Celi Hirata1
Resumo: No artigo, explora-se a concepção da natureza como livro, em Francis Bacon. Por um lado, utilizando essa imagem e confrontando a leitura do livro da natureza e a leitura dos livros dos autores consagrados, Bacon contrapõe duas vias completamente distintas da filosofia natural: a interpretação da natureza em contraste com a via da antecipação da mente. Por outro, ao se referir ao livro revelado e ao livro das criaturas como dois volumes distintos da mesma autoria, Bacon pleiteia a especificidade da investigação científica da natureza e sua relativa autonomia, em relação ao âmbito da religião, ao mesmo tempo que mostra o caráter de continuidade e complementação dos dois livros.
Palavras-chave: Livro da natureza e livro revelado. Interpretação da natureza. Autonomia da ciência.
INTRODUÇÃO
A analogia, consagrada por Santo Agostinho,2 do mundo natural com um livro ou um volume aparece com frequência na obra de Bacon e é utilizada para indicar a especificidade de uma fonte de conhecimento, a investigação da natureza, e distingui-la de duas outras, a erudição e a revelação.3 Por um lado, o filósofo confronta a antecipação da mente e a interpretação da natureza. Trata-se de dois tipos de investigação e de dois métodos distintos, os quais se diferenciam pelo objeto de seu estudo: o livro das criaturas em oposição aos livros escritos pela mão humana. Por outro, Bacon assinala a especificidade da investigação da natureza e a separa do domínio da religião, a partir da diferença entre os dois livros que possuem Deus como fonte: a natureza e as Escrituras.
Neste artigo, pretendemos examinar essa demarcação do objeto, papel e método da filosofia da natureza, com base na analogia do mundo natural com um livro, e indicar como essa analogia auxilia na construção de dois princípios que se tornaram caros, na modernidade: a concepção de que a ciência deve ter uma base experimental e a defesa da autonomia da pesquisa científica, em oposição ao princípio de autoridade.
O texto é dividido em três seções. Na primeira, investigamos como Bacon emprega a metáfora do livro da natureza, para rechaçar a filosofia natural dominante em sua época e seus procedimentos, advogando em favor de uma nova lógica, que deixa de ser um procedimento linguístico voltado aos argumentos e discursos, para se tornar um método direcionado às próprias coisas naturais a serem investigadas. Já na segunda parte, analisamos a articulação entre a filosofia da natureza e a religião, a partir da contraposição do livro revelado com o livro das criaturas: embora esteja subordinada a um projeto de natureza ético-religiosa, a pesquisa científica tem seu âmbito próprio, possuindo um objeto, um método e uma finalidade específicos. Por fim, indicaremos rapidamente como Galileu usa a analogia da natureza com um livro para fins semelhantes ao de Bacon, pleiteando a autonomia da pesquisa científica, tanto em relação à religião quanto em relação à tradição.
1 O LIVRO DA NATUREZA E OS LIVROS DA TRADIÇÃO EM BACON
Ao indicar e comentar os maiores erros que se infiltraram na constituição da ciência, Bacon realiza um diagnóstico severo a respeito de seu tempo, em O progresso do conhecimento:
Os homens se retiraram demasiado da contemplação da natureza e das observações da experiência, e têm estado dando voltas e voltas em torno de suas próprias ideias. Sobre estes intelectualistas, que, não obstante, são tomados como os filósofos mais sublimes e excelsos, deu Heráclito uma justa censura, ao dizer que os homens buscam a verdade em seus pequenos mundos particulares, e não no mundo grande e comum; porque desdenham soletrar, e deste modo ir lendo pouco a pouco no livro das obras de Deus, e, ao contrário, com contínua meditação e agitação de espírito urgem e, por assim dizer, invocam, seus próprios espíritos a adivinhar e dar-lhes oráculos, no que se vêem merecidamente defraudados. (BACON, 2006, p. 59).
A constatação de que os cultores atuais da ciência se afastaram do que deveria ser o seu objeto de estudo, a natureza, voltando-se, ao contrário, para o cultivo de suas próprias ideias e de seus mundos particulares, o que redunda num conhecimento completamente estéril, é frequentemente enunciada por Bacon, a fim de argumentar em favor da necessidade de uma filosofia da natureza e de um método completamente distintos daqueles em voga.
O autor enfatiza a diferença do método que pretende erigir e daquele vigente, seja no que diz respeito aos seus objetos, seja quanto ao tipo de investigação que constituem. A antecipação da mente consiste no método de cultivo do conhecimento relegado pela tradição, que se volta para a leitura e comentário dos livros dos Antigos, em especial de Aristóteles. Bacon utiliza o termo antecipação, porque o saber repetido e perpetuado nos comentários seria aquele que, partindo de algumas poucas experiências do senso comum, estabelece leis gerais sem a devida base indutiva para tanto. Nesse tipo de saber, a mente se antecipa e se mantém presa às próprias teias que criou. Consiste em mera erudição e propagação do saber já adquirido, caracterizando-se, assim, pela estagnação e esterilidade. Nas palavras de Bacon, é um saber que anda em círculos e que frequentemente degenera. E é devido a esse modo de proceder, na filosofia natural, que a ciência esteve restrita a certos autores e a autoridade foi tomada como verdade, e não a verdade como autoridade, conforme declara, na Historia naturalis et experimentalis (BACON, 1857c, p. 14).
Já a interpretação da natureza é a investigação científica dirigida à descoberta das formas. Trata-se da indução metódica apresentada no segundo livro do Novum Organum – cujo subtítulo é justamente “indicia vera de interpretatione naturae”. Embora a interpretação da natureza e a antecipação da mente sejam métodos ou lógicas que, enquanto tais, consistem em auxílios e instrumentos para o entendimento, divergem quanto ao seu emprego e seu fim, segundo Bacon expõe, no prefácio da Instauratio Magna.
A interpretação da natureza se caracteriza por ser uma lógica que se volta à natureza, à experiência e às coisas particulares, levando à compreensão do modo de funcionamento da natureza e à invenção de artes, em contraste com a lógica da antecipação da mente, a qual se direciona apenas ao discurso e às palavras e visa apenas à invenção de argumentos e ao convencimento nas discussões. Enquanto a Antecipação é conveniente para aqueles que almejam a vitória sobre os adversários, por meio de argumentos, a Interpretação deve ser aplicada por aqueles que objetivam a vitória sobre a natureza, por meio da ação, já que é pelo conhecimento das causas naturais que os homens se tornam aptos a transformar a natureza e a produzir os efeitos necessários para o bem-estar da humanidade (BACON, 2008, p. 29-30).
Embora o termo interpretatio denote tradicionalmente um procedimento que se aplica aos textos escritos e às palavras, Bacon emprega a expressão interpretação da natureza justamente para marcar a diferença do novo método em relação às práticas usuais de comentários de autoridades, na filosofia da natureza: enquanto o objeto da antecipação são os axiomas já estabelecidos e os livros redigidos por autores consagrados, e a sua lógica é dirigida ao discurso e às palavras, a interpretação da natureza visa a escrutinar o livro das criaturas ou a obra de Deus. Assim, tanto a imagem do livro das criaturas como a terminologia da interpretação da natureza são adotadas por Bacon, precisamente para se opor a uma tradição que Gaukroger sugere ter-se originado com a noção de que a natureza poderia ser lida como um livro. Segundo esse autor, essa concepção
[...] reforçou a ideia de que o método empregado na interpretação das Escrituras poderia ser um modelo apropriado para a interpretação da natureza; e é notável como a filosofia natural era exercida exclusivamente com base em direções textuais da tradição escolástica: natureza era algo a ser compreendido a partir dos escritos dos mestres passados, que eram tratados como repositórios da verdade. (GAUKROGER, 2006, p. 136).
Ora, a concepção de natureza como livro e o conceito de interpretatio naturae servem justamente para Bacon demarcar o seu distanciamento em relação a essa tradição descrita por Gaukroger: por um lado, o filósofo pretende assinalar a diferença entre o livro revelado e o livro da natureza (como indicaremos na segunda parte deste artigo). Por outro, deseja mostrar como a interpretação da natureza não deve se basear em procedimentos de interpretação textual, nem no saber consagrado pela tradição, mas exige um caminho inteiramente novo. Trata-se, como Bacon escreve, na epístola dedicatória da Instauratio Magna, de um procedimento inédito em seu gênero, muito embora copiado de um modelo muito antigo: do próprio mundo, da natureza das coisas e da mente (BACON, 2008, p. 9).
Bacon explora, ademais, a analogia da linguagem da natureza e de como ela não pode ser aprendida em função dos procedimentos linguísticos humanos. Em Temporis Partus Masculus, de 1603, declara que, ao tentar interpretar a natureza, muitos se encontram numa situação análoga àquele que tenta ler e interpretar um texto numa língua que não conhece, instaurando falsas relações entre as coisas, da mesma forma que alguém, ao se deparar com uma palavra estrangeira parecida com alguma de seu idioma, acredita poder atribuir-lhe o mesmo significado, imputando à natureza o que diz respeito aos seus próprios ídolos (BACON, 1857e, p. 536).
Ora, o primeiro passo na aprendizagem da linguagem da natureza e de seu alfabeto consiste em purificar a mente das doutrinas fabulosas legadas pela tradição, as quais impõem à natureza as regras do nosso discurso convencional. Como Bacon afirma, em Historia naturalis et experimentalis, os autores, ao criarem mundos próprios, ao invés de se debruçarem sobre o mundo criado por Deus, aprendem as coisas como gostariam que fossem e não como as mais ajustadas à sabedoria divina. Imprimimos, assim, o selo da nossa imagem nas criaturas e obras de Deus, ao invés de reconhecer nelas o selo do criador (BACON, 1857c, p. 14). Estampamos os nossos ídolos na natureza, em lugar de reconhecer nas coisas as ideias da mente divina, que são as verdadeiras marcas gravadas por Deus nas criaturas, conforme Bacon enfatiza, no vigésimo terceiro aforismo do Novum Organum (1979, p. 17).
Daí a necessidade de purificação da mente e de reaprendizagem. É nesse sentido que Bacon transpõe a sentença bíblica relativa ao reino dos céus (Mateus, 18, 3) para o âmbito do saber, argumentando que é preciso se tornar novamente criança para ser admitido no reino do conhecimento e reaprender o alfabeto e a linguagem perdidos com a queda, linguagem com a qual os homens nomeavam as criaturas e mantinham seu domínio de direito sobre o restante da criação (BACON, 1857d, p. 224). É preciso reconhecer a indigência do nosso conhecimento e conduzir a investigação gradualmente, por soletração, até nos tornarmos capazes de interpretações mais fiéis da natureza. É assim que o caminho da nova ciência se assemelha a uma segunda infância, na qual o alfabeto da natureza deve ser reaprendido (BACON, 2006, p. 190). Eis o que Bacon proclama, em Historia naturalis et experimentalis:
Se houver humildade perante o Criador, reverência e engrandecimento de sua obra, caridade nos homens e zelo para aliviar as necessidades e sofrimentos humanos, amor da verdades nas coisas naturais e ódio das trevas, e desejo de purificar o intelecto, deve-se rogar reiteradamente aos homens que descartem, ou pelo menos deixem de lado, por um momento, essas filosofias volúveis e despropositadas que antepuseram as teses no lugar das hipóteses, que tornaram a experiência escrava e triunfaram sobre as obras de Deus; e que, humildemente e com certa veneração, caminhem na direção do desdobramento do volume das criaturas, apliquem-se e laborem detidamente nele e se voltem ao mundo com a mente expurgada das opiniões, de maneira casta e íntegra. Essa é a língua e o idioma que era propagado em todos os lugares da terra, antes de se produzir a confusão babilônica; isso foi perdido pelos homens. Que rejuvenesçam e se tornem novamente crianças para ter em mãos o alfabeto do mesmo. (BACON, 1857c, II, p. 14-15).
A língua e o alfabeto nos quais o volume das criaturas foi escrito foram perdidos com o pecado original e a confusão babilônica – fraqueza que não foi remediada pelas filosofias, as quais, ao contrário, extraviaram a humanidade do caminho do reaprendizado da língua, ao se desviarem da experiência e do exame do volume das criaturas. O comércio entre o intelecto humano e a natureza foi perdido e são necessários uma nova ciência e um novo método, para restabelecê-lo.
Bacon recorre à imagem da natureza como um livro escrito por Deus, não apenas para destacar a diferença entre a filosofia da natureza advogada por ele e aquela calcada na tradição e na doutrina aristotélica, mas também para sublinhar a complexidade do código no qual foi escrita e a dificuldade de sua leitura, descrevendo a atividade científica como desvelamento – o que reforça o preceito de que é preciso abandonar as doutrinas vigentes e formular um novo método apto a auxiliar a mente nessa difícil tarefa. No Parasceve ad historiam naturalem et experimentalem (§5), Bacon afirma que os objetos naturais estão velados por uma máscara e um véu, escondidos sob a variedade de configurações e aparências externas, sendo que a história natural é um passo fundamental para desvelá-los, em especial a história das artes (BACON, 1857a, p. 399).
Além dessa metáfora, Bacon ainda caracteriza a estrutura do universo como um labirinto repleto de nós e irregularidades, diante das faculdades humanas de apreensão e compreensão:
Para o olho do entendimento humano, o universo estrutura-se como um labirinto, apresentando de todos os lados tantos caminhos ambíguos, tantas similitudes enganosas de objetos e sinais, tantas naturezas irregulares nas suas linhas, tantos nós e cruzamentos. Ora, o caminho deve ser feito sob a luz incerta dos sentidos, luz que por vezes brilha e outras vezes se encobre, através da experiência e dos particulares. (BACON, 2008, p. 20).
Bacon indica amiúde a debilidade da mente humana no conhecimento das coisas, sustentando que a natureza supera muito, em complexidade, o entendimento humano. A imagem que o autor frequentemente invoca é a de um espelho deformado ou encantado e seus reflexos distorcidos. Deus moldou a mente como um espelho ou vidro capaz de refletir a imagem do universo (BACON, 2006, p. 21)4, mas, com a queda, passou a refletir desigualmente o raio das coisas, distorcendo-as (BACON, 1979, p. 21). As entradas para a mente humana estão bloqueadas por ídolos, de tal modo que não permanece nenhuma superfície limpa e polida, na qual a luz natural genuína possa ser recebida (BACON, 1857e, p. 529). Embora reitere a possibilidade do conhecimento científico e afirme que um dos obstáculos a impedir a sua obtenção sejam o desespero e a crença de que a mente humana não seja capaz de conhecer as coisas, Bacon declara frequentemente que a opinião oposta é ainda mais perigosa: que a confiança excessiva na nossa capacidade de compreensão e a crença na nossa riqueza é a causa de nossa indigência e a razão pela qual não buscamos os instrumentos necessários para o comércio da mente com as coisas. A natureza é labiríntica e os sentidos, que constituem a luz que ilumina o caminho, são muito débeis, em face da sutilidade das operações naturais.
Uma vez que a natureza é um labirinto para a mente humana e que as coisas naturais estão veladas, a atividade científica é concebida como desvelamento e descoberta, que só pode ser bem-sucedida com o auxílio de instrumentos. Citando Salomão, Bacon frisa que “[...] a glória de Deus está em ocultar as coisas e a glória do rei em encontrá-las, como se, à maneira do jogo inocente das crianças, a divina majestade se deleitasse em ocultar suas obras para que depois estas fossem descobertas.” (BACON, 2006, p. 68-69). A fim de que evitemos impor os nossos próprios ídolos às coisas naturais e encontremos, ao contrário, as verdadeiras ideias da mente divina, é preciso encontrar o fio do labirinto, o qual é dado pelo método indutivo e envolve uma história natural e sua sistematização, além de uma série de experimentos (BACON, 1979, p. 228).5
A concepção de que as coisas naturais estão ocultas e de que Deus imprimiu nelas a sua marca – marca que denota a sua onipotência – não se presta, pois, para defender a tese de um significado secreto das coisas naturais e justificar uma interpretação alegórica da natureza subordinada a um outro âmbito de verdade, como ocorre na tradição medieval da metáfora do livro da natureza (HARRISON, 1998), mas serve, ao contrário, para indicar a dificuldade da interpretação da natureza e a necessidade de um método que lhe é próprio, distinto dos procedimentos de outros domínios do saber. Ou seja, a afirmação do caráter labiríntico e oculto da natureza está correlacionada, na filosofia de Bacon, com a conclamação para o aprofundamento da pesquisa empírica imanente do mundo natural, a qual é o único meio humano de desvelar o livro das criaturas.
Por fim, ainda a respeito da concepção da natureza como livro, com sua linguagem própria, Bacon expõe um Abecedarium naturae, que se encontra em estado fragmentário, na sua Historia naturalis et experimentalis (BACON, 1857c, p. 85-88). Contudo, o autor não apresenta propriamente as ferramentas de decodificação e de interpretação da natureza, muito menos uma exposição da estrutura da natureza, mas sim um conjunto de símbolos e notações a serem usados na catalogação e ordenação dos dados obtidos – algo mais direcionado à exposição do que à descoberta. Mas Bacon adverte que a ordem e as divisões do alfabeto não devem, de maneira nenhuma, ser tomadas como as divisões e a ordem das próprias coisas, pois isso seria inverter as coisas e considerar como conhecido precisamente o que se deve ainda investigar. Trata-se apenas de notações e títulos convenientes para a inquisição. Em momento algum Bacon sugere uma chave universal de interpretação da natureza, como farão os mecanicistas e adeptos da física matematizada, logo em seguida. Ao contrário, para o filósofo, é preciso aprender o abecedário da natureza, com cada uma de suas letras ou formas, o que exige um grande número de observações metodicamente conduzidas para cada uma delas.
Dessa forma, em todo esse conjunto de analogias da investigação da natureza com a interpretação de um livro, que exige o aprendizado de uma linguagem desde seus fundamentos, por um procedimento de soletração, por se tratar de uma linguagem radicalmente diferente daquela empregada nos livros humanos, Bacon enfatiza a disparidade entre o seu projeto de ciência e as doutrinas que se contentam em interpretar os livros de Aristóteles. Assim como intitula a sua obra Novum Organum, em oposição ao Organon aristotélico, remanejando radicalmente o sentido de lógica, todo o vocabulário referente a livro, volume, interpretação, linguagem e alfabeto é modelado por Bacon de maneira a demarcar o seu distanciamento em relação a uma tradição de comentários em filosofia da natureza,6 bem como a exortar os homens a se voltarem à experiência e à verdadeira investigação da natureza.
2 O LIVRO DAS CRIATURAS E O LIVRO REVELADO
Além do livro das criaturas, objeto do intérprete da natureza, há outro livro de que Deus é fonte: o livro revelado ou as Escrituras. Se a oposição entre a leitura dos livros humanos consagrados pela tradição e do livro da natureza possui a função de distinguir duas vias completamente diferentes da filosofia da natureza e seus métodos correspondentes, bem como contrastar a via que leva à verdade e à utilidade e a via da esterilidade, a imagem da duplicidade dos livros divinos serve principalmente para a defesa do cultivo da filosofia da natureza, diante das acusações dos teólogos, por um lado, e para a separação entre os domínios da fé e da ciência, por outro. E é a partir dessa distinção que Bacon se opõe tanto àqueles que aspiram deduzir os fins divinos, com base na investigação da natureza, ou impor doutrinas da filosofia à religião como àqueles que pretendem extrair ensinamentos de física, a partir do Gênesis e de outras partes do texto bíblico. Dessa maneira, a imagem dos dois livros serve não apenas para indicar os limites da filosofia da natureza, quanto para separar ambos os domínios e dotar de relativa autonomia a investigação da natureza perante a teologia. Mas serve também para mostrar como um livro leva ao outro.
Em primeiro lugar, a imagem dos dois livros e de sua distinção serve para indicar a especificidade do papel da filosofia da natureza e das artes dela decorrentes e justificar a sua busca e desenvolvimento. Para Bacon, a leitura do livro da natureza e a leitura do livro revelado possuem funções distintas, na reparação do pecado original e na restauração do estado originário da humanidade, que é a preocupação central de Bacon, a qual norteia todo o seu projeto da Instauratio Magna. Como afirma, nas palavras que encerram o Novum Organum, “[...] pelo pecado o homem perdeu a inocência e o domínio das criaturas. Ambas as perdas podem ser reparadas, mesmo que em parte, ainda nesta vida; a primeira com a religião e com a fé, a segunda com as artes e as ciências.” (BACON, 1979, p. 230).
Enquanto a inocência é restaurada pela religião e pela leitura do livro revelado, que fornece o conhecimento, quer das leis divinas, quer do bem e do mal, a recuperação do domínio original sobre as demais criaturas, a qual, por direito, pertencia aos homens, é alcançada por meio da leitura do livro da natureza, que propicia o conhecimento do modo de produção dos efeitos naturais e das naturezas simples e, por conseguinte, o poder de produzir esses mesmos processos e naturezas simples, e as artes pelas quais os efeitos almejados são produzidos. Afinal, como Bacon expõe, no famoso terceiro aforismo do Novum Organum, a natureza só pode ser vencida, quando se lhe obedece. É apenas pela humilhação da mente humana, conforme Bacon amiúde declara,7 e pela sujeição da mente à observação das coisas particulares (ou seja, pela leitura do livro das criaturas e pelo cultivo da verdadeira filosofia da natureza) ou, ainda, pelo seu ministério, que se pode aspirar ao poder de transformar a natureza em prol do bem-estar da humanidade e à restauração da condição originária de senhoria. Com efeito, o poder que ainda restava sobre as criaturas depois da queda foi perdido justamente porque deixamos de ser ministros da natureza e quisemos ser como Deus, seguindo os ditados de nossa própria razão (tal como os intelectualistas), ao invés de nos voltarmos à experiência (BACON, 1857c, p. 14).
Dessa forma, Bacon – que possui como uma de suas principais causas a defesa e o elogio do conhecimento – defende a ciência da acusação dos teólogos: estes consideram que o conhecimento incha a mente dos homens e foi a causa da queda e da perdição humanas (BACON, 2006, p. 19). O filósofo inverte esse juízo, argumentando que o conhecimento não só não foi a causa do pecado original, como também é o remédio para recuperar parte do que foi perdido com o decaimento, propiciando aos homens o domínio sobre as demais criaturas. Bacon alega que a fonte do pecado não foi o conhecimento em geral, mas a pretensão de Adão de obter por si próprio o conhecimento do bem e do mal, ao querer dar a si mesmo as leis morais, independentemente dos mandamentos divinos (BACON, 2006, p. 20). O pecado do orgulho diz respeito, dessa maneira, tanto à pretensão de alguns de quererem impor à natureza o que concerne unicamente a sua própria razão (procedimento dos intelectualistas e daqueles que se voltam aos livros humanos, ao invés do livro da natureza) quanto à presunção de desdenhar dos ensinamentos morais divinos.
Bacon enfatiza a distinção das fontes de conhecimento e a importância de sua separação. Por um lado, o conhecimento das operações naturais só pode ser obtido pela observação metódica da natureza; por outro, o conhecimento das leis morais depende do conhecimento da vontade divina, que se obtém pela leitura das Escrituras. O livro revelado e o livro da natureza ou das criaturas revelam aspectos diferentes de seu autor: enquanto as Escrituras evidenciam a vontade de Deus e as leis que ele dirige aos homens, o livro das criaturas manifesta seu poder, por meio de suas obras (BACON, 1857d, p. 221; 2006, p. 71). Essa distinção quanto aos livros e seus objetos deve ser observada não apenas na delimitação do campo da filosofia da natureza, mas mesmo da teologia natural, na medida em que consiste nos rudimentos do conhecimento concernentes a Deus que podem ser obtidos pela mente humana, a partir da contemplação de suas criaturas. Ao descrever esse ramo do saber, no De Augmentatis Scientiarum, Bacon indica os seus limites:
Os limites desse conhecimento são tais que bastam para refutar e convencer o ateu e para informar no que diz respeito à lei natural, mas não para estabelecer a religião [...] pois nenhuma luz da natureza se estende para declarar a vontade e a adoração de Deus. Pois todas as obras mostram o poder e a habilidade do artífice e não a sua imagem; o mesmo se dá quanto às obras de Deus, que mostram a onipotência e a sabedoria, mas não retratam a imagem do artífice [...] Que Deus existe, que ele governa o mundo, que ele é sumamente poderoso, que ele é sábio e presciente, que ele é bom, que ele recompensa e vinga, que ele é objeto de adoração – tudo isso pode ser demonstrado tão somente a partir de sua obra. (BACON, 1857b, p. 544-545).
Há alguns conhecimentos sobre Deus que podem ser obtidos pela contemplação da natureza: que ele existe, que é poderoso e que governa o mundo, de maneira sábia e justa. Entretanto, não podemos saber no que consiste essa sabedoria e justiça, em seus pormenores, nem inferir nada sobre a sua vontade e desígnios, e, por isso, tal conhecimento é suficiente para refutar o ateísmo, mas não para construir, a partir dele, os ensinamentos religiosos. O governo divino sobre este globo é, para nós, um corpo obscuro e sombrio: podemos saber que se trata de um governo providencial, contudo, nos escapa os fins dessa providência (BACON, 2006, p. 304-305).
Assim, não se deve confundir o objeto do livro da natureza e o objeto do livro revelado: não se pode inferir nada acerca da vontade e dos desígnios divinos, com base na contemplação de suas obras, como também não se deve construir uma filosofia natural a partir das Escrituras. Para Bacon, é um erro misturar as coisas eternas com as temporais e buscar no livro revelado o que diz respeito a assuntos naturais, já que este não é o objeto contemplado nas palavras de Deus, que visam, ao contrário, ao ensinamento moral:
A intenção ou propósito do Espírito de Deus não é expressar matéria natural nas Escrituras, salvo de passagem e para acomodar à capacidade humana o que se diz de matéria moral ou divina. E é norma certa que Authoris aliud agentis parva authoritas [Um autor tem pouca autoridade naquilo que não faz de seu tema], pois estranha conclusão seria, se, empregando-se para ornamento ou ilustração um símil tomado da natureza ou da história, conforme a alguma ideia popular, por exemplo, de um basilisco, um unicórnio, um centauro, um Briareu, uma hidra etc., com isso tivesse que se pensar que afirma positivamente a existência disso. (BACON, 2006, p. 320).
Numa argumentação semelhante àquela empregada por Galileu, poucos anos depois, Bacon argumenta, nessa passagem de O progresso do conhecimento, que tudo o que não concerne a questões morais e divinas é introduzido a título de ornamento e ilustração nas Escrituras, a fim de facilitar o ensinamento religioso. As passagens bíblicas que tratam de questões naturais possuem uma função retórica e não propriamente informativa, ajustando-se aos lugares-comuns e não à verdade em si. Por isso, não devem ser interpretadas literalmente, nem devem ser tomadas como autoridade em filosofia natural.
Quem mais se serve desse expediente condenado por Bacon é Paracelso e sua escola, que pretendiam encontrar verdades relativas à natureza, no primeiro capítulo do Gênesis e em outras partes da Bíblia (BACON, 1979, p. 34). Não é à toa que, em Temporis Partus Masculus, esse autor se destaque na crítica realizada por Bacon às doutrinas que prejudicam o desenvolvimento da ciência, por nos desviarem da perambulação do nosso globo e da luz da natureza, a fim de expor, em seu lugar, as fábulas de seus autores. Embora o arrolamento das doutrinas condenadas seja deveras extenso, Paracelso é, nas palavras de Bacon, merecedor das acusações mais graves: ao misturar o divino com o natural e o profano com o sagrado, corrompeu tanto a verdade humana como a religiosa (BACON, 1857b, p. 533).
Igualmente grave, os Escolásticos degradaram a filosofia e a religião, ao incorporarem a doutrina de Aristóteles no corpo da religião (BACON, 1857b, p. 596). Da mescla de fé e filosofia surge uma filosofia absurda, como também uma religião herética (BACON, 1979, p. 33-34). Bacon adverte que as coisas humanas não devem interferir nas coisas divinas e, assim, produzir obscuridade no que concerne aos mistérios divinos. Antes, é preciso dar à fé o que é da fé (BACON, 2008, p. 23).
Da mesma forma, é condenável a pretensão de conhecer os desígnios divinos a partir da consideração da natureza, já que, com base na obra, não se pode inferir nada sobre os desígnios de seu autor. No que diz respeito ao objeto, Bacon defende que a relação entre o livro da natureza e o seu autor não é de semelhança, e, com sua leitura, podemos inferir apenas o seu poder e sabedoria, mas nada acerca de sua vontade ou mandamentos, que são questões tratadas nas Escrituras. Bacon nega a possibilidade de interpretação alegórica da natureza e refuta a doutrina dos neoplatônicos, os quais concebem o mundo natural como a imagem e a manifestação viva de Deus e que buscam os arquétipos divinos no mundo (ROSSI, 1992, p. 82-83). Afinal, Deus é único e não possui nada em comum com as criaturas, segundo Bacon indica, em Valerius Terminus. Ademais, do ponto de vista do sujeito cognoscente, a fonte de conhecimento própria das coisas naturais, os sentidos, é como o Sol: revela o globo terrestre, mas obscurece e esconde o celestial (BACON, 1857d, p. 218). A aliança entre os sentidos e a razão, no verdadeiro método indutivo, só pode produzir conhecimentos relativos aos processos e modos de produção dos efeitos, mas nenhum conhecimento quanto aos seus fins.
Querendo ir além do que podem e buscando as causas dos princípios universais da natureza, os homens acabam caindo num antropomorfismo e retrocedendo ao que está mais próximo, a saber, às causas finais, que mais dizem respeito às intenções e às ações humanas do que à natureza ou à sabedoria divina:
O intelecto humano se agita sempre, não pode se deter ou repousar, sempre procura ir adiante. Mas sem resultado [...] Mas de maneira mais perniciosa se manifesta essa incapacidade da mente na descoberta das causas: pois, como os princípios universais da natureza, tais como são encontrados, devem ser positivos, não podem ter uma causa. Mas, mesmo assim, o intelecto humano, que não pode se deter, busca algo. Então, acontece que buscando o que está mais além acaba por retroceder ao que está mais próximo, seja, às causas finais, que claramente derivam da natureza do homem e não do universo. Aí está mais uma fonte que por mil maneiras concorre para a corrupção da filosofia. Há tanta imperícia e leviandade dessa espécie de filosofia, na busca das causas do que é universal, quanto desinteresse pelas causas dos fatos secundários e subalternos. (BACON, 1979, p. 24-25).
Ao se ultrapassar os limites da nossa capacidade de compreensão, acabamos por impor à natureza o que gostaríamos que ela fosse, antropomorfizando-a e projetando nela nossos ídolos, ao invés de reconhecer o que é adequado à sabedoria divina – o que nos escapa pela observação da natureza (BACON, 1857c, p. 14). As causas finais podem ser de interesse para as ações humanas, todavia, corrompem as ciências (BACON, 1979, p. 94).8
Essa transposição, que recai num retrocesso e que foi tão exercida por Aristóteles, é perniciosa não apenas porque transgride os limites permitidos do conhecimento natural e prejudica a religião, produzindo afirmações falsas e uma fé deturpada, mas também porque desvia a filosofia da natureza de seu escopo: o conhecimento das causas segundas e produtivas da natureza, através do qual os homens podem readquirir o domínio perdido sobre as demais criaturas. Bacon inverte a advertência dos teólogos, para quem a investigação das causas segundas nos afasta da reflexão sobre a causa primeira (BACON, 2006, p. 20): ao se buscar o que está fora de nosso alcance, quanto à filosofia natural, deixamos de cuidar do legítimo objeto das ciências naturais, que são as causas segundas.
Dessa maneira, a filosofia da natureza deve deter autonomia em seu domínio. Consistindo na leitura de um livro diferente daquele revelado, ela possui seu fim (restauração do poder originário da humanidade), objeto (o conhecimento da potência divina e do modo de produção dos fenômenos ou das causas segundas) e método (experiência e indução) próprios. Assim, embora a atividade científica só adquira sentido a partir de valores morais, ela própria deve renunciar a buscar tais valores, na investigação da natureza. Há uma separação rigorosa entre o conhecimento do como e dos fins, entre o conhecimento dos processos naturais e dos valores morais.
Mas, a despeito dessa separação muito bem definida entre o âmbito da fé e da religião e a esfera da filosofia da natureza, o que confere autonomia a esses planos, há uma relação de mão dupla pela qual um leva ao outro.
Bacon não cessa de afirmar que a sua preocupação central é de natureza ético-religiosa. O conhecimento não é um fim em si mesmo; ao contrário, seu objetivo é o bem-estar da humanidade e sua restauração à condição originária, que lhe pertencia de direito antes do pecado. A filosofia da natureza se justifica em razão de um projeto maior, o qual é, por sua vez, calcado em uma interpretação determinada da Bíblia. São os valores advindos da religião, em especial, a caridade, que norteiam a pesquisa científica, justificando-a e corrigindo o seu rumo, para que não se torne venenosa (BACON, 2006, p. 22). O filósofo assevera claramente que todo conhecimento deve ser limitado pela religião e ser referido ao uso e à ação (BACON, 1857d, p. 218). Assim, os ordenamentos divinos possuem um uso regulador, no projeto baconiano (JAQUET, 2010 p. 12). Ademais, não só a legitimação e o sentido da pesquisa científica são determinados pela religião, como também a própria atribuição de funções diferentes ao livro da natureza e ao livro revelado é proveniente da interpretação de uma passagem de Mateus. Assim, por mais que detenha autonomia em seu terreno e que Bacon condene a dedução de verdades sobre o livro da natureza, a partir da leitura do livro revelado, a pesquisa científica da natureza encontra a sua legitimidade plena em um programa ético determinado pela religião.
Mas não é apenas a leitura do livro revelado que nos conduz à leitura do livro da natureza, como também, inversamente, num determinado aspecto, o livro da natureza pode ser considerado a chave para o livro revelado:
Há dois ofícios e serviços principais, além do ornamento e da ilustração, que a filosofia e o saber humano prestam à fé e à religião. O primeiro reside em que são incitações eficazes à exaltação da glória de Deus [...] O segundo está em que ministram um auxílio e preservativo singular contra a incredulidade e o erro. Pois diz nosso Salvador: Errais por não conhecer as Escrituras nem o poder de Deus, pondo diante de nós dois livros ou volumes que temos que estudar se quisermos nos assegurar contra o erro; primeiro as Escrituras, que revelam a vontade de Deus, e então as criaturas que manifestam seu poder; das quais as segundas são uma chave das primeiras não só porque pelas noções gerais da razão e das normas de discurso abrem nosso entendimento para que conceba o sentido verdadeiro das Escrituras, mas principalmente porque abrem nossa fé, ao levar-nos a meditar devidamente sobre a onipotência de Deus, que principalmente está impressa e gravada sobre suas obras. (BACON, 2006, p. 71).
A leitura metódica do livro da natureza não apenas é parte de um programa posto pela religião, o projeto de reaquisição do domínio humano sobre a natureza, como também lhe secunda de outra maneira. Além de seu uso retórico, enquanto ornamento e ilustração, facilita a passagem para a leitura do livro revelado de dois modos. Em primeiro lugar, auxilia do ponto de vista do procedimento, visto que as noções gerais da razão e as normas de discurso exercitam o entendimento, de sorte que facilitam a concepção do sentido verdadeiro das Escrituras. É verdade que, com base na distinção baconiana entre a lógica tradicional e aquela que posteriormente desenvolverá, no Novum Organum, o exame do livro da natureza envolve precisamente uma outra forma de leitura e um método que não é voltado aos discursos e às palavras, mas sim às próprias coisas.
Por isso, não faria sentido Bacon defender que o método de leitura de um livro e de outro seria o mesmo; muito pelo contrário, enquanto o livro da natureza é um artefato divino, a ser compreendido em função da observação de seu modo de funcionamento, o livro revelado é exposto pelo discurso e deve ser compreendido por meio da interpretação das palavras. Assim, o que Bacon provavelmente está afirmando, nessa passagem de O progresso do conhecimento, é que os procedimentos racionais e o uso do discurso implicados na formulação dos axiomas e na exposição dos resultados aguçam a mente para a leitura das Escrituras.
Em segundo lugar, a leitura do livro das criaturas é chave para a leitura do livro revelado, do ponto de vista de seu objeto: a onipotência divina. A contemplação da natureza leva à consideração de seu artífice e ao conhecimento de que existe, é sábio e poderoso, despertando a fé e conduzindo ao exame do livro revelado, pelo qual se adquire o conhecimento a respeito da vontade de Deus e de seus mandamentos. A consideração da onipotência divina que está inscrita em sua obra serve tanto para exaltar a glória de Deus como para nos certificar de que nada do que é afirmado nas Escrituras é impossível, preservando-nos da incredulidade, conforme Bacon destaca, no primeiro capítulo do Valerius Terminus (BACON, 1857d, p. 221).
Assim, mais do que afirmar que os dois livros não se contradizem por serem da mesma autoria ou que a pesquisa da natureza não prejudica a fé, Bacon entende que, em certo sentido, o exame do volume das criaturas confere consistência ao discurso bíblico, respaldando-o e fortalecendo a fé. Bacon declara ainda que, “[...] ao lado da palavra de Deus, a filosofia natural é a cura mais certeira da superstição e a nutrição mais apropriada para a fé”: é a servente da religião (BACON, 1857f, p. 597).
Há, pois, uma relação de continuidade e complementação entre os dois livros, os quais se distinguem pela linguagem, pelos diferentes objetos que mostram e pela relação distinta com o seu autor. Embora cada um possa ser lido de maneira autônoma e seja necessário separar o que diz respeito a um e a outro, a fim de não deturpar não apenas a filosofia natural, mas também a fé, os dois livros são complementares, justamente por contemplarem aspectos diferentes de Deus que são indissociáveis.
Essa passagem do livro da natureza ao livro revelado também pode ser compreendida a partir da analogia ótica dos objetos de conhecimento. Uma vez que concebe a mente como um espelho que reflete os raios de luz, Bacon estabelece, no primeiro capítulo do terceiro livro de De Augmentatis, uma correspondência entre os diferentes objetos da filosofia (Deus, homem e natureza) e os diferentes tipos de raio: a filosofia da natureza trata sobre a incidência da luz direta, porque se produz pela sua observação direta, ainda que secundada pelo método; a filosofia do homem, da luz refletida sobre si; e a de Deus, da luz refratada, na medida em que é um conhecimento indireto (BACON, 1857b, p. 540).
Embora o mundo não seja imagem de Deus e não se possa conhecer os seus desígnios, a partir da contemplação de suas criaturas, o exame do livro da natureza nos conduz indiretamente ao pensamento sobre Deus, pela admiração de seu poder. Para Bacon, a investigação da natureza e das causas segundas, que, a princípio, parece nos afastar de Deus, conduz-nos a ele, quando aprofundada (BACON, 2006, p. 24). E esse adágio é posteriormente citado por Leibniz, no Confessio naturae contra atheistas (LEIBNIZ, 1880, p. 105) – autor que é conhecido tanto pela sua defesa da conciliação entre fé e razão como pela argumentação a favor da retomada das causas finais, na física.
Ao ver de Bacon, pode haver, então, uma passagem legítima da inquisição das causas naturais para a contemplação dos desígnios divinos. Vimos que, ao inquirir sobre as causas finais ou sobre as causas dos princípios mais gerais da natureza, o filósofo natural cai num antropomorfismo. Isto é, ao transgredir para além do que pode, acaba retornando ao que está mais próximo e impondo à natureza seus próprios ídolos, ao invés de contemplar o que efetivamente se encontra nela. Contudo, a filosofia natural, na medida em que faz os homens conhecerem a onipotência divina, prepara-os e os conduz à meditação sobre a vontade e os desígnios de Deus. A leitura do livro da natureza é, assim, chave para leitura do livro revelado, e a passagem da pesquisa das causas segundas para os desígnios divinos é válida, desde que de fato se passe de um livro a outro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A metáfora da natureza como um livro adquire várias funções, na filosofia de Bacon: com base nela, o autor rejeita o princípio de autoridade como critério de verdade e enfatiza a necessidade de redirecionamento da pesquisa científica para a observação metódica dos processos naturais, além de indicar a separação entre os domínios da ciência e da fé, por um lado, e sua relação de continuidade e complementaridade, por outro. Possuindo um livro ou objeto de estudo que lhe é próprio, a filosofia da natureza detém autonomia perante a tradição e a erudição, bem como em relação à religião – pelo menos no que diz respeito ao seu método e aos seus procedimentos.
De maneira semelhante, Galileu se serve da imagem da natureza como um livro para pleitear a autonomia da filosofia da natureza, com respeito tanto à tradição quanto à religião, separando-a da teologia. Como Bacon, o autor italiano insiste em que, para descobrir a verdade nas coisas naturais, é preciso se voltar aos experimentos e às demonstrações, ao invés de repetir a física aristotélica perpetrada nos comentários. Conferindo destaque a essa ideia, Galileu a faz constar como dedicatória a Ferdinando II de Medici, no Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, afirmando que o que distingue os filósofos genuínos daqueles que não o são é que aqueles se voltam para o grande livro da natureza e não aos livros escritos pelas mãos humanas (GALILEI, 2004, p. 83).
Além disso, assim como Bacon, Galileu distingue os âmbitos da ciência e da fé, a partir da contraposição do livro da natureza com o livro revelado, argumentando em favor da autonomia da pesquisa científica. Essa argumentação, a qual se desenvolve no contexto da defesa do copernicanismo e de sua compatibilidade com as passagens das Escrituras, é exposta principalmente nas cartas a Benedetto Castelli (21/12/1613) e a Cristina de Lorena (1615) e no texto Considerações sobre a opinião copernicana.
O ponto de partida de Galileu é que o conflito entre a ciência e a revelação só pode ser aparente, porque duas verdades não poderiam se contradizer, já que tanto o livro revelado como o livro da natureza são de mesma autoria, sendo provenientes do Verbo divino. A aparência de desacordo se deve à diferença das duas manifestações do Verbo divino: enquanto a Bíblia é proveniente do Verbo divino enquanto ditado pelo Espírito Santo, a natureza o é enquanto executora cuidadosa das ordens de Deus. Esta é inexorável e imutável, não transgredindo jamais os limites das leis que lhe são impostas. Todo efeito da natureza está atado a obrigações severas, e ela não se preocupa se as suas razões recônditas e modos de operar estão ou não ao alcance da capacidade dos homens (GALILEI, 2008, p. 19-20). Escrita em caracteres matemáticos, a natureza é absolutamente rigorosa e coerente.
Essa coerência e rigor estão ausentes na Bíblia. Em muitas passagens, não apenas admite, como necessita de exposições diferentes do significado aparente das palavras, porque ela se dirige a um grande público e a ele se ajusta. Para incutir fé, sua exposição é muitas vezes metafórica. É necessário, por exemplo, atribuir movimento ao Sol e repouso à Terra, nas Escrituras (que é mais conforme à opinião do senso comum) para não tornar o vulgo obstinado no prestar fé aos artigos principais da religião. Os escritores sagrados acomodam-se, assim, mais ao uso recebido do que à essência do fato, no que não se relaciona à moralidade. Afinal, o Espírito Santo não quis nos ensinar acerca de questões astronômicas, já que não concernem à salvação: sua intenção é ensinar-nos como se vai para o céu e não como vai o céu (GALILEI, 2008, p. 64).
Com uma argumentação semelhante àquela de Bacon, em O progresso do conhecimento, Galileu afirma que todo o discurso nas Escrituras que é relativo a questões naturais não é informativo, mas possui caráter retórico. Se o objetivo da Bíblia é o convencimento necessário para a fé e para a salvação e, para tanto, é preciso que certas questões expostas que não dizem respeito diretamente à fé se acomodem ao senso comum, não se pode interpretar tudo literalmente. Tanto é assim que a interpretação literal das Escrituras sustentaria muitas contradições e blasfêmias: por exemplo, que Deus teria pés e mãos, olhos, afecções corporais e humanas, como ira, arrependimento, ódio, esquecimento das coisas passadas e ignorância das futuras. Assim, embora a sagrada Escritura não possa mentir ou errar, seus intérpretes o podem, quando interpretam literalmente o que não deve ser assim interpretado. Por isso, nas discussões das questões naturais, as Escrituras deveriam ser deixadas em último lugar. Nelas, deve-se estabelecer primeiro uma determinada proposição, com base em demonstrações e experiências, para depois, utilizando-a como pedra de toque, encontrar o sentido verdadeiro das passagens das Escrituras.
A ciência deve possuir, pois, no que se refere às questões acerca da natureza, completa autonomia em relação à fé. Aliás, Galileu não apenas está defendendo que a teologia e a religião não devem interferir nas investigações das questões naturais, mas, mais ainda, que os teólogos devem, quando diz respeito a assuntos da natureza, interpretar a Bíblia de acordo com as conclusões dos filósofos. Afinal, enquanto o livro revelado é escrito de forma metafórica, admitindo diferentes interpretações, o livro da natureza é escrito em caracteres matemáticos e pode ser lido de maneira unívoca, de modo que as verdades a seu respeito podem ser estabelecidas demonstrativamente, com necessidade e universalidade (GALILEI, 1973, p. 119).
Para Galileu, o intelecto humano é capaz de aprender a linguagem com a qual Deus criou o universo e, nesse tipo de conhecimento, atinge a perfeição do entendimento divino, segundo sustenta, ao final da primeira jornada do Diálogo sobre os dois máximos sistemas ptolomaico e copernicano. À afirmação de Sagredo de que é uma extrema temeridade fazer da capacidade humana uma medida de quanto pode e sabe operar a natureza e de que não se pode chegar a nenhum conhecimento completo de nenhum efeito na natureza, por mínimo que seja, Salviati, o representante de Galileu no diálogo, afirma que se pode considerar o entender de dois modos, a saber, intensivamente ou extensivamente.
Quanto à multiplicidade dos inteligíveis, os quais são infinitos, o entendimento humano é como que nulo. Mas, intensivamente, em relação a determinadas proposições, o intelecto humano tem uma certeza tão absoluta quanto tem delas a própria natureza. Ora, essas proposições são aquelas das ciências matemáticas puras, a geometria e a aritmética. Nas poucas proposições matemáticas entendidas pelo intelecto humano, em contraste com as infinitas proposições conhecidas pelo intelecto divino, "[...] a cognição iguala-se à divina na certeza objetiva, porque chega a compreender a necessidade, para além da qual não parece existir certeza maior." (GALILEI, 2004, p. 183-184).
Assim, a verdade que conhecemos pelas demonstrações matemáticas é a mesma conhecida por Deus, embora Deus conheça pela simples apreensão e nós, discursivamente. Por isso, as descobertas a respeito do livro da natureza realizadas por aqueles que dominam a sua linguagem, a matemática, são absolutamente verdadeiras e não poderiam ser desmentidas por nada. Disso se segue que, nessas questões, a pesquisa científica deve ter completa autonomia e, até mais do que isso, toda autoridade, podendo dar a última palavra no que diz respeito aos fenômenos naturais e orientar a interpretação das Escrituras, nesses assuntos (GALILEI, 2008, p. 120).
É nesse aspecto, concernente à relação entre o livro da natureza e seu leitor, que Bacon e Galileu divergem profundamente. Ambos são autores centrais para a formação da concepção moderna de ciência e para a reivindicação de sua autonomia, perante a religião. Ambos utilizam a analogia da natureza com um livro para indicar a especificidade da pesquisa científica da natureza e libertá-la das amarras dos teólogos e da tradição dos comentários peripatéticos. Contudo, enquanto Galileu assevera que a natureza está escrita em caracteres matemáticos e que o entendimento humano detém a chave para a leitura perfeita desse código, Bacon assinala a dificuldade de aprendizagem do alfabeto no qual a natureza se estrutura. A mente humana, decaída e corrompida pelo pecado e pelo abandono da experiência, é um espelho encantado que não possui acesso direto a esse livro, só podendo decodificá-lo com muita paciência e com o auxílio do método indutivo.
FRANCIS BACON AND THE BOOK OF NATURE: INTERPRETATION OF NATURE AND RELATIONSHIP BETWEEN SCIENCE AND RELIGION
Abstract: In this paper, we explore the conception of nature as a book in Francis Bacon. On the one hand, using this image and confronting the reading of the book of nature and the reading of the books of established authors, Bacon contrasts two completely different ways of the natural philosophy: the Interpretation of Nature in contrast to the Anticipation of the Mind. On the other hand, by considering the revealed book and the book of creatures, Bacon contends for the specificity of the scientific investigation of nature and its relative autonomy in relation to the sphere of religion, although he indicates the character of continuity and complementation of the two books of the same authorship.
Keywords: Book of nature and revealed book. Interpretation of nature. Autonomy of science.
REFERÊNCIAS
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SERJEANSTON, R. Francis Bacon and the “Interpretation of nature” in the late Renaissance. Isis, Chicago, v. 105, n. 4, p.,681-705, dez. 2014.
Recebido: 22/02/2023
Aceito: 01/04/2023
1 Professora na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0488-0677. E-mail: celi_hirata@yahoo.com.
2 Cf. AGOSTINHO, Contra Faustum, XXXII, 20; Errationes in Psalmos, 45, 7; Sermones, 68, 6.
3 Outra imagem da qual Bacon se serve para distinguir as fontes dos diferentes conhecimentos, a filosofia natural, a teologia e a erudição, é aquela das águas, como ele expõe em O progresso do conhecimento. “O conhecimento humano é como as águas, as quais umas descem do alto e outras brotam de baixo; de um lado está informado pela luz da natureza, de outro inspirado pela revelação divina. A luz da natureza consiste nas ideias da mente e nas notícias dos sentidos; porque o conhecimento que o homem recebe do ensino é cumulativo e não original, como a água, que além de sua própria fonte se nutre de outros mananciais e correntezas. Assim, pois, em conformidade com estas duas iluminações ou origens, o conhecimento primeiro se divide em Teologia e Filosofia.” (BACON, 2006, p. 135-136). Enquanto as águas que brotam de baixo e aquelas que provêm de cima são fontes originárias do conhecimento e fornecem matérias novas, o ensino precisa ser nutrido por outras fontes.
4 É por conceber a relação entre o intelecto e os seus objetos a partir da imagem do espelho e dos raios de luz, que Bacon preconiza a correspondência entre os diferentes ramos da filosofia e os diferentes tipos de refração, em De Augmentis Scientiarum (cf. BACON, 1857b, p. 540). Retomaremos essa analogia, na segunda seção deste artigo.
5 A metáfora do fio do labirinto figura no título de uma obra de Bacon, o Scala intellectus, sive Filum labyrinthi.
6 Richard Serjeanston (2014) argumenta que a concepção baconiana de interpretação da natureza não possui como referência os procedimentos de interpretação exegética, mas, antes, os procedimentos de inquérito jurídico. Em função disso, sugere que o conhecimento do direito pode ter modelado a filosofia da ciência, em Bacon, questionando a tese defendida tanto por Harrison (2008) como por Gauckroger (2006) de que houve uma transposição dos procedimentos da interpretação bíblica para o estudo da natureza, no século XVI, que teriam influenciado Bacon. Sem entrar no mérito quanto à proveniência jurídica do termo interpretação da natureza e de outros que lhe são associados, queremos apenas indicar que, não raro, Bacon utiliza precisamente a mesma terminologia de seus adversários e desloca o seu sentido, de maneira a tornar a divergência de sua posição mais manifesta. É o caso da terminologia discutida nessa seção, que delimita os procedimentos próprios da filosofia da natureza e realça o seu contraste com os procedimentos de interpretação textual vigentes à época. Ou seja, há uma referência explícita e incontornável a esses procedimentos textuais, ainda que por oposição.
7 “Se fiz algum progresso, o caminho foi aberto pela legítima humilhação (humiliatio) do espírito humano.” (BACON, 2008, p. 20).
8 É verdade, contudo, que Bacon atribui um lugar à pesquisa das causas finais, na filosofia natural. Ao realizar o recenseamento dos saberes já estabelecidos, no De Augmentatis, o autor afirma que a inquisição das causas finais não foi omitida, porém, deslocada, sendo exercida em um estágio do conhecimento que não lhe corresponde, a física, que deve investigar as causas eficiente e material. Para Bacon, a inquirição das causas finais (bem como das causas formais) deve ser realizada na metafísica, a qual designa a parte mais avançada da filosofia da natureza, na medida em que investiga as formas e as causas mais universais da natureza, estabelecendo os axiomas mais gerais. Bacon não explica o que seria essa investigação das causas finais, e não é fácil compreender como a generalização do conhecimento dos processos de produção das naturezas simples (causas formais) poderia engendrar o conhecimento das causas finais (BACON, 1857b, p. 550).