua autonomia: comitês ou conselhos. Mas, ao que me parece, é deixar-se cair na armadilha da ideologia representar a conclusão [dessa luta] na realidade e reduzir o poder ao qual se opõe a uma coisa real, limitado a um conjunto de aparelhos empiricamente determináveis, efetivamente destrutíveis (Lefort, 2007, p. 239-240).

 

            Afastada a visão que atribuía ao nível da produção o núcleo determinante do antagonismo social, novas formas de luta e resistência podem ser concebidas; afastada a figura de uma classe na qual “se efetua a dissolução de todas as classes” e “se realiza o destino da humanidade”, torna-se possível conceber a emergência de novos sujeitos políticos; enfim, afastada a compreensão de que o poder é uma coisa empírica que pode ser tomada ou destruída, novos modos de enfrentamento e conquistas sociais podem ser vislumbrados.

            Os eventos de Maio de 68, na França, configuraram uma situação decisiva para a experiência de pensamento lefortiana. São um marco que reorienta sua reflexão sobre a democracia, na medida em que permitem reavaliar certas noções políticas e discernir novos modos de contestação, de linguagem e estilo de ação, liberados da imagem tradicional da revolução. Nem por isso esse movimento deixou como saldo o esmorecimento da capacidade de agir politicamente. Ao contrário, ele pôs em xeque o “programa marxista revolucionário oficial”, sem abrir mão do desejo de mudar a vida, revelando a “desordem criativa” que pulsa no coração da democracia, conforme a descrição de Poirier (2020, p. 54-55):

Mais do que a tomada de poder e a transformação da sociedade por um governo que permanecerá necessariamente exterior à sociedade ativa [...], é o questionamento da Lei que rege a sociedade capitalista burocrática que revela, para Lefort, a extraordinária criatividade do movimento de Maio: abrindo um espaço de contestação a partir de um “não-lugar”, os estudantes não apenas colocaram em questão as instituições existentes, mas também fizeram nascer um clima de efervescência que se difundiu na sociedade, introduzindo desordem, no sentido em que aquilo que estava no seu lugar passou a não estar mais e, a partir de então, não podia reivindicar seu direito intrínseco a ocupá-lo: esse movimento suscitaria na sociedade inteira o desejo de transformar as condições de sua existência “aqui e agora”.           

 

Considerações Finais

A noção de “desordem criativa” é um passo decisivo rumo à concepção política madura de Lefort, construída pela “operação da negatividade”, a qual entra em cena com o processo inaugural da democracia moderna, a saber, a desincorporação do poder[18]. Lembremos que democracia, para Lefort, não é sinônimo de povo no poder, não é o governo do povo para o povo. O povo é uma noção vazia, simbólica, cuja identidade é latente, definido negativamente pela recusa da opressão. Esse vazio e essa negatividade que o definem são, no entanto, operantes. Mantida como referência do poder democrático, a negatividade que caracteriza o povo (ou, em linguagem atual, os sujeitos políticos da democracia) é o que funda e faz emergir a criação institucional, o exercício da cidadania, a criação dos direitos. Enquanto referência latente, a negatividade é capaz de imprimir movimento no arranjo institucional, de excedê-lo e colocá-lo em questão.

Lefort faz da negatividade uma espécie de ponto de fuga em relação ao instituído, um princípio do qual não se pode abrir mão, caso a nossa ênfase seja pensar a transformação contínua ou a criação política; em outras palavras, trata-se de uma tentativa de dar primazia à força de instituição frente ao instituído, conferindo legitimidade a uma ação política que se faça dentro, mas também fora dos limites institucionalizados. No fundo, Lefort tenta defender a ideia de um “um foco de legitimidade que está fora do poder, um foco de legitimidade indomável”, o qual pode ser empregado por diferentes atores (grupos, movimentos sociais), em suas diferentes lutas pela afirmação da igualdade e da liberdade[19].

            O enfoque na dimensão negativa do regime democrático tende a mostrar de que maneira uma ordem social instituída, que se quer organizada e racional, pode ser contestada e transformada, no curso da história. É nos momentos de contestação radical do status quo que o trabalho do negativo se intensifica, fazendo aparecer a face ambígua e indomável da sociedade democrática, abrindo no tempo histórico uma brecha cuja indeterminação pode permitir tanto um rearranjo da dominação quanto o surgimento do novo e a afirmação da liberdade.

Maio de 68 não foi uma revolução ou um movimento que se encaminhou para uma mudança radical de regime, mas deu expressão a uma “democracia selvagem”[20], a mesma que se fez presente, ainda que de maneira efêmera, nos processos revolucionários da Inglaterra, no século XVII, da França, no XVIII, e da Rússia, no XX. Guardadas as devidas diferenças, há algo em comum que vem à tona, nesses momentos em que a democracia expõe sua face selvagem, expressando-se inicialmente no campo da linguagem:

Observamos sempre uma formidável liberação da palavra, a proliferação de panfletos, de discursos, de sermões, de slogans e, simultaneamente, o advento ou o repentino alargamento de um espaço público, no qual se encontram, dialogam intensamente homens que na véspera se ignoravam, seja porque fossem realmente estranhos uns aos outros, seja porque sua convivência num mesmo lugar de trabalho ou de vida antes os deixava indiferentes (Lefort, 2018, p. 249).

 

A subversão iniciada no campo simbólico da linguagem acarreta efeitos concretos na vida social, e é essa relação entre o simbólico e o real que o filósofo põe em evidência:

A suspensão das proibições, a transformação das convenções que atribuíam a cada qual um lugar e um papel determinados na sociedade, a irrupção de uma palavra outrora sob vigilância, a proliferação de iniciativas individuais ou coletivas assinalam, muito mais do que uma revolta, [...] uma espécie descompartimentação da sociedade, a abertura de uma brecha que assegura uma nova circulação dos indivíduos e um novo intercâmbio dos pensamentos (Lefort, 2018, p. 249).

 

Formação de um espaço público, conquista do direito à fala, expressão de uma criatividade social insuspeita (porque julgada impossível, devido ao processo de homogeneização das democracias de massa avançadas), comunicação entre pessoas que até então se ignoravam ou que se encontravam emudecidas pela suposta privação da competência para se expressar. Maio de 68 foi o teatro dessa experiência complexa de difícil apreensão, um revelador de dinâmicas profundas da democracia, muitas vezes invisíveis ou dissimuladas. Para Lefort, o “saldo” do movimento é de natureza simbólica, e sua eficácia não pode ser menosprezada. Como negar que as relações entre mulheres e homens, pais e filhos, professores e alunos, tradicionalmente tão rígidas, assimétricas e autoritárias, não tenham se transformado, sob o efeito da onda contestatória[21]? Como negar o êxito de uma prática política que reivindicou e realizou uma “desordem nova”, fazendo da “desordem criativa” um princípio legítimo e imanente à ordem social democrática? Maio de 68, justamente por ser um acontecimento simbólico, não ficou preso no passado. Permanece como fonte produtora de efeitos possíveis, desafiando e inspirando a imaginação, o discurso e a prática política do tempo presente. Está, portanto, à nossa frente – e não atrás de nós[22].

 

MAY 68 FROM THE PERSPECTIVE OF CLAUDE LEFORT: THE REINVENTION OF POLITICAL ACTION IN THE DECLINE OF THE REVOLUTIONARY HORIZON

Abstract: The article aims to situate Claude Lefort's interpretation of the protest wave that took France in May 1968 and to highlight the impacts that this historical event provoked in his political thought, especially with regard to the understanding of the status of political action within contemporary democratic societies. First of all, we seek to show that his reading of the event is anchored in a mature reflection on the bureaucratic phenomenon, which allows Lefort to discern the generalized social contestation, which occurred not by chance at the University, as a refusal of the capitalist-bureaucratic logic present in the institutions French of the time. After, we address the repercussions of May 68 in the scope of Lefort's theoretical reflection and the way in which the philosopher is instigated to rethink the notions of history, political subject and revolution at a distance from a matrix of Marxist thought. Finally, it is about following the author’s philosophical effort in its double dimension: the critique of the present and the elaboration of a new paradigm of emancipation.

 

Keywords: May ‘68. Lefort. Bureaucracy. Capitalism. Revolution.

 

Referências

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Recebido: 09/03/2023

Aceito: 18/05/2023

Publicado: 22/10/2023



[1] Professora do Instituto Federal Fluminense (IFF), Câmpus Campos Centro, Campos dos Goytacazes, RJ – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4415-1989. E-mail: mcolettocosta@gmail.com.

[2] Em tradução livre, Modesta contribuição aos discursos e cerimônias oficiais do décimo aniversário. Há uma edição em língua portuguesa desse livro, feita pela Editora Dom Quixote. Cf. DEBRAY, Régis. Maio de 68: uma contrarrevolução conseguida. Lisboa: Dom Quixote, 2018.

[3] Usaremos a edição original francesa da Editora Gallimard. Em língua portuguesa, temos a edição da Almedina. Cf. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. 1 ed. São Paulo: Almedina, 2005.

[4] Em língua portuguesa, cf. FERRY, Jean-Luc; RENAUT, Alain. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo: Ensaio, 1989.

[5] Para um comentário crítico a respeito dessas linhas interpretativas, remetemos o leitor ao artigo de CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. “Maio de 68: o advento do individualismo e da heteronomia” (1989). Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/84761/87461. Acesso em: 08 mar. 2023.

[6] Pensamos, por exemplo, numa via como a do sociólogo francês Jacques Donzelot, o qual analisa o período em questão sob o prisma da politização do social. Cf. DONZELOT, Jacques. L’invention du social: essai sur le déclin des passions publiques, em especial, o capítulo IV: “La mobilisation de la societé”. Paris: Fayard, 1984. p. 179-263. Voltaremos, ao longo deste capítulo, a mencionar esse estudo, no qual Donzelot mostra que, na esteira da crise do Estado-Providência e, sobretudo, a partir de maio de 68, ocorre a emergência, ainda que efêmera, daquilo que ele designou como um social politizado, isto é, um social capaz de empreender ações políticas em função de relações transversais, por iniciativa de sujeitos engajados em meios concretos. Nossa hipótese é que Lefort, em sua visão madura da democracia (que se constituiu afastando a figura do proletariado para dar lugar a sujeitos políticos múltiplos e imprevisíveis), tem em vista uma certa concepção do social semelhante à descrita sociologicamente por Donzelot.

[7] Para um estudo detalhado sobre esse Grupo, indicamos a obra de GOTTRAUX, Philippe. Socialisme ou Barbarie: un engagement politique et intellectuel dans la France de l’après-guerre. Lausanne: Payot, 1997.

[8] A expressão é de Nicolas Poirier (2020).

[9] O qualitativo “selvagem” não se refere às ditas “sociedades selvagens” ou “primitivas” descritas pela etnologia, tampouco a um estado de natureza de tipo hobbesiano. De acordo com Miguel Abensour (1993, p. 228), a democracia selvagem em Lefort evoca algo “[...] que surge espontaneamente, começa de si e se desdobra de maneira ‘anárquica’, independente de todo princípio (arché), de toda autoridade – assim como das regras e das instituições estabelecidas e, portanto, [ela] se revela indomável. Como se ‘selvagem’ deixasse pairar acima da democracia uma inesgotável reserva de desordem [trouble]”.

[10] Fundada em 1895, CGT é a sigla de Confédération Générale du Travail [Confederação Geral do Trabalho].

[11] Fundado em 1920, PCF é a sigla do Parti Communiste Français [Partido Comunista Francês].

[12] A tensão entre legalidade e legitimidade perpassa toda a interpretação do movimento e fica clara, por exemplo, quando Lefort (2018, p. 66-67) assinala que os estudantes “[...] se colocavam na ilegalidade, na praça pública, aos olhos de todos, contando com o apoio da massa para pôr em causa a repressão, de tal modo que a própria lei se tornava duvidosa”.

[13] “O setor da informação, o da pesquisa científica, o da medicina, o do direito notadamente – em toda parte o problema de uma autogestão é posto, em toda parte a autoridade dos dirigentes ou dos quadros superiores é contestada; é o despotismo burocrático ou a feudalidade que são denunciados (uma e outro, aliás, muito frequentemente imbricados no mesmo lugar). Por um momento, até mesmo as igrejas são arrastadas no turbilhão da reivindicação: os jovens judeus ocupam o Consistório, os jovens protestantes condenam uma teologia opressiva, os jovens católicos se insurgem contra a hierarquia. Estes são sinais que não enganam. Com o abalo trazido à Universidade, estremece um modelo que se impunha em todos os outros quadros sociais. Porém, não é preciso dizer mais? Não é porque esse modelo se encontra mais bem dissimulado no âmbito da Universidade que, no momento em que ele se desvela, a coletividade entrevê o que normalmente escapa à sua consciência: a forma de uma relação social específica do capitalismo moderno? Mais ainda? Não é porque a Universidade é o lugar privilegiado da produção e da reprodução das estruturas mentais dominantes que ela não pode entrar em revolução sem que vacile, por toda parte, a ordenação dos papéis, das atitudes e das representações?” (Lefort, 2018, p. 76-77).

[14] O termo que Lefort usa, em francês (creuser), significa precisamente a ação de cavar, abrir, perfurar.

[15] Em tradução livre, furiosos, enraivecidos.

[16] Mais uma vez, nós nos apoiamos na argumentação de Jacques Donzelot. O sociólogo ressalta que, seja na versão revolucionária comunista (que trabalha com a ideia de uma boa sociedade a se alcançar no futuro: a “construção do socialismo”), seja na versão liberal (que faz da ideia de um progresso, sempre adiado, a pedra de toque da organização social), o que se tem é uma abdicação da soberania do indivíduo e do presente em nome do futuro. Com a promoção do presente (e da imaginação utópica, feita, em particular, por Marcuse), Maio de 68 pode se afirmar como um movimento que, antes de tudo, significou uma “[...] insurreição contra a ordem do tempo”. “A recusa da ordem do tempo, tal como ela se instala em favor da vitória estratégica do progresso: não é precisamente isto que significa explicitamente o movimento de Maio de 68 em relação a todos os poderes que compartilham os benefícios dessa vitória? Com efeito, contra o que o movimento esquerdista (gauchiste) dirige sua revolta em Maio de 68? Contra os pesos tradicionais na sociedade? Contra o dogma comunista da Revolução que deveria esperar sua hora, na obediência ao partido? Contra o dogma estatal do progresso? Revolta-se, de fato, contra tudo isso, mas sobretudo contra o compromisso que une todas essas forças estabelecidas e lhes permite atrasar a passagem da sociedade à idade de sua maioridade” (1994, p. 194-195). Donzelot argumenta que a estratégia do progresso consistiu, até então, em integrar os dois polos antagônicos da revolução e da tradição, os quais pesavam como uma ameaça para a existência da República. Maio de 68 acusa essa estratégia do progresso por ter integrado excessivamente essas duas tendências na produção da ordem social, de modo a reorganizar o regime tradicional de autoridade na família e nas instituições e desnaturar o espírito revolucionário em proveito das satisfações quantitativas. Maio de 68 acusa essa sociedade de fazer “[...] do progresso um fim em si, que ignora os sonhos, os desejos, os conflitos, as contradições – toda vida real da sociedade –, em nome dos imperativos abstratos do crescimento. Maio de 68 deve, antes de tudo, ser compreendido como uma insurreição contra a ordem do tempo” (1994, p. 195).

[17] A esse respeito, cf. o célebre ensaio “Direitos do homem e política” (Lefort, 2011, p. 59-86).

[18] Sobre esse ponto, vale recuperar o núcleo da intepretação de Lefort (1991, p. 44): “[... ] não devemos perder de vista que a destruição do poder pessoal, monárquico, tem por efeito deixar um vazio no lugar em que a substância da comunidade devia se afigurar: no rei, no seu corpo. Considerando esse fenômeno, a operação da negatividade confunde-se com a instituição da liberdade política. E o fato é que esta se mantém enquanto o poder for reconhecido como vedado à apropriação dos depositários da autoridade pública, enquanto seu lugar for julgado inocupável. O poder torna-se e permanece democrático quando mostra ser o poder de ninguém”.

[19] De maneira resumida, a transição de Lefort para a reflexão sobre a democracia ocorre a partir da articulação de três grandes movimentos: 1) o aprofundamento da crítica ao fenômeno burocrático e à sociedade totalitária, iniciada no final dos anos 1940; 2) o questionamento da natureza de um sujeito histórico universal, o qual retira sua singularidade da posição ocupada na esfera produtiva; 3) a elaboração de uma perspectiva teórica capaz de ressignificar a compreensão do sujeito político. Mostramos, em outro trabalho (Costa, 2019) que a interpretação teórica sobre a noção de povo em Maquiavel é fundamental para que Lefort caracterize os movimentos sociais como o sujeito político por excelência das democracias contemporâneas. Na esteira de Maquiavel, Lefort compreende a ação popular como aquela que nasce do desejo negativo de recusa da opressão e se orienta para a produção de universais concretos. No presente artigo, buscamos enfatizar o solo histórico no qual essa elaboração teórica está alicerçada, sustentando que Maio de 68 permitiu a Lefort alargar a compreensão sobre os modos de ação e de transformação social para além dos limites do paradigma marxiano. “Durante um tempo, acreditei ver o delineamento de uma revolução que seria a obra dos próprios oprimidos, que saberia se defender contra aqueles que pretendessem dirigi-la. Imaginava que tal revolução, beneficiando-se de toda a bagagem (acquis) do movimento operário, tornaria impossível a formação de um novo Estado e de uma nova classe dominante. As tentativas sucessivas do proletariado para se organizar e, vez ou outra por meio de ações violentas, para se libertar da opressão pareciam-me compor uma experiência na qual tudo contava, tanto os fracassos quanto os sucessos. Eu lhe emprestava o poder de decifrar, pouco a pouco, as figuras de sua alienação, dentre as quais a última e a mais secreta lhe era oferecida pela sua própria burocracia. É dessa maneira que eu me representava o encaminhamento da verdade na História. No presente, sei que me enganava. Essas ilusões começaram a se dissipar em 1958 tão logo realizada minha ruptura com Socialismo ou Barbárie, e desde então me obstinei a destruí-las” (1979, p. 9, grifos nossos). Em suma, Maio de 68 é o acontecimento que, historicamente, impulsiona a reflexão de Lefort rumo à compreensão da sociedade democrática, em especial, de suas dinâmicas de criação/transformação. Foge ao escopo deste artigo detalhar os desdobramentos dessa transição, mas podemos remeter o(a) leitor(a) ao ensaio “Direitos do homem e política” (Lefort, 2011, p. 59-86), onde eles poderão ser claramente observados.

[20] Nas palavras de Lefort (2007, p. 389): “[...] ninguém detém a fórmula da democracia e ela sempre conserva uma característica selvagem. É isso, talvez, que constitui sua essência [...] É na contestação ou na reivindicação daqueles que são excluídos dos benefícios da democracia que ela encontra seu impulso mais eficaz”.

[21] Sobre esses efeitos concretos no plano da socialização (relações homem-mulher, aluno-professor, brancos-negros), remetemos o leitor ao ensaio de Castoriadis, “O movimento dos Anos Sessenta”, o qual integra a coletânea Maio de 68: a brecha. Que se apreciem esses efeitos a partir das seguintes palavras do filósofo (Castoriadis, 2018, p. 231-232): “No movimento de Maio e por meio dele houve uma formidável ressocialização, ainda que ela tenha se revelado passageira. [...]. Elas estavam animadas pelas mesmas disposições: negativamente, uma imensa rejeição da futilidade vazia e da estupidez pomposa que caracterizavam então o regime gaullista, como hoje o regime mitterrando-chirraquista; positivamente, o desejo de uma maior liberdade para cada um e para todos. As pessoas buscavam a verdade, a justiça, a liberdade, a comunidade”.

[22] Em 2018, Edgar Morin redigiu um prefácio à edição brasileira da coletânea de ensaios sobre Maio de 68, que escreveu junto a Lefort e Castoriadis. Analisando retrospectivamente os acontecimentos da época, cinquenta anos depois de sua ocorrência, o filósofo chama a atenção para a sua fecundidade, a ser evidenciada no curso futuro do tempo (2018, p. 17): “Maio de 68 encarnou profundas aspirações, nutridas, sobretudo, pela juventude estudantil. Aspirações que os jovens sentem e das quais se esquecem quando são domesticados à vida que os integra ao mundo. Aspirações de mais liberdade, autonomia, fraternidade, comunidade. Totalmente libertário, mas sempre com a ideia fraternal onipresente. Os jovens combinaram essa dupla aspiração antropológica que brotou em diferentes momentos da história humana. Creio que a importância histórica de Maio de 68 é grande por tê-la revelado. Maio de 68 é da ordem de uma renovação dessa aspiração humana que reaparece de tempos em tempos e que ainda reaparecerá sob outras formas”.