ENTRE A UTOPIA E A REALIDADE: AS POSSIBILIDADES DO MUNDO, SEGUNDO ERNST BLOCH


Thiago Reis1


Resumo: O aspecto mais importante da filosofia de Ernst Bloch se baseia na afirmação de que "S ainda não é P" – premissa ontológica que sustenta todos os desdobramentos do seu pensamento. Nesse sentido, articula Bloch: "O proletário ainda não se sublevou, a natureza ainda não é nossa casa, a realidade ainda não foi desdobrada em sua totalidade" – tudo isso permanece em processo e a tarefa da filosofia é a de considerar as reais possibilidades do ainda-não-realizado e transformar o mundo de acordo com o que ele pode ser. A intenção deste texto é a de contribuir com a investigação acerca das premissas fundamentais do pensamento blochiano, sobretudo de sua ontologia do ainda-não, amparada em uma teoria das possibilidades que pretende reinterpretar a noção aristotélica de matéria.


Palavras-chave: Ernst Bloch. Ainda-não. Marxismo. Teoria das Possibilidades. Matéria.


INTRODUÇÃO

S ainda não é P”. Tal afirmação, segundo Ernst Bloch, é capaz de sintetizar o núcleo de seus ensinamentos filosóficos. Essa fórmula, ademais, pode ser desdobrada da seguinte maneira: “S ainda não é P, o proletário ainda não se sublevou, a natureza ainda não é nosso lar, a realidade ainda não foi desdobrada em sua totalidade”2: tudo isso permanece em processo. Podemos afirmar, de antemão, que a força que motiva o pensamento blochiano se encontra numa ordem temporal ainda intocada, ainda-não-realizada. Tal projeto filosófico se converte numa tentativa de encarar a problemática das determinações que envolvem o futuro e de vincular as diretrizes do saber filosófico frente ao novo, sobre o que ainda-não-veio-a-ser. Com efeito, a filosofia deveria voltar-se para o que ainda se encontra em aberto, isto é, para além das condições já dadas, estabelecidas no presente, tendo em vista o futuro utópico.

O pensamento utópico, por conseguinte, tornar-se-á uma categoria central de todo o itinerário filosófico de Bloch. Desde as suas primeiras obras, até os escritos de maturidade, a utopia, e diferentemente do que geralmente se expressa a respeito desse tema, ou seja, como pura abstração ou escapismo cândido, será considerada pelo filósofo como uma importante extensão da vida humana, à qual se aliará a esperança – precisamente, a docta spes (a esperança refletida). A esperança e a utopia tornam-se, nesse sentido, o alfa e o ômega, o princípio e a meta, partes indissociáveis na orientação do pensamento na busca pelo ainda-não. Pode-se dizer que a sua intenção, ao evidenciar o pensamento utópico e o afeto expectante, é a de advertir sobre a importância da dimensão subjetiva, das crenças e das potências criadoras individuais – centradas na figura “sonhos de uma vida melhor” – enquanto elementos necessários para que o materialismo dialético alcance continuamente uma atitude criativa e sempre renovada, em face dos problemas e avanços objetivos. É por esse motivo que o filósofo elegeu o princípio esperança como pedra angular da consciência utópico-revolucionária, o ponto de partida para incorporar novas perspectivas, isto é, determinante para o avanço de uma teoria sempre renovadora, e também de uma prática efetivamente revolucionária.

Esse princípio, ao longo da história, precipitou-se sobre os mais diversos conteúdos – arte, religião, ciência, política etc. Ademais, para o filósofo, a esperança revolucionária constitui apenas um momento, o momento concreto dessas outras esperanças que, de certo modo, ainda permanecem vivas na história. E é por isso que, antes de deslegitimar tais conteúdos, ele prefere se apropriar deles, potencializando-os e convertendo-os sob a perspectiva materialista. Ressalte-se, de antemão, que tanto a esperança quanto a utopia não estarão restringidas aqui ao seu correlato subjetivo. Através da filosofia marxiana, Bloch estabelecerá os vínculos objetivos desses mesmos conceitos, tornando-os, por assim dizer, “concretos”.

De modo suscinto, a articulação do pensamento filosófico-utópico de Bloch se dará em duas frentes: (i) a do horizonte subjetivo, na procura pelas efetivações dos anseios ainda-não-realizados, e (ii) a investigação das possibilidades objetivas, por meio das quais o filósofo lançará mão de uma perspectiva ontológica em torno da utopia. A filosofia utópica blochiana, ao contrário de designar uma abstração vazia, desprovida de implicações reais, define-se como uma ciência da tendência, cujo correlato se reflete tanto no sujeito quanto no objeto. Contudo, para os propósitos aqui pretendidos, daremos ênfase aos aspectos gerais que compõem a ontologia do ainda-não. Concomitantemente, veremos como a noção onto-lógica de possibilidade está articulada com o conceito de matéria.

Ressalte-se que a virada ontológica empreendida por Bloch, cuja intenção visava a renovar e ampliar o escopo crítico e emancipatório da filosofia marxiana, não se deu sem incompreensões. Destaque-se a crítica de Habermas, em seu artigo “Ein marxistischer Schelling: Zu Ernst Blochs spekulativem Materialismus”, publicado em 1960.3 Nela, o herdeiro mais ilustre da Escola de Frankfurt reduziu a ontologia do ainda-não a uma filosofia da natureza meramente especulativa (à la Schelling), que, além de ultrapassada (sobretudo após Kant), teria deixado em segundo plano questões de fato relevantes, especificamente vinculadas ao âmbito social. Em linhas gerais, o núcleo da argumentação habermasiana coloca em questão a orientação do pensamento de Bloch, o qual estaria mais voltado para a compreensão de uma gravidez geral da matéria do que o de uma reflexão crítica que tente nos libertar da imobilidade social presente nas contradições sociais vigentes: “[...] poderíamos dizer que Bloch orienta seu pensamento muito mais para o desenvolvimento de um mundo que ele supõe genericamente em gestação que para a solução das contradições sociais existentes.” (HABERMAS, 2001, p. 167-168). Habermas chega a acusar a filosofia blochiana de tangenciar o totalitário, partindo de pressupostos utópico-ontológicos com vistas a uma “essência da ordem”, sob o disfarce de uma teoria das possibilidades.

Todavia, a nosso ver, a crítica habermasiana ao materialismo especulativo de Bloch não se sustenta. Para tanto, concordamos com Schutz, ao dizer que “[...] a inserção da filosofia blochiana num horizonte mais amplo da ‘natureza em devir’ não conduz a uma despotencialização da sua capacidade crítica, pelo contrário: por esse artifício, sua potência crítica é fortalecida e ampliada”. (2019, p. 04). Para sustentar a ação política de forma concreta – ou, em termos blochianos, para sustentar a utopia concreta –, faz-se necessário entender como estão constituídas as possibilidades do mundo. Ao longo deste artigo, nós nos propomos esclarecer a seguinte questão: como Bloch, ao promover uma transgressão especulativo-ontológica dentro da teoria marxista, parte de uma compreensão do modo de ser da realidade para fundamentar e sustentar como nossas crenças e ações políticas devem ser colocadas em prática?


1 A ARQUITETÔNICA DO PENSAMENTO UTÓPICO-CONCRETO

Em seu estudo sobre a filosofia de Hegel (Subjekt-Objekt: Erläuterungen zu Hegel), ao dissertar sobre o aspecto sistemático, característico do idealismo alemão, bem como das diversas teorias-sistemáticas, no decorrer da história da filosofia, Bloch não se cansa de sublinhar aos seus leitores que “[...] não há outra filosofia que a sistemática.” (1983, p. 427). Ora, essa pretensão ao sistema pode nos parecer um tanto quanto antiquada para um teorizar que se pretende aberto; contudo, a noção mesma de sistema, a qual aqui ressurge, nada tem a ver com o conceito tradicional, tal como ele apareceu ao longo da história da filosofia. O sistema tradicional – designadamente o que é característico do idealismo alemão –, sublinha Bloch, “[...] se move dentro do espaço fechado do livro, preso ao seu campo mitológico”, o qual “[...] se mantém sempre como uma conexão a priori (palavra absolutamente válida para o idealismo) sem lacunas, que sempre parte de um começo fixo ou então de um final fixo.” (1983, p. 430). A dialética idealista torna-se falsa, uma circularidade estéril, na medida em que ambiciona abarcar a realidade através de um encadeamento harmônico dos fatos, sem levar em conta que o mundo é, como veremos a seguir, composto por um conjunto “[...] de interrupções, fragmentações e descontinuidades.” (SERRA, 2001, p. 142).

A realidade, segundo Bloch, é sempre flagrada por “novos conteúdos reais”, resultantes de um processo aberto das “determinações materiais”, as quais, por sua vez – em um mundo em constante experimentação (experimentum mundi) –, ainda são desconhecidas em sua totalidade. O pensamento, no caso o utópico-concreto, que pretende portar-se efetivamente em face dos processos materiais, deve, antes de tudo, mostrar-se aberto, justamente por estar exposto às indeterminações do devir que é próprio ao mundo – adianto: a matéria da qual faz parte o mundo, sugere o filósofo, seguiria uma dinâmica própria, sob os princípios de uma natura naturans. Não obstante, tal pensamento necessita ainda – pois ele se pretende transformador – de um planejamento, ou seja, de uma sistematização da ação pretendida: “[...] a teoria que parte para a prática leva inscrita em si uma arquitetônica, a do todo a realizar.” (BLOCH, 1983, p. 428).

Portanto, quando o filósofo afirma que não há outro pensamento que o sistemático, ele tem em vista tão-somente aquilo que denominou “sistema aberto”. A “abertura” do sistema seria a maneira mais adequada de compreender, interpretar e transformar o mundo, entendido como processo; ele se transforma em uma diretriz, um prelúdio do caminho a ser seguido, rumo ao alvo pretendido: assim, converte-se numa propedêutica do pensamento utópico-concreto. O “sistema aberto”, por fim, não deve ser tomado enquanto uma conexão conceitual estática: sistema é, por conseguinte, “[...] um todo utópico-concreto” ditado pela imaginação utópica do sujeito e cuja “direção põe ordem no gigantesco ensaio que é o processo”, por meio do “ponto unitário da meta, mais antecipado do que conhecido.” (BLOCH, 1983, p. 431).

Ademais, cabe ressaltar que, diferentemente do que pretendia Hegel, em sua filosofia da história, Bloch não prenuncia a existência de um final definitivo para a realidade, isto é, o fim de todo o movimento e desenvolvimento do mundo. Antes, o ultimum deve ser entendido “[...] como aquilo que abrirá, sem fim, novas possibilidades no futuro.” (ZE’VE, 1990, p. 04, tradução nossa). A realidade não nos aparece aqui como algo que já conteria em si o gérmen do final, algo que já estaria determinado ab origine – pelo contrário, a única “determinação” do real é estar condicionado pelo poder-ser. Visto o empreendimento processual e inconcluso do mundo, as exigências ontológicas da teoria blochiana se darão num outro patamar, na contramão das teorias que habitualmente consideram o ser enquanto tal, isto é, inexaurível, eterno. Salienta Bicca:

No lugar de uma doutrina do ser, surge uma reflexão ontológica, na qual nem o ser nem o nada possuem o primado, e sim o ainda-não. Nesse sentido, a filosofia de Bloch é, por princípio, u-tópica: como teoria do ser compreendido em moto contínuo, ela é, ao mesmo tempo, teoria do ente (Seiend) que ainda não tem lugar na realidade, uma ontologia do “U-Topos”, do mundo inacabado, incompleto. (BICCA, 1987, p. 23, grifo nosso).


A percepção blochiana da realidade está referenciada numa concepção negativa do real. Segundo Marx (e, originariamente, em Hegel), essa negatividade constitui um motor que movimenta a própria história, que leva a sociedade ao encontro e à superação de suas contradições. Bloch, contudo, também admite a existência de um caráter dialético-negativo não somente em relação ao ser social, mas, de maneira determinante e autônoma, no próprio substrato natural (isto é, na “matéria” do mundo). A mudança epistemológica do ponto de vista blochiano refletirá uma mudança “ontológica” no próprio objeto. Por enquanto, basta sabermos que a designação de uma disposição negativa na matéria permitirá ao filósofo fundamentar, ontologicamente, certas qualidades, as quais, a seu ver, constituem o index modal da processualidade do ser (o ainda-não-ser). A possibilidade, por conseguinte, se tornará a categoria de maior relevância para o real.

Tal ontologia – a do ainda-não-ser – não encontrará, pois, o seu fundamento no tradicional debate entre o realismo e o determinismo. Pelo contrário, essa ontologia pretende arrolar uma metafísica da contingência – nas palavras de Bicca, “[...] um determinismo ao avesso.” (1987, p. 24). De modo geral, a possibilidade será considerada como o “não totalmente determinado”, ou ainda, como condicionalidade parcial. Isso quer dizer que o possível – e visto que certa realidade se faz necessária – decorre de uma abertura, de uma insuficiência ou de um desconhecimento da base condicionante, isto é, de uma abertura objetiva, do ainda-não em seu sentido objetivo/coisal, mas também em sua dimensão subjetiva, do ainda-não-consciente. Em poucas palavras, isso quer dizer que o possível só se dá porque há um quê que permanece desconhecido na própria realidade. A possibilidade não deve ser compreendida, por conseguinte, como uma simples categoria lógico-formal; pelo contrário: a realidade, conforme Bloch, é composta por um conjunto amplo de possíveis não só antecipados pela ação subjetiva, mas, de modo decisivo, ensaiados na matéria do próprio mundo, de acordo com a disposição coisal.


2 A TEORIA DAS POSSIBILIDADES E A NOÇÃO DE MATÉRIA DINÂMICA

Bloch distingue a possibilidade de acordo com quatro categorias: o possível puramente formal, o possível objetivo-factual (ou subjetivo), o possível objetivo (ou coisal) e o possível objetivo-real (ou dialético). Como podemos ver, o possível não nos é apresentado como uma categoria geral, absoluta. Tais divisões servirão para demonstrar que o real é composto por uma certa inconstância, a qual é resultante das variações entre as correlações das diversas possibilidades – e, não obstante, não estão referidas somente àquelas probabilidades vislumbradas pelo conhecimento humano (possíveis formal e subjetivo).

O possível puramente formal é um possível inócuo, vago, o qual ignora completamente o sentido e a concretude do que é dito ou pensado; é um possível que se encerra na impossibilidade de sua efetivação, não somente em relação ao real, mas até mesmo em relação ao próprio entendimento. O filósofo faz ainda uma distinção entre o possível formal tolo e o contraditório. O primeiro diz respeito àquilo que pode ser pronunciado e, todavia, permanece sem significado algum: p. ex., “um redondo ou”, “um ser humano e é” – em suma, é um “possível” que permanece impossível até mesmo de ser compreendido. O segundo tipo – o contraditório – é aquele que, na relação entre os seus enunciados, apresenta um contrassenso, mas que, apesar disso, é “algo que pode ser perfeitamente pensado”: p. ex. “triângulo irascível”, “o cavalo que é um trovão”. Em linhas gerais, o possível formal, cujas possibilidades enunciativas permanecem infinitas, não é capaz, segundo Bloch, de produzir acréscimo algum ao pensamento utópico-concreto e, justamente por isso, acaba por se converter em uma “[...] má abertura no possível de ser pensado” (BLOCH, 2005, p. 222). Acerca dessa gradação de possibilidade, enfatiza Pierre Furter:

Sobrevoa o real, apagando assim, por uma quase ilusão ótica, qualquer relevo, qualquer empecilho, qualquer impossibilidade. Daí sua falta completa de profundidade e de criticidade. Nada parece se opor à sua vastíssima visão, tanto mais ampla quanto vazia. É também este possível que aparece no frenesi e no intenso prazer que podemos sentir no jogo livre de nossas possibilidades. (Furter, 1974, p. 112).


O possível subjetivo (o qual também podemos denominar possível objetivo-factual ou, ainda, possível epistemológico) é o possível que – para além do poder-ser puramente encerrado no que é dito ou pensado – possui uma abertura para o real e é capaz de imaginar ou prever acontecimentos, de criar novas soluções e dominar, ainda que parcialmente, certos fenômenos; são enunciados modais, modos de proceder do conhecimento, tais como hipóteses, suposições, conclusões indutivamente prováveis, conclusões dedutivas, ou seja, projeções antecipatórias. Todavia, esse tipo de poder-ser carrega consigo uma limitação. Conforme afirma Bloch, podem existir certas condições de possibilidades no próprio objeto que ainda não foram manifestadas, e que, por isso, permanecem totalmente desconhecidas para o entendimento humano. O possível subjetivo, de sua parte, permanece insuficientemente capaz de prever a totalidade dos fatos. O filósofo se mostra contrário a qualquer metodologia empirista que pretenda a absolutização dos dados, os quais não podem ser suficientemente esclarecidos, já que o universo se encontra inconcluso e em processo.

Há, portanto, a hipótese de uma possibilidade que surge das condições interiores do objeto [Objekt], e que não diz respeito ao conhecimento que possuímos sobre os fatos, porém, de algo que permanece processualmente silencioso e que “[...] pode vir a ser de um ou de outro modo.” (BLOCH, 2005, p. 227). Esse é o possível objetivo ou objetal, isto é, o possível que se desdobra conforme a estrutura do objeto real [Das sachhaft-objektgemäss Mögliche]. “O possível objetal não vive das condicionantes insuficientemente conhecidas” – como é o caso do possível subjetivo – “[...] mas das condicionantes insuficientemente manifestadas.” (BLOCH, 2005, p. 227, grifo do autor). Ele é tudo aquilo que ainda não está integralmente manifestado na esfera do próprio objeto, “[...] seja porque elas ainda estão amadurecendo, seja sobretudo porque novas condições – ainda mediadas pelas existentes – concorrem para a ocorrência de um novo real.” (BLOCH, 2005, p. 195). A disposição coisal, além do mais, é vista aqui sob a perspectiva de um dinamismo cego, de algo que, por si só, vai se modificando. As reflexões blochianas sobre o possível objetal encontram ainda o seu fundamento numa “filosofia da natureza”, resultante de uma interpretação materialista e contemporânea da filosofia aristotélica – ou, como prefere o autor, da esquerda aristotélica. Bloch nos revela a sua suposição sobre a existência de uma matéria “autocriadora”, a qual carrega em si a potencialidade das tendências objetivas (cf. FURTER, 1966, p. 10).

Antes de analisarmos o último estrato da possibilidade (o possível real-objetivo ou dialético), vejamos alguns aspectos básicos da noção blochiana de matéria. Para tanto, tentemos primeiramente retomar algumas noções fundamentais desse conceito, tal como ele aparece na física de Aristóteles. Conforme sublinha Ross, “[...] a matéria não é, para Aristóteles, uma espécie de coisa, como quando falamos de matéria em oposição ao espírito”, antes, ela é “[...] um termo puramente relativo, isto é, relativo à forma.” (ROSS, 1995, p. 46, tradução nossa, grifo do autor.). Aristóteles, segundo a predominante interpretação escolástica, considerava a matéria como um mero substrato passível de ser determinado pela forma, isto é, enquanto potencialidade a ser configurada pela forma que a atualiza (cf. ARISTÓTELES, 2005, 194b 20).

Dessa maneira, a forma deve ser entendida aqui em sua relação com a noção de potência, como algo que é capaz de atualizar [enérgeia] a matéria passiva, segundo um telos específico que, no caso, seria a própria forma. De acordo com Bloch, a matéria, tal como ela aparece na physis aristotélica – ou seja, como matéria mecânica, passiva – não deixa de ser a caracterização pura e simples de um obstáculo, de uma resistência para a en-telécheia: a matéria é-nos revelada enquanto algo que impede a coisa de atingir propriamente o seu telos, de chegar plenamente à sua forma: em sua concepção aristotélico-mecânica, ela seria apenas uma “[...] causa colateral interferente em relação às causas finais da entelécheia.” (BLOCH, 2005, p. 189).

Em contrapartida à interpretação escolástica de Aristóteles, em que a potência da forma se sobrepõe à potencialidade da matéria, Bloch, seguindo o viés de compreensão de alguns filósofos panteístas4, nos dará uma nova interpretação do conceito de matéria. De modo sumário, ele irá rebaixar o conceito de forma em sua importância teórica, o que lhe permitirá ajuntar, num mesmo plano, matéria e possibilidade (ou capacidade de ser) – a seu ver, ontologicamente inseparáveis. Diferentemente da noção mecânica de matéria, a qual é sempre intercedida por uma força exterior, o filósofo nos apresentará o conceito de matéria dialética (ou possibilidade real), ou [...] seja, “a expressão lógica para a condicionalidade material do tipo suficiente por um lado e a abertura material (inesgotabilidade do útero da matéria) por outro.” (BLOCH, 2005, p. 204).

A distinção mesma de Aristóteles presente na noção de dynamis, que se subdivide entre kata to dynaton e dynamei on, ou seja, a capacidade ativa, que condiciona (dynaton) e a disponibilidade passiva, algo que possibilita (dynamei), aparece, na ontologia do ainda-não, vinculada diretamente à matéria. O existente-segundo-a-possibilidade [kata to dynaton] refere-se agora àquilo que restringe ou permite o que pode surgir na realidade, segundo as especificidades histórico-materialistas, enquanto o existente-em-possibilidade [dynamei on] se torna o substrato real da possibilidade no processo dialético, algo que fermenta em si mesmo, de modo inesgotável, tudo o que pode ser ou não ser, a configuração mesma do universo. A matéria se transforma, ao mesmo tempo, em natura naturans e natura naturata. É importante notar que, quando Bloch ressalta a existência da matéria sob um duplo aspecto, ele, ao mesmo tempo, dá um salto da lógica para a ontologia e faz com que a possibilidade se ancore na própria matéria: “[...] na medida em que o mundo se explica a partir de si, a realidade é possibilidade real, isto é, potentia subjectiva activa.” (BORGES, 1993, p. 411).

A teoria-práxis, em vista da existência de uma matéria dialética, portanto, não deverá se restringir apenas a uma análise das possibilidades subjetivamente arquitetadas, mas, antes de tudo, deverá levar em conta as investigações das possibilidades reais. De um lado, quando Bloch chama a atenção para o existente-de-acordo-com-a-possibilidade, ele quer, acima de tudo, indicar que o campo de manifestações possíveis na esfera coisal se encontra potencialmente determinado, ou parcialmente condicionado, por fatores externos, estruturais, isto é, pelo “[...] contexto social, contexto legal da coisa.” (BLOCH, 2005, p. 228). Como observa Marx, as relações sociais são também determinadas pelo estágio de desenvolvimento das forças produtivas: “[...] o moinho a braço vos dará a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalismo industrial.” (1985, p. 62-63). Por outro lado, há o existente-em-possibilidade, o qual se encontra direcionado para “[...] o horizonte em termos de uma amplidão desobstruída, incomensurável, em termos do possível ainda não esgotado e ainda não realizado.” (BLOCH, 2005, p. 206).

A utopia se revela, nesse caso, como uma categoria ontológica, real-concreta – justamente porque a matéria é tomada, prioritariamente, enquanto uma abertura indefinida do ser, o “útero da fertilidade”, no qual são originadas, de maneira inesgotável, todas as formas do mundo. Em outras palavras, a matéria enquanto um existente-em-possibilidade é, ela mesma, matéria utópica, justamente porque dela podem surgir outras condições que até então não foram manifestadas. O pensamento utópico-concreto vê aí uma justificativa para a sua própria existência, pois ele poderá colher no solo inesgotável da matéria utópica novas formas para o seu empreendimento teórico-prático. As circunstâncias que nos rodeiam, nesse sentido, são os vestígios, os signos dos caminhos constitutivos que se abrem incessantemente.

O movimento da matéria se explicaria ainda por uma “tensão”: um ainda-não das formas já experimentadas, uma tendência rumo à evolução da forma seguinte. Nas palavras de Bloch, “[...] o ainda-não caracteriza a tendência no processo material, como a origem que vai se externando pelo processo, que tende para a manifestação do seu conteúdo.” (BLOCH, 2005, p. 302). As tendências presentes na matéria dinâmica permanecerão latentes – como conteúdos utópicos “reprimidos”, os quais se manifestarão, de acordo com as atividades perceptiva e interventiva humanas.

Assim, “tendência” e “latência” apresentam-se, respectivamente, de um lado, como as possibilidades dinâmicas do objeto real no processo histórico, e, de outro, como o conteúdo perceptível ainda irrealizado, virtualmente presente nesse mesmo objeto: “Ambas, tendência e latência, encontram-se na própria realidade, mais notadamente nas épocas intermediárias, onde o velho não perece e o novo não se realiza.” (BLOCH apud BICCA, 1987, p. 33). Em outras palavras, latência refere-se à mudança potencial da matéria, ainda-não-atualizada no presente. Já a tendência está relacionada à atualização desse potencial, capaz de realizar o estado de latência. É importante observar que a tendência, enquanto força ativa que molda o presente e o futuro, encontra-se correlacionada à consciência humana, ao avançar do ainda-não-consciente. Em suma – e de acordo com o aspecto dual da matéria – a transformação do mundo deve conciliar, em um mesmo esforço, uma análise das tarefas que a humanidade pode assumir em uma determinada época, conforme o existente-conforme-a-possibilidade (condições exteriores), além de ser capaz de inspirar e abrir o caminho da possibilidade real, em vista do totum utópico, segundo o existente-em-possibilidade (condições internas):

É verdade que a humanidade somente assume tarefas que pode solucionar; entretanto, se o grande momento que se oferece para a solução topa com uma geração mesquinha, então essa realização é tanto mais meramente possível, ou seja, apenas fragilmente possível. Exemplo disso é fornecido pela ausência de consequências revolucionárias do 9 de novembro de 1918 na Alemanha [...] (BLOCH, 2005, p. 229).


Explicitamente, o filósofo faz aqui uma crítica ao pensamento revisionista da teoria marxista, a qual, em suma, e por meio de um determinismo científico-natural, pressupunha que, no futuro, o socialismo estaria totalmente assegurado – o fim do modo de produção capitalista seria, por conseguinte, uma consequência inevitável, a evolução natural e pacífica do capitalismo, garantida automaticamente pelas contradições mesmas desse sistema. Como demonstra Marcuse (2004, p. 341), “[...] as obras e o pensamento revisionista [...] procuravam transformar o socialismo, da condição de antítese teórica e prática do sistema capitalista, à condição de um movimento parlamentar dentro desse sistema.” Dentre os revisionistas, Bernstein defendia “[...] a qualidade corrente dos objetos fixos e estáveis contra qualquer conceito proveniente da sua negação dialética”, justamente por acreditar que o mundo deveria ser compreendido e concebido “[...] como um complexo de objetos e processos já completados” (BERNSTEIN apud MARCUSE, 2004, p. 341).

Ora, quando aborda um existente-em-possibilidade, Bloch, de modo algum, nos sinaliza uma espécie de determinismo material, no qual estaria implicado, de antemão, o reino da liberdade. Pelo contrário, o socialismo seria apenas uma das possíveis conformações sociais que podem surgir no solo do mundo – e o fracasso, ou a barbárie, se constitui igualmente enquanto uma das possíveis facetas da matéria dialética. A possibilidade real poderá advir tanto em seu aspecto emancipatório quanto em seu aspecto perverso, dependendo de como se dará a ressonância da consciência e da práxis humana, em sua articulação dialética com o dinamismo da matéria; caso essa articulação se dê de modo incoerente, sob as luzes de uma “falsa consciência”, corre-se o risco de abrir, segundo o filósofo, o caminho para o constitutivo negativo da possibilidade real, qual seja, segundo a sua perspectiva: o da irrupção do inferno fascista, “[...] que residia e ainda reside como possibilidade no último estágio do capitalismo.” (BLOCH, 2005, p. 230).

Nesse ponto, para que a transformação da realidade ocorra de maneira emancipatória, será preciso que haja uma análise coerente das possibilidades surgidas, quer na matéria, quer na sociedade. Argumenta Bloch:

Uma florescência com certeza pode fazer madurar o fruto dentro de si mesma com a plena condicionalidade interna, mas se faltar a condição externa plena do bom tempo, o fruto permanece meramente possível. Ainda mais comprometedor do que a falta de condições externas é, em contrapartida, o efeito da debilidade das condições internas com simultânea profusão das externas. (Bloch, 2005, p. 229).


E continua:

Sem a potencialidade do poder-tornar-se-diferente, o poder-fazer-diferente da potência não teria espaço, nem, sem o poder-fazer-diferente da potência, o poder-tornar-se-diferente do mundo teria um sentido comunicável aos seres humanos. (Bloch, 2005, p. 229-230).


Antes de avançarmos, é preciso ressaltar uma nuance que se faz presente no conceito de matéria preconizado por Bloch. Como aponta Bicca, a matéria receberá um tratamento diverso, na filosofia blochiana, e, portanto, não se restringe estritamente ao ser universal, sujeito da natureza. Tal fato cria certas dificuldades para a obtenção de uma interpretação sucinta desse conceito. Por um lado, a matéria é destacada enquanto mater universal que se automovimenta e autofecunda e que, por sua constituição dinâmico-evolutiva própria, deve ser entendida como matéria criadora, e não adaptativa: o substrato tomado enquanto potência para o surgimento de novas formas. Por outro lado, o conceito de matéria se estenderá também ao nível da sociedade (Marx), concebida como tudo aquilo pelo qual se constitui o conjunto das relações econômico-sociais: até mesmo o intelecto, uma vez implicado no processo de produção material, se torna, de acordo com essa perspectiva, parte na constituição dessa matéria (infraestrutura).

De um modo geral, Bloch salienta constantemente que a matéria e a sociedade, a natureza e a humanidade não devem ser tomadas enquanto partes distintas, diametralmente isoladas, porém, como partes entrelaçadas num único e mesmo processo – nesses termos, pois, a humanidade pode ser compreendida como parte da matéria dialética cuja particularidade foi a de ter tornado consciente o que antes permanecia tendencialmente cego. Aliás, como sugere J. Splett, foi com o aparecimento do ser humano no mundo – o qual surge na história enquanto filho dessa mater criadora – que a matéria, ela mesma, pôde abrir os seus olhos e se refletir: é através desse agente que a processualidade do mundo ganha consciência. Caberá ao sujeito histórico, por meio de seu trabalho e de acordo com a potência humanamente subjetiva, o papel de realizador da própria matéria segundo as possibilidades reais, em direção ao futuro: “[...] e o processo em direção a esse futuro é unicamente o da matéria, que se condensa e atinge sua finalização no homem como sua flor mais vistosa.” (BLOCH, 2005, p. 244). De modo complementar, note-se que tanto o sujeito quanto o objeto estão em constante interação dialética, circunscritos numa mesma dinâmica, partes de uma única substância, a matéria dialética:

Foi dos homens, há não mais que alguns milhares de anos, que partiu o impulso decisivo, por meio do qual foi inaugurado o que chamamos, de modo imodesto, mas apenas temporariamente exagerado, a história do mundo. O homem e o seu trabalho tornaram-se, desse modo, elementos decisivos no processo histórico do mundo; sendo o trabalho um instrumento da humanização mesma; sendo as revoluções parteiras da sociedade vindoura, da qual a atual está grávida; sendo a coisa para nós, ou seja, o mundo, a pátria mediada, em função da qual a natureza se apresenta como possibilidade que mal foi tocada, que apenas foi franqueada. O fator subjetivo disso é a potência não encerrada de mudar as coisas, o fator objetivo é a potencialidade não encerrada da mutabilidade, da alterabilidade do mundo no quadro das suas leis, de suas leis que, no entanto, também podem variar regularmente sob novas condições. (BLOCH, 2005, 244-245).


Ora, é justamente o entrelaçamento dialético consciente entre o ser humano e a matéria que constituirá o possível dialético (ou possível objetivo-real), o mais importante nível de possibilidade, o núcleo da ontologia do ainda-não. Em certa medida, esse estrato da possibilidade já foi ressaltado em muitos de seus aspectos, especificamente, quando tratamos da relação entre a atividade humana em ressonância ao dinamismo da matéria. É ele que fundamenta o nível das representações utópicas e a capacidade concreta de sua realização, tal como vimos, ao discorrer sobre a perspectiva do existente-de-acordo-com-a-possibilidade e do existente-em-possibilidade. O possível objetivo-real representa, em suma, uma síntese entre o possível subjetivo, objetivamente presumível, antecipatório, e o possível objetivo, guiado pelo dinamismo (cego) da matéria.

Partindo da hipótese de que a natureza possui um dinamismo próprio, o qual se desenvolve segundo regras internas, Bloch irá sugerir também a criação de uma nova técnica, que não mais aquela da dominação interventiva e unilateral da consciência, todavia, uma técnica da aliança, que leve em conta os jogos de equilíbrios, presentes no seio da natureza:

O poder-ser não representaria quase nada se permanecesse sem consequências. O possível só terá consequências se não ocorrer apenas como formalmente permitido, ou ainda como objetivamente presumível ou mesmo como aberto conforme o objeto, mas se constituir uma determinação portadora de futuro no real mesmo. A transição do reino da necessidade para o reino da liberdade tem chão somente na matéria processual inconclusa. Justamente os extremos até o momento mantidos no maior distanciamento possível – ou seja: futuro e natureza, antecipação e matéria – coincidem na radicalidade oportuna do materialismo dialético-histórico. Sem a matéria não há solo para a antecipação (real); sem a antecipação (real) não há horizonte concebível para a matéria. (BLOCH, 2005, p. 232, grifo nosso).


Torna-se claro, ao final, que o projeto filosófico blochiano é uma tentativa de retomar o sentido humano da natureza, bem como o sentido natural do ser humano, tese esboçada pelo jovem Marx, nos Manuscritos. A liberdade e a necessidade (sujeito e objeto), dessa forma, superariam as suas antinomias, em vista de uma reconciliação: “[...] a consonância do objeto não reificado com o sujeito manifestado, do sujeito não reificado com o objeto manifestado.” (BLOCH, 2005, p. 245, grifo nosso). A constante distinção feita entre sujeito e objeto se deve, segundo Bloch, à “[...] excessiva enfatização isolada de um (o que torna o sujeito o fetiche último) ou de outro (o que torna o objeto, em aparente curso próprio, o fatum último).” (2005, p. 245). O ainda-não, enquanto tensão que surge originariamente na matéria, encontrará o seu correlato no ser humano: é dessa maneira que o movimento, a tendência arbitrária da matéria, adquirirá um caráter teleológico. O ainda-não, em sua extensão antropológica, isto é, o ser humano como consciência da natureza, se constituirá como o fio condutor, o lado escatológico da matéria – como se o reino da necessidade quisesse se transformar, por meio da figura humana, em reino da liberdade.


Considerações finais

É conveniente ressaltar que a ontologia do ainda-não se desdobra, de modo determinante, na agência humana como elemento importante para a superação das contradições do desenvolvimento histórico. Note-se que, para o filósofo da esperança, a humanização da natureza não deve ser tomada em uma dimensão unilateral, como se a natureza fosse uma força exterior passível de ser dominada, todavia, como parte inalienável na meta pela naturalização do homem. Antes de submeter o objeto ao sujeito, Bloch suprime a tensão tradicional entre o agente e o predicativo, pois a natureza, ela mesma, sob a feição da matéria dialética, é, antes de tudo, potentia subjectiva activa. O ser humano, nesse caso, se constituiria enquanto extensão, extensão consciente dessa matéria utópica e experimental.

É importante, ademais, sopesar o fato de que, de uma forma ou de outra, não podemos nos furtar de resolver as tensões que brotam no cerne da realidade, as quais se encontram em moto contínuo, num fluxo incessante rumo ao futuro. O ainda-não-ocorrido (o futuro), por sua vez, faz parte de uma confluência de possibilidades, continuidades e descontinuidades que, de imediato, nos coloca a responsabilidade de adotar uma prática consciente de si mesma, de suas possibilidades e responsabilidades reais, ao mesmo tempo que seja capaz de perceber e trabalhar, de modo conjunto (sob a forma de uma aliança) com as possibilidades da matéria.

A intenção de Bloch em estabelecer um novo patamar para o pensamento utópico ganha ainda mais força, através de uma fundamentação ontológica, apresentada pelo filósofo enquanto categoria fundamental do real – como vimos, trata-se de uma ontologia do ser enquanto processo (ou do ainda-não), a qual portanto, difere da ontologia tradicional do ser enquanto tal. Enfatiza Bloch: “[...] nada circularia interiormente se o exterior fosse totalmente estanque. Do lado de fora, porém, a vida é tão inconclusa como no eu que opera nesse lado de fora. Nenhum objeto poderia ser reelaborado conforme o desejo humano se o mundo estivesse encerrado, repleto de fatos fixos ou até consumados.” (BLOCH, 2005, p. 194).

Por fim, é evidente que a ontologia de Bloch não buscou negar as tensões da sociedade, como sugeriu Habermas, em prol de um marxismo que se converteria, antiquadamente, em uma filosofia (da natureza). Ao invés disso, ao contrário da abordagem habermasiana, baseada na filosofia moral kantiana, a qual destaca a importância da razão como guia para a ação humana, a ontologia de Bloch apresenta uma visão mais ampla e dinâmica da realidade, estimulando a imaginação e a capacidade criativa e utópica como base para a prática. O "real utópico", ou seja, o real como processo, é formado por uma complexa interação entre a esperança subjetiva e o objetivamente esperado. Com base nessas premissas, Bloch define o escopo de seu projeto filosófico, considerando novas perspectivas teóricas sobre o reino da liberdade e o reino da necessidade.


BETWEEN UTOPIA AND REALITY: THE POSSIBILITIES OF THE WORLD, ACCORDING TO ERNST BLOCH


Abstract: The most important aspect of the Ernst Bloch`s philosophy is based in the statement: “S is not yet P” – an ontological premise that underlies all ramifications of his thinking. In this sense, Bloch says: “the proletariat is not yet sublated, nature is not yet home, the real is not yet articulated reality”, all this is in process, and the task of philosophy is to considerer the real possibilities of what is not-yet-become and change the world in accordance with what could be. Our intention is to contribute to the investigation of the fundamental premises of Blochian thought, especially his ontology of the not-yet, based on a theory of possibilities that intends to reinterpret the Aristotelian concept of matter.


Keywords: Ernst Bloch. Not-yet. Marxism. Theory of Possibilities. Matter.


REFERÊNCIAS

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Recebido: 10/02/2023

Aprovado: 01/04/2023



1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Uberaba (PPGE-UNIUBE). https://orcid.org/0000-0003-3114-9468. E-mail: thiagoreis@ufmg.br.

2 BLOCH, E. Sujeto-objeto. México: FCE, 1959. p. 465-466.

3 Nesse ínterim, Kolakowski, em sua obra “As principais correntes do marxismo” (1978), lançará dúvidas sobre a efetividade em ajuntar o marxismo a uma cosmologia de ordem especulativa. Martin Jay, seguindo o mesmo viés, enfatiza que o pensamento blochiano estaria “[...] enraizado em uma visão cósmica da totalidade, que claramente transcendeu qualquer coisa que se encontrasse em Marx ou em outros de seus seguidores.” (1982, p. 174).

4 “Esse desenvolvimento do conceito aristotélico de matéria passa pelo físico peripatético Estraton; pelo primeiro grande comentarista de Aristóteles, Alexandre de Afrodísias; pelos aristotélicos ocidentais Avicena, Averróis e sua natura naturans; pelo aristotélico de cunho neoplatônico Avicebron; pelos filósofos cristãos heréticos do século XIII Amalrico de Bena e David De Dinant; e chega até a matéria criadora de Giordano Bruno.” (BLOCH, 2005, p. 205).