Existo, logo o mundo pensa: Whitehead, Latour e a estética científica

 

Thiago Pinho[1]

 

Resumo: Muitos pensam que a capacidade crítica e reflexiva, assim como a postura de acolher a contingência, o outro e o debate, é alguma energia interna e bem intencionada de pessoas com mente aberta, como defendem os liberais, quer de direita, quer de esquerda. O que não percebem é o quanto a capacidade de reflexão e diálogo é um fenômeno externo, presente no próprio mundo, produzido apenas graças a um espaço de resistências, encontros e até frustrações, a exemplo da esfera acadêmica e científica. Ele impede que meu cogito e meus convenientes esquemas epistêmicos saiam do controle, em um delírio transcendentalista perigoso, e se apoderem do mundo e das próprias circunstâncias. O objetivo deste ensaio é justamente compreender essa dimensão estética da ciência, essa característica ontológica que atravessa seus contornos, tomando como ponto de partida os conceitos de “importância”, em Whitehead, e matters of concern, em Bruno Latour.

Palavras-chave: Teoria Social Orientada ao Objeto. Whitehead. Bruno Latour. Estética. Ontologia.

 

 

Em qualquer parte em que há unidade de circunstância há, pois,

uma relação estética estabelecida [...]

(Whitehead, 2006, p. 44).

 

Introdução e homenagem

Bruno Latour faleceu em 09 de outubro de 2022, resultado de uma longa batalha contra o câncer. Para uns, um momento breve de tristeza; para outros, um soco no estômago, um instante de angústia, silêncio e choque, pois um vácuo foi produzido no campo das humanidades. Enquanto um autor, uma simples figura específica no cenário acadêmico, seu tempo aqui na Terra chegou ao fim, como se espera de qualquer criatura orgânica em nosso imenso planeta. Mas Latour, de um jeito bem foucaultiano, era muito mais do que um personagem autoral, uma identidade fixa, uma substância. Ele era, no fim das contas, um fundador de discursividade, um ponto de partida ramificado em várias dimensões e áreas do conhecimento, ou seja, uma verdadeira potência interdisciplinar. Em invés de propor uma simples teoria, ou mesmo um método; em invés de sugerir um recorte de pesquisa, ou um novo objeto de investigação, como dezenas de milhões fazem lá fora nesse exato momento, Latour foi além, muito além. Com sua linguagem beirando os alpes nietzschianos, numa mistura curiosa de performance, sarcasmo e conceito, Latour trouxe um novo projeto ontológico, uma nova estrutura de realidade prestes a implodir a fortaleza do clássico, do moderno, do famoso sujeito crítico.

Mais do que “interpretar”, verbo preferido dos filhos da modernidade, aprendemos com Latour a “ser”, o que indicaria lá fora um mundo pulsante, criativo, muitos diriam até pós-humanista (Bennett, 2010). Esse curioso pensador francês, nascido em uma família católica de vinicultores, em 1947, não apenas produziu uma nova abordagem, mas um campo de possibilidades onde abordagens são criadas, por mais contraditórias que elas sejam entre si. Latour não era um simples sociólogo, filósofo ou antropólogo, mas um transcendental, um grande horizonte de alternativas que afetou direta ou indiretamente muitos actantes (Latour, 2012), ao redor do mundo, sejam eles cientistas, políticos, advogados ou até mesmo pinturas, construções, bactérias e fenômenos climáticos. Se algo é real, na medida em que afeta o mundo, fazendo parte de seus fluxos de experiência, no ritmo dos seus encadeamentos, podemos dizer que Latour não morreu, apenas redefiniu um pouco nossa forma de lidar com seus efeitos, sua presença agora não mais substancializada.

Nesse horizonte interdisciplinar, cercado por uma atmosfera empirista de experimentações, falhas e remodelagens, Bruno Latour apresenta várias camadas, níveis e centros, o que sugere um solo fértil e descentrado de alternativas. No primeiro contato, enxergamos diante de nós o substantivo “LATOUR”, o que indicaria alguma consistência autoevidente, mas, logo depois, quando essa caixa preta é aberta (Latour, 2001), muitas vezes até implodida, uma rede complexa de associações escorre pelas laterais. Sem dúvida, existe o clássico Latour filósofo das ciências, do Science Studies, como em Vida de Laboratório (Latour, 1979), ou ainda o Latour vitalista, no seu Pasteurização da França (1988), ou aquele decolonial, em Jamais Fomos Modernos (Latour, 1994), ou, talvez, o Latour pragmático, em Investigação sobre os Modos de Existência (Latour, 2019), além do seu perfil ambientalista, em seu livro Down to Earth (Latour, 2018).

Todas essas interpretações não apenas são possíveis, como também sugerem a presença de uma figura dinâmica, criativa e, principalmente, divertida. Quem poderia imaginar que as ciências humanas e sociais conseguiriam ser leves, alegres, e não apenas um poço de ressentimento e tédio? Para além de uma simples arma direcionada a um inimigo, ou um simples escudo em momentos de desespero, temos agora um espaço criativo, ou melhor, construtivo. Chega de iconoclastas (Latour, 2008), de criaturas agressivas e pós-estruturais, sedentas por desconstrução. O objetivo das ciências humanas não é simplesmente mostrar os bastidores desprezíveis da realidade, revelando tudo de precário, contraditório, feio, fedorento, ou qualquer outro tipo de vestígio de inconsciência. Se “o ofício do sociólogo” é esse pacote ressentido, então melhor seguir por outro caminho, talvez pelas trilhas de uma associologia (Latour, 2012).

Graças a Latour e sua mistura de estética e episteme, rir é um ótimo sinal de progresso, seja político, seja religioso ou até científico, um modo suave de lidar com as próprias premissas. Afinal, ninguém quer sofrer com erros categóricos (Latour, 2013), certo? Seu bom humor era mais do que um traço de personalidade ou de estilo literário; era também um reflexo de todo um projeto ontológico, de uma forma de conhecimento sem sistemas fechados, recursos transcendentais ou reducionismos grosseiros. Um tipo de saber pragmaticamente aberto ao risco, ao experimento e, portanto, ao riso, no melhor estilo zaratustriano. Falhar não é um crime, muito pelo contrário... é um privilégio de “corpos que se afetam”, ou melhor, “que aprendem a se afetar”, como diria Latour (2004a), em um dos seus ensaios sobre o papel do sommelier.

Além disso, sua capacidade de refletir sobre seu próprio projeto metafísico, observando possíveis falhas e exageros do passado, como é evidente em seu divisor de águas Why has the critique run out of steam? (Latour, 2004b), é mais do que uma simples característica pessoal, é uma verdadeira virtude. Tudo isso sugere uma humildade epistêmica rara, ao mesmo tempo reconhecendo a urgência por novas ferramentas teóricas, principalmente diante de cenários inéditos e complexos, como crises ambientais e a chegada da nova direita e seu negacionismo científico[2]. Em vez de fatos como construções, envolvendo uma mistura entre humanos e não humanos, em um campo de extrema contingência, a exemplo da sua clássica análise da tuberculose no Faraó Ramsés II[3], em 1978, começamos a presenciar, em 2004, uma mudança curiosa e decisiva em Latour. A partir desse momento, os fatos reaparecem, mas agora como produtos insuficientes, incompletos, demandando algo mais, muito além de um simples pacto epistêmico.

Ao perceber a mudança, no cenário das ciências humanas, e a chegada da nova direita com seu relativismo reacionário, Latour precisava se reconciliar com os cientistas do passado, esclarecendo possíveis mal-entendidos, embora sem abrir mão de todo o seu projeto metafísico de uma crítica ao campo científico. Mas como conciliar uma crítica à ciência quando a criticidade não é mais a exceção, mas a regra? Um espaço onde a ciência deixou de ser acolhida como toda poderosa e acima do bem e do mal, como era na década de 1970, convertendo a si mesma em um pacote arbitrário de significantes, jogos de linguagem, ideologias, nada mais do que um prolongamento de outras esferas, a exemplo da religiosa, econômica e política? Ou seja, como viver em um mundo onde a crítica à ciência não é mais um traço progressista a ser celebrado, mas um vício reacionário que deve ser contido?

E é justamente esse o grande patrimônio intelectual de Bruno Latour ao século XXI, assim como o início da nossa jornada ensaística. O objetivo é compreender as influências desse filósofo francês (e seu mestre intelectual, Alfred North Whitehead), no campo científico, chegando até terras mais contemporâneas e familiares, como durante a pandemia e os movimentos reacionários e negacionistas daquele período. Como podemos avaliar 2020 em termos latourianos e whiteheadianos? Qual o papel da ciência no mundo atual?

 

1 Implodindo o sujeito cartesiano

Muitos pensam que a capacidade crítica e reflexiva, assim como a postura de acolher a contingência, o outro e o debate, é alguma energia interna e bem-intencionada de pessoas com mente aberta, como defendem os liberais, sejam de direita, sejam de esquerda. O que não percebem é o quanto a capacidade de reflexão e diálogo é um fenômeno externo, presente no próprio mundo, produzido apenas graças a um espaço de resistências, encontros e até frustrações, a exemplo da esfera acadêmica e científica. Ele impede que meu cogito e meus preciosos esquemas epistêmicos saiam do controle, em um delírio transcendentalista perigoso, e se apoderem do mundo e das próprias circunstâncias. O objetivo deste ensaio é justamente compreender essa dimensão estética da ciência, essa característica vitalista que atravessa seus contornos, tomando como ponto de partida os conceitos de “importância”, em Whitehead, e matters of concern, em Bruno Latour.

A palavra “importância”, no universo whiteheadiano (1938), depois recuperada por Bruno Latour em um de seus ensaios (Latour, 2004b), nada mais é do que uma tentativa de compreender a ciência para além de simples arranjos epistêmicos, muito além de meros debates sobre verdadeiro ou falso, trazendo o componente estético como um tipo de estrutura constituinte. Como vai ficar claro, ao longo dessas linhas, o conceito de “estética”, nesse ensaio, ultrapassa os limites de um simples sinônimo de arte, invadindo aquilo que os vitalistas chamariam de uma teoria da afecção, ou seja, “[...] a capacidade de afetar e ser afetado” (Massumi, 2014, p. 202, tradução nossa). Em outras palavras, estética e ontologia se confundem, ao contrário do que imagina algum discípulo cartesiano, com sua clássica “bifurcação da natureza” (Whitehead, 1978). Neste ensaio, “[...] considero os afetos humanos e suas propriedades da mesma maneira que as demais coisas naturais” (Espinosa, 2009, p. 194), o que reforça o caráter indistinguível entre o reino estético e o ontológico. Como consequência, isso também implica um ataque direto ao monopólio de um cogito como substância pensante, pretensiosa e a priori, assim como à ideia de criticidade e pensamento como simples introspecção.

Nesse sentido, não sou EU que penso, já que o “pensar” não é uma propriedade de um ente, muito menos um recurso de um sujeito maior de idade, autônomo, no sentido de Kant e suas implicações liberais. Meu pensamento não é reflexo de um impulso interno, seja ele epistêmico ou ético[4], mas resultado direto de um mundo que me ultrapassa, me afeta, me captura. Eu penso, porque esse mesmo mundo transborda, porque ele desafia as minhas conveniências, além das matrizes transcendentais que carrego no bolso (natureza, cultura, ideologia, discurso, esquerda, direita), assim como todas as minhas preciosas manobras epistêmicas.

Em outras palavras, eu penso, porque meu vínculo fenomenológico com a realidade, e o próprio sentimento de indiferenciação entre EU e o MUNDO[5], é quebrado pelo fluxo transbordante de encontros que insistem em me desafiar. Isso significa que “[...] o ambiente nos ultrapassa [...]” (Whitehead, 1938, p. 7, tradução nossa), transborda, resiste, quase sempre com traços de angústia pelo caminho. Sem dúvida, essa dimensão estética vai muito além de simples expectativas humanas, ao comprometer até mesmo um tipo de antropocentrismo ainda insistente nos bastidores da Teoria Social Clássica. Nesse fluxo de uma interobjetividade (Latour, 1996), nas terras distantes e selvagens dos pós-humanistas, é preciso lembrar que “[...] o senso de importância (ou interesse) é incorporado no próprio ser da experiência animal” (Whitehead, 1938, p. 9, tradução nossa). Humanos e não humanos compartilham desse caráter estético, na medida em que fazem parte de um mundo pulsante, complexo e escapadiço, adaptando seus corpos e suas experiências de um jeito até mesmo pragmático.

“Claro que a palavra importância, como no uso comum, tem sido reduzida a uma pequena pomposidade tola que é o extremo da banalização de seu significado [...]” (Whitehead, 1938, p. 12, tradução nossa). Em termos whiteheadianos, “importância” não significa algo de que se gosta, algo de conveniência, muito menos algo de prazeroso. Um fenômeno é importante, na medida em que ele me afeta, principalmente em instantes de desafio, transbordamento e até frustração. A “importância”, portanto, é o contrário de indiferença, neutralidade, frieza, como é observado no clássico dualismo cartesiano entre sujeito (res cogitans) e objeto (res extensa) ou até mesmo na divisão kantiana entre “vontade” e “desejo”. O mundo me afeta, me ameaça, me envolve, me surpreende, sendo esse o critério definidor da “importância” e todas suas implicações estéticas.

Em outras palavras, algo chama minha atenção, toca meu corpo ou, até mesmo, sacode completamente minhas estruturas, sejam literais, sejam metafóricas. A realidade ao meu redor não é apenas um conjunto de matters of fact, simples fatos brutos no coração do mundo, mas também matters of concern (Latour, 2004b), dimensões relevantes ou irrelevantes, prazerosas ou desprazerosas, agradáveis ou desagradáveis. Isso significa que "[...] a súbita e um tanto milagrosa aparição de assuntos de fato [matters of fact], é agora posta em dúvida com a fusão de assuntos de fato em assuntos altamente complexos, historicamente situados, ricamente diversos e preocupantes" (Latour, 2004b, p. 237, tradução nossa).

Sem dúvida, “todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal”, diria qualquer silogista confiante em seu raciocínio analítico e bem tautológico. Seguindo um caminho whiteheadiano, Ivan Ilitch, em Tolstói, suspeitaria de tanta obviedade. Esse é

[...] o exemplo de um silogismo que tinha estudado na lógica de Kiesewetter - Caius é um homem, os homens são mortais, portanto, Caius é mortal - tinha-lhe parecido que toda a sua vida estava correta apenas em relação a Caius, mas de forma alguma em relação a si próprio. Para o homem Caius, homem em geral, era perfeitamente correto; mas ele não era Caius e não era homem em geral [...] E Caius é de fato mortal, e é verdade que ele morre, mas para mim, Vanya, Ivan Ilyich, com todos os meus sentimentos e pensamentos - para mim é outro assunto (Tolstoy, 1973, p. 70, tradução nossa).

 

Para além de juízos analíticos ou sintéticos, muito distante de um simples compromisso epistêmico, existe a esfera estética da “importância”, o espaço do matters of concern, no sentido latouriano do termo. Segundo Whitehead (1938, p. 18, tradução nossa), "[...] eu não estou defendendo a irrelevância da ciência. Tal doutrina seria insensata [...] Meu ponto é a incompletude da informação". Em outras palavras, a estrutura epistêmica (verdadeiro ou falso) é muito importante, mas insuficiente, demandando a estética como um complemento necessário, o que não significa um abandono dos fatos, como acontece no pós-estruturalismo e seu pano de fundo neokantiano. Significa apenas, como diria Camus, em seu livro A queda, que “[...] eu estava provavelmente no reino da verdade. Mas a verdade, cher ami, é um tédio colossal" (Camus, 1956, p. 32, tradução nossa). Como enfatiza Bruno Latour (2004, p. 244, tradução nossa):

De todos os filósofos modernos que tentaram superar os fatos, Whitehead é o único que, em vez de tomar o caminho da crítica e desviar sua atenção dos fatos para suas condições de possibilidade, como Kant fez [...], tentou se aproximar deles ou, mais exatamente, ver através deles a realidade que exigia uma nova atitude realista de respeito.

 

            Graças à bifurcação da natureza, fatos e valores parecem dois extremos irreconciliáveis, ambos separados por um abismo profundo, ontológico. Tudo isso levou a um dilema meio óbvio, no campo da Teoria Social, especialmente com a linhagem neokantiana que atravessava suas fronteiras, a exemplo de figuras como Dilthey[6], Weber, Ortega y Gasset e muitos outros: a) ou falamos de fatos (Ciências Naturais) ou b) falamos de valores e sentido (Ciências Humanas). Com a chegada do pós-estruturalismo, na década de 1960, e sua remodelagem do projeto neokantiano com sua obsessão epistêmica, essa estrutura dualista ganhou cada vez mais força, fazendo parte do repertório de muitos teóricos sociais ao redor do mundo.

Dada a história e a influência da distinção entre o valor dos fatos e a teoria social, nunca seria tão simples como simplesmente declarar que o fato e o valor não são realmente separados. A bifurcação da natureza (como exemplificado no dualismo do valor-fato) não pode ser retificada ou curada simplesmente se dizendo que não é assim ou que "não é dessa forma". A “importância" de Whitehead é aquele momento de condensação de sua filosofia à inclusão do fato ao valor e do valor ao fato (Halewood, 2011, p. 78, tradução nossa).

 

3 A ciência como recurso estético

Nós, cientistas, somos críticos não por mérito, ou mesmo por sabedoria, muito menos por motivos éticos, mas porque o mundo não nos deixa em paz, porque enfrentamos a resistência dos nossos pares, figuras que apontam os nossos erros e nos forçam a ir além. Se o pensamento é deixado de maneira espontânea, sem restrições, a não ser em um fluxo descontrolado da minha própria vontade, a paranoia é o único destino, afinal, todos amam a conveniência, o tão famoso viés de confirmação. Isso significa que, além de um compromisso com fatos (matters of fact), existe um tipo de circuito de afetos que impactam, transformam, atraem e frustram. De um jeito bem latouriano, esses fatos não são apenas reais, não apenas estão lá fora, no mundo, mas também “importam” (Whitehead, 1938, p. 4), no sentido de que afetam, resistem.

Se não passo pelo olhar[7] do outro, se não encontro resistentes pelo caminho, o mundo é apresentado a mim como um prolongamento das minhas cadeias de significantes, despencando na paranoia como um destino inevitável, o que Latour (2019) chamou de “Erro Categórico”. O principal problema dos paranoicos, em termos políticos, religiosos ou até mesmo científicos, não é epistêmico (falta de conhecimento) ou ético (falta de caráter), mas estético, entendido aqui como a impossibilidade de se afetar com um mundo pulsante. Eles esquecem que “[...] não há sistema sem resíduo” (Adorno, 1953, p. 253), nenhuma cortina sem mancha, nenhum teto sem buraco. Eles são capturados pelas próprias especulações, presos pela própria linguagem, escravos dos próprios ruídos que saem de suas bocas, fechando completamente seus sistemas interpretativos.

Essas figuras, portanto, além de um perigo na democracia, são também um alerta a todos que não compreenderam muito bem o universo científico, aos pretensiosos positivistas ou pós-estruturalistas que acreditam muito no pacote semiótico guardado em seus bolsos, evitando a todo custo qualquer sinal de resistência. Enquanto os primeiros acreditam em fatos externos presos na superfície entediante do mundo, os segundos creem que fatos não existem, sendo apenas um puro traço correlacionista de discursos, poderes e jogos de linguagem. Apesar da diferença dessas duas posturas, representada no duelo entre modernos e pós-modernos (Latour, 1994), ambas reproduzem a clássica bifurcação da natureza, a entediante imagem de um mundo passivo, indiferente e sem vida. Seja através dos olhos assépticos do cientista de jaleco branco, seja dos dedos flexíveis dos neokantianos, fatos perdem a graça, deixam de ter autonomia, vitalidade. Segundo Latour, as fronteiras desse espaço bifurcado jamais foram tão simples e bem-estruturadas como muitos imaginaram, o que nos leva direto a uma atmosfera alternativa, com uma postura mais radical, “não moderna” (Latour, 1994).

Observem, mais uma vez, que o problema dos modernos e pós-modernos não é simplesmente de caráter, como também não é um simples detalhe epistêmico, mas a existência em um mundo sem objetividade, como diria Latour (1996), ou seja, um espaço onde os objetos não objetam, não resistem, não afetam. Essa estrutura paranoica retira do cenário a estética como matéria constituinte, ao transformar tudo e todos em um mero experimento tautológico, reflexo de uma simples aplicação de métodos higienizados (modernos) ou jogos de poder e linguagem (pós-modernos). Na verdade, todos nós somos vítimas de uma estrutura paranoica, se não encontramos obstáculos, se não encontramos o outro enquanto resistente, enquanto recalcitrante (Latour, 2012). Por isso, o falibilismo de Popper seria uma grande farsa no universo latouriano, ao menos da forma liberal como foi pensada. A estrutura falibilista não está na teoria, muito menos nos indivíduos que a manipulam, mas no campo de relações, na resistência exercida por um outro que me ultrapassa, que resiste aos golpes do meu desejo.

Sem essa característica, não apenas o pensamento científico não existe, mas o próprio campo democrático desaparece por completo. O outro é sempre a condição da minha criticidade e não o meu próprio EU, enquanto um núcleo sábio, honesto e superlegal. Esse outro concreto, transbordante, resistente, ou seja, “teimoso”[8] (Latour, 2004b, p. 237; Whitehead, 1978, p. xiv), é o ponto de partida do meu próprio pensamento. Na prática, o meu pensamento é o próprio outro, na medida em que é a condição de possibilidade de ideias, conceitos, proposições e justificativas. Graças aos meus pares, às revisões, aos congressos, graças aos inúmeros circuitos que filtram, controlam e limitam nossas pretensões, somos capazes de fazer ciência e produzir uma linguagem séria. "Talvez o mundo resista a ser reduzido a um mero recurso porque é – não mãe/matéria/lamentação – mas um coiote, uma figura sempre problemática, sempre um poderoso laço entre significado e corpo" (Haraway, 1988, p. 595, tradução nossa).

O falibilismo deve ser pensado não de forma epistemológica, como uma característica das teorias, ou da ética do pensador, como imaginava Popper, mas enquanto uma matriz ontológica, presente na dinâmica interna da realidade, assim como dos próprios circuitos científicos. Seguindo seu esquema interpretativo, o falibilismo é “[...] uma maneira de se relacionar com o mundo, de se expor aos seus desafios, de aceitar a possibilidade de que nossas previsões sejam contrariadas” (Stengers, 1949, p. 42). Como já deve ter ficado claro, ao longo deste ensaio, ninguém coloca a si mesmo em risco de propósito, não importa o nível ético ou epistêmico do envolvido. Essa premissa liberal, compartilhada pelo próprio Popper, acaba se esbarrando com um obstáculo latouriano importante: o fato de o pensamento crítico ser uma característica do mundo e não de iniciativas individuais bem-intencionadas, nobres ou inteligentes. Em outras palavras, o critério em Whitehead e Latour não é simplesmente ético ou epistêmico, como se espera da maioria dos pensadores das humanas, mas estético, envolvendo a capacidade das coisas em transbordar todas as fronteiras transcendentais imagináveis, desafiando sempre meus próprios limites, até mesmo aqueles mais espontâneos e pré-reflexivos, ou seja, fenomenológicos.

Um sujeito capturado pela paranoia dos modernos e pós-modernos falha, não porque seja “burro”, não porque seja um “monstro”, mas porque não participa de um espaço de resistências em um mundo transbordante. Ele constrói aquilo que Dostoievski tanto odiava, tanto temia; ele produz verdadeiros palácios de cristal, enormes fortalezas tão perfeitas, tão sólidas, tão autossuficientes, onde nada pode entrar, nem mesmo o próprio mundo. O narcisismo da paranoia é óbvio, quando percebemos que a realidade deixa de ser o que é e passa a se transformar em uma mera extensão de minhas demandas, preferências, métodos e até mesmo frustrações.

Embora muitos dos argumentos levantados até aqui tenham um tom crítico, o propósito não é oferecer os autores deste ensaio como criaturas especiais que acolhem contingências e a criticidade sem medo, enquanto todos os outros permanecem à deriva, em águas paranoicas. O objetivo, ao contrário, é mostrar que a solução do problema não se encontra em simples indivíduos, como defendem a esquerda e a direita liberais, com seus critérios epistêmicos e éticos, mas em uma rede complexa de humanos e não humanos. A saída, portanto, é sempre através de agenciamentos coletivos (Latour, 2012), jamais de maneira dispersa e atomizada. Em outras palavras, precisamos menos de pessoas críticas e com mente aberta e mais de espaços complexos, descentrados e plurais, um novo campo pós-humanista de relações. E Bruno Latour, ao menos na minha humilde opinião de sociólogo baiano, é uma escolha perfeita em tempos tão complexos.

 

4 O humanismo estético

Das águas pragmáticas na terra do tio Sam até as muralhas sofisticadas dos estruturalistas, passando pelos cafés existenciais da França, na década de 1960, existem sempre dois tipos de humanismo que percorrem os corredores, palestras, eventos e livros. Existe, por um lado, o humano epistemológico, aquele que domina todas as ferramentas cognitivas, ultrapassando as barreiras da ideologia, e de várias estruturas de ilusão, como acontece com “o sociólogo crítico” (Latour, 2013). E, por outro lado, temos o humano ético, aquele que utiliza sua prática bem-intencionada, o que muitas vezes implica formas radicais de intervenção na realidade. Apesar das diferenças, esses dois modelos de humano, ambos contidos na Teoria Social, compartilham de uma mesma matriz de funcionamento, de uma mesma crença na capacidade humana de controlar as variáveis, seja de forma epistemológica (teórica) e/ou ética (prática).

Obviamente, o humano é uma peça importante e, muitas vezes, decisiva no processo de intervenção no mundo, mas esse humano, segundo a Teoria Social Orientada ao Objeto[9] (T.S.O.O) de Whitehead e Latour, não é aquele epistêmico, nem mesmo o ético, mas sim o Humano Estético. Lembre que estética aqui não é apenas no sentido vulgar e clássico de “arte”, mas também seguindo um recorte mais específico sugerido pelos vitalistas, ou seja, a estética no sentido de Corpo, sensibilidade, envolvendo o potencial de afetar e ser afetado. Estamos falando de tudo aquilo que “[...] dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores” (Espinosa, 2009, p. 184). Esse humano estético, ao contrário do epistêmico e do ético, é muito mais um negociador, um tipo de diplomata (Latour, 2013).

Em outras palavras, o humano passa a fazer parte de uma democracia dos objetos (Bryant, 2011), em um espaço horizontal de relações, e não mais em uma ditadura onde tudo se resume ao seu monopólio paranoico de sentido, como acontece na própria política, com o populismo, seja ele de direita, seja de esquerda. Portanto, como diria Orwell, é preciso ir além da “tirania dos seres humanos” (Orwell, 2000, p. 8). Como resultado, "[...] não são apenas os objetos da ciência que resistem, mas todos os outros também, [até] aqueles que deveriam ter sido moídos ao pó pelos poderosos dentes dos desconstrucionistas [...]" (Latour, 2004b, p. 243, tradução nossa).

Por conta desse caráter de resistência, ou de teimosia, o humano no vitalismo não é um transcendental inevitável, uma condição de possibilidade intransponível, mas um negociador, apenas um participante em um cenário complexo e até mesmo contingente. Nessa “arte da diplomacia” (Stengers, 2010, p. 28), em vez de uma natureza passiva, apenas aguardando o humano com seus dedos epistémicos e éticos, enquanto criaturas sábias e bem-intencionadas, temos agora, ao contrário, um mundo ativo, dinâmico e, principalmente, teimoso. Sem dúvida, nós, humanos,

[...] somos capazes de fazer coisas incríveis que até as plantas e os animais parecem incapazes de fazer, muito menos a matéria inanimada. Lançamos naves espaciais, dividimos o átomo, rachamos o código genético: e estas são apenas as nossas proezas mais recentes após milénios depois da descoberta da roda, da fabricação da cerveja, produção de vidro, agricultura, utilização de fogo, domesticação de animais, assim como desenvolvendo as técnicas mais antigas de cirurgia. Mas todas estas conquistas incríveis, mesmo acreditando que os animais não podem fazer nada tão complexo [...] não torna automaticamente os seres humanos dignos de preencherem cinquenta por cento da ontologia (Harman, 2017, p. 56, tradução nossa).

 

Isso significa que os humanos não são uma parcela privilegiada do universo, muito menos um transcendental todo poderoso que organiza o sentido de coisas passivas, mas um organismo vivo como qualquer outro, em um espaço complexo de interações e teimosias. Na prática, todo esse perfil estético nas entranhas do mundo garante a própria objetividade a que os pós-estruturalistas abdicaram, no altar foucaultiano, sem com isso ceder aos positivistas e sua ideia de ciência com traços tautológicos Em outras palavras, “[...] a meta é uma conquista que não pode ser reduzida a categorias gerais, puramente humanas, uma conquista que exige que os humanos não se sintam como donos da situação, como responsáveis pelo que é alcançado” (Stengers, 2010, p. 22, tradução nossa).

 

4 Estética e ciências humanas

Embora outras áreas das ciências sociais tenham um pouco de dificuldade em acolher o critério estético como parte constituinte de seus repertórios, a exemplo dos modernos e pós-modernos, a antropologia parece um caso curioso, uma exceção curiosa. Dentro de seu repertório etnográfico, apesar de suas múltiplas variações (estruturalista, culturalista, anarquista, decolonial etc.), ela carrega consigo a estética como uma companheira inevitável, questionando, ao mesmo tempo, um certo monopólio epistêmico ainda insistente nos bastidores das humanidades. Quando um antropólogo, como Viveiros de Castro, viaja até os Araweté na região amazônica e observa uma cerimônia xamânica específica, o objetivo não é julgar se o fenômeno é real ou imaginário, verdadeiro ou falso, certo ou errado. O critério não é epistêmico, nem mesmo ético, mas estético, entendido aqui como uma estrutura de sentido, incluindo a forma como corpos e experiências se afetam e também se organizam. Por esse motivo, ele e outros membros da “virada ontológica” recusam o termo “cultura”, já que carrega uma obsessão epistêmica perigosa.

Como diria Lévi-Strauss, descrevendo uma cerimônia Cuna[10], “[...] o fato de que a mitologia do xamã não corresponde a uma realidade objetiva não importa” (Lévi-Strauss, 1963, p. 197, tradução nossa). Em outras palavras, o objetivo do antropólogo não é mergulhar em um debate epistêmico clássico, como acontece entre realistas e idealistas: espíritos existem porque as pessoas acreditam ou as pessoas acreditam porque os espíritos existem? Segundo Lévi-Strauss, esse debate não interessa. O critério estético, ou seja, de sentido, podendo ser chamado também de ontológico, é anterior a qualquer parâmetro epistêmico ou ético. Isto significa que a estética se torna a primeira filosofia” (Harman, 2007, p. 221, tradução nossa), um tipo de fundamento quase ancestral. No campo antropológico, ela sempre falou mais alto, já que a meta do antropólogo é localizar a cadeia de experiências, de afecção, muito além de qualquer debate epistêmico ou ético, embora eles possam até surgir no horizonte, mas sempre como um possível a posteriori.

Como já deve ter ficado claro, ao menos eu espero que sim, a objetividade científica e todas suas implicações práticas não se perdem no vitalismo dos autores trabalhados aqui, mas apenas ganham uma reformulação. Segundo Latour (1996), a objetividade é muito importante no interior das ciências humanas, entendida como o potencial que os objetos e o mundo têm de objetar, de resistir, o que exclui completamente a ideia pós-estruturalista de um mundo como simples reflexo de interpretações, linguagens e poder. Derrida não é Whitehead, “[...] desconstrução não é vitalismo” (Harman, 2009, p. 26), e, por mais pontos de contato que existam entre os dois, elas são linhas de pensamento diferentes entre si, gerando modos distintos de pensar a Teoria Social. O campo da objetividade continua operando, embora atravessado por um fluxo estético pulsante. Quando pensamos na ciência, e até mesmo na própria forma como ela é ignorada, hoje em dia, o parâmetro epistêmico de análise é insuficiente, já que o problema não envolve apenas conhecimento (ou a falta dele). Da mesma forma, o critério ético[11] também não colabora, já que tudo se resume a um simples defeito de caráter, reflexo de pessoas malvadas e sem coração. Para além da epistemologia, e até da própria ética, é necessária a “importância” whiteheadiana e o matters of concern latouriano.

Diante da insuficiência dos parâmetros epistêmicos e éticos, algumas perguntas mais contemporâneas podem ser feitas: por que muitas pessoas lá fora negam a ciência, principalmente quando pensamos na vacina e nos benefícios do lockdown e outras medidas sanitárias? As duas respostas que rondam os corredores de cursos de humanas e sociais sempre foram as mesmas: ou epistemológica ou ética. Em outras palavras, diante do gesto negacionista, temos duas possíveis explicações: a) ou as pessoas têm algum problema cognitivo, gerado pela falta de conhecimento ou reflexo de alguma interferência estrutural ou sistêmica, alienando completamente suas escolhas, em uma resposta mais sofisticada, ou b) elas têm algum problema ético, resultado de um esforço maldoso e insensível diante dos benefícios da vacina, em uma resposta mais vulgar.

Seguindo uma linha whiteheadiana e latouriana, o problema atravessa outros territórios. Em que medida os negacionistas são afetados pelo discurso científico, em que medida a ciência “importa”? Se ela não faz parte do cotidiano das pessoas, a não ser dissolvida em notícias de escândalo, repletas de intensa desconfiança e acusações, como cobrar que elas “se importem”? Se elas não compartilham do universo científico e de seus vários circuitos, se elas nem sequer experimentam um aperitivo de suas redes de trocas e experiências, como pedir relevância? A confiança exige certas condições de possibilidade, sendo elas estéticas, ao menos no sentido de Whitehead e Latour. Não adianta lançar porcentagens, estatísticas e outras espécies de dados na cara das pessoas, aguardando que alguma revelação aconteça, como se fosse um passe mágica. Isso nunca foi o bastante, afinal, a verdade “[...] que pomos nas palavras não trilha diretamente o seu caminho; não é dotado de uma evidência irresistível” (Proust, 2006, p. 281). É preciso mostrar como as instituições funcionam, como se estabilizam, como atuam, reduzindo um pouco nossa obsessão pelo epistêmico, pelo simples verdadeiro ou falso.

Como um exercício mental breve, imagine agora dois namorados, imagine também que um deles insiste constantemente em provar a sua fidelidade, seja com fotos, seja com vídeos ou áudios, em um gesto obsessivo curioso. Toda vez que sai com os amigos, ele traz provas concretas de onde, como e quando estava. Isso não parece um bom sinal, não é? Confiança não é um dado autoevidente, reflexo de números e imagens, mas todo um percurso complexo, constante e sutil, produto de anos de exposição. A rede complexa de humanos e não humanos que atravessa as muralhas aparentemente frias, distantes, do edifício científico, precisa vir à tona. Como ressaltava Latour, no fim da década de 1980, é preciso ver a “ciência em ação”, revelando ao mundo seus circuitos, seus sucessos, suas conquistas, suas parcerias, para além de simples matters of fact. A confiança não é uma essência que brota de corações bondosos ou mentes sábias, mas de uma rede material de humanos e não humanos. Em outras palavras, confiança não se pede, muito menos se ordena, mas se conquista.

 

5 Os riscos do outro extremo: o cientista pós-estruturante

Ao navegar por águas repletas de pós-verdade, onde a palavra-chave é a desconfiança, ou seja, uma eterna hermenêutica da suspeita sobre tudo e todos, o verdadeiro compromisso das ciências humanas e sociais deve ir além de simples críticas ácidas e pós-estruturantes. Se, na década de 1960, o objetivo das humanidades era revelar os bastidores desprezíveis de tudo aquilo aparentemente universal, objetivo, neutro e sólido, hoje esse exercício “crítico” precisa de algumas gotas de prudência, já que a nova direita e os conspiracionistas parecem ter tomado esse lugar. Durante muito tempo, defendemos que

[...] não existe acesso natural, não mediado e imparcial à verdade, que somos sempre prisioneiros da linguagem, que sempre falamos de um ponto de vista particular, e assim por diante, enquanto extremistas perigosos estão usando o mesmo argumento do construcionismo social para destruir evidências duramente conquistadas que poderiam salvar nossas vidas (Latour, 2004b, p. 227, tradução nossa).

 

Continuando o mesmo raciocínio, Bruno Latour insiste:

Talvez eu esteja levando as teorias da conspiração muito a sério, mas me preocupa detectar, nessas misturas loucas de descrença instintiva [...] muitas das armas da crítica social. É claro que as teorias conspiratórias são uma deformação absurda de nossos próprios argumentos, mas, como armas contrabandeadas por uma fronteira confusa para a parte errada, essas são nossas armas. Apesar de todas as deformações, é fácil reconhecer, ainda queimada no aço, nossa marca registrada: Feita na Criticalândia (Latour, 2004b, p. 230, tradução nossa).

 

Além de apontar dedos, em um gesto puramente ressentido, ao desconstruir tudo aquilo que nos ameaça e desagrada, o que Latour chamou de “iconoclasmo”, o papel dos cientistas humanos e sociais no século XXI precisa de um tom diferente, de cores mais vivas, como amarelo, verde e azul, ao invés do clássico cinza que sempre fez parte de nossa paleta de cores. É preciso ir além do gesto iconoclasta, da simples postura de negação de conteúdos e instituições lá fora, e estabelecer uma síntese, uma saída, algo um pouco mais construtivo. E isso [...] porque, para muitos sociólogos, dar uma explicação social de algo significa destruir esse objeto, desmascarar as falsas crenças que as pessoas comuns nutrem sobre eles” (Latour, 2000, p. 4, tradução nossa). Quando certos termos, como “ciência” e “verdade”, aparecem em nossas aulas e palestras, como eles aparecem? Nós os transformamos em palavras vivas que afetam as pessoas ou apenas em uma brincadeira diferencial de significantes sem graça? Ou seja, a ciência e os fatos “importam”, em nossas aulas?

Em termos zaratustrianos, nas palavras do próprio Nietzsche, chegou o momento de abandonar a era do leão, em seu gesto ressentido, agressivo, evoluindo agora até a última etapa do progresso humano: a criança. Em sua postura completamente estética, a criança ultrapassa os limites de uma dialética negativa, de um puro gozo da negação enquanto negação, propondo novos caminhos, novas formas de afeto, de encontro. Se você conhece ou já conheceu uma criança, sabe do que estou falando. Não são puros fatos que interessam a ela, muito menos algum gesto desconstruído e elitista, mas a forma como o mundo esteticamente comunica suas informações, através de cores, gestos, sons e sabores. Ela não quer apenas “analisar” ou “desconstruir” o mundo, mas viver, extraindo da realidade conexões relevantes. Por isso, no universo da criança, tudo tem vida, tudo transpira energia, desde animais até cadeiras e carros. Convenhamos que esse mundo é muito mais interessante do que o nosso, seja aquele povoado de fatos brutos, seja por jogos de linguagem e relações de poder. De qualquer forma, ambos são entediantes, por mais verdadeiros que sejam.

 

Conclusão

Quando seguimos o caminho estético de Latour e Whitehead, não apenas é preciso evitar o percurso do cientista clássico, aquele repleto de positivismo e sua simples constatação de fatos autoevidentes, mas também é necessário fugir da armadilha do cientista pós-estruturante, em seu mundo de intensa desconfiança. Apesar das diferenças, ambos compartilham de um universo passivo e sem vida, sem graça, ou seja, uma atmosfera sem objetividade, ao menos nos termos de Bruno Latour. Como já foi destacado, ao longo de todo este ensaio, antes de sair pelas ruas lançando dados e fatos na cara das pessoas (positivista), ou desconstruindo tudo o que se vê pela frente, em uma hermenêutica da suspeita arrogante (pós-estruturalista), é necessário construir um mundo onde fatos “importam”, onde a natureza não é passiva, apenas aguardando o sujeito de jaleco branco ou o indivíduo foucaultiano.

Apesar de sua morte, no ano passado, em 9 de outubro de 2022, Latour continua uma figura decisiva na compreensão do papel da ciência e seu vínculo com o mundo contemporâneo, principalmente escapando do duelo inútil e perigoso entre positivistas e pós-estruturalistas, entre Sokal e Derrida. Talvez, no meio de tantas tensões, exista um outro caminho, um pouco menos (pós) moderno.

 

I EXIST, THEREFORE THE WORLD THINKS: WHITEHEAD, LATOUR AND SCIENTIFIC AESTHETICS

Abstract: Many people think that the capacity for criticism and reflection, as well as the attitude of welcoming contingency, the other, and debate, is some internal and well-intentioned energy of open-minded people, as advocated by liberals, whether from the right or the left. What they don't realize is how much the capacity for reflection and dialogue is an external phenomenon, present in the world itself, produced only thanks to a space of resistances, encounters, and even frustrations, as in the academic and scientific sphere. It prevents my cogito and my precious epistemic schemes from getting out of control, in a dangerous transcendentalist delirium, and taking over the world and the circumstances themselves. The aim of this essay is precisely to understand this aesthetic dimension of science, this ontological feature that crosses its contours, taking as a starting point the concepts of "importance" in Whitehead and "matters of concern" in Bruno Latour.

 

Keywords: Object-Oriented Social Theory. Whitehead. Bruno Latour. Aesthetics. Ontology.

 

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Recebido: 09/02/2023 - Aceito: 10/07/2023 - Publicado: 13/11/2023



[1] Professor do Centro Universitário Senai Cimatec, Salvador, Bahia – Brasil. Orcid: 0000-0003-4147-6331. Email: pinho.thiago@hotmail.com.

[2] “Fiz mal em participar na invenção deste campo conhecido como Science studies? Será que é o suficiente dizer que não falamos sério? Por que queima a minha língua dizer que o aquecimento global é um fato, quer goste ou não? Por que não posso simplesmente dizer que o argumento está encerrado de vez?” (Latour, 2004b, p. 227, tradução nossa).

[3] Sem dúvida, Latour não quis dizer que a bactéria causadora da tuberculose só existiu por conta do campo científico e de sua rede de articulações e descobertas, ao contrário do que pensa Alan Sokal (2008). Contudo, ainda assim, seu antissubstancialismo de início de carreira guarda um tipo de armadilha, quase sempre misturado em uma linguagem ambígua e aberta a interpretações maliciosas.

[4] “Ético”, aqui, no sentido vulgar de moralidade. Portanto, minhas críticas não se aplicam a autores como Espinosa, uma das bases deste ensaio e daquilo que chamamos de vitalismo. O conceito de “ética” espinosano se confunde com o de “estética”, como vai ficar claro, ao longo do texto, criando uma combinação muito singular. De qualquer forma, o uso do termo “ético”, nestas páginas, é restrito a simples moralidade, o que inclui certos princípios gerais e aceitáveis nos bastidores de uma ação qualquer.

[5] Seguindo o argumento de Meillassoux, podemos chamar esse nível de indiferenciação (epoché) de “correlacionismo”, no qual sujeito e mundo ou sujeito e objeto se confundem, de forma indistinta, embora eu muitas vezes prefira o termo “transcendentalismo”, já que apresenta raízes mais profundas e antigas na Teoria Social (Malabou, 2014).

[6] “Rickert, Dilthey e Weber acreditam que os seres humanos são entes produtores de valores: essa é uma parte nossa, do ser humano, atribuir valores e agir sobre eles” (Halewood, 2011, p. 68, tradução nossa).

[7] O olhar (the gaze) é um conceito lacaniano que destaca o papel do outro enquanto alteridade, enquanto um obstáculo simbólico no caminho de minhas manobras transcendentais, quer feitas pelo meu ego, quer por qualquer outra matriz transcendentalista.

[8] Da mesma forma que seu conceito de matters of concern segue os passos de Whitehead e sua noção de “importância”, o debate sobre a “teimosia” dos objetos e todo realismo implícito que carrega nos bastidores é também uma influência whiteheadiana nos escritos do próprio Bruno Latour (ver o conceito de objeto teimoso, em Whitehead, 1978).

[9] Esse é um termo desenvolvido pelo filósofo norte-americano Graham Harman, em seu livro Immaterialism Objects and Social Theory.

[10] Os Cuna vivem na América Central, onde hoje é o Panamá.

[11] Conforme já destaquei antes, no começo deste ensaio, “ético” é usado aqui no sentido vulgar de moralidade, de princípios gerais e aceitáveis nos bastidores de uma ação qualquer, logo, não se aplica aos próprios debates espinosanos ou vitalistas.