OS MONSTROS HUMANOS EM FOUCAULT E EXISTÊNCIAS
TRANSGÊNEROS
Regiane Lorenzetti Collares
1
Giovana Carmo Temple
2
Resumo: Este artigo foi escrito a partir das formulações de Michel Foucault, no curso Os anormais
(1975), a respeito da dimensão da monstruosidade humana. Em suas linhas gerais, Foucault não apenas
nos fornece um panorama da lenta formação da “família indefinida e confusa” dos anormais, como
também trata da importante participação da figura do monstro humano, na sua composição. Tomando
assim a tematização do monstro humano como fio condutor deste texto, pretende-se lançar alguns
questionamentos sobre as tecnologias de saber e estratégias de poder que tornaram possível a sua
existência, quais sejam: como a dimensão da monstruosidade veio a se atrelar ao quadro da sexualidade?
De que modo o dispositivo da sexualidade se implicou à proliferação dos vultos pálidos dos monstros
humanos? E, em um último passo, pergunta-se também sobre as possibilidades de resistência política,
do ponto de vista de corpos dissidentes, na medida em que eles fazem frente ao universalismo violento
das determinações pautadas pelo verdadeiro sexo.
Palavras-chave: Monstro humano. Sexualidade. Verdadeiro sexo. Resistência política.
Uns a nascer, e em parte já formados,
Em parte, os membros seus inda imperfeitos;
E vê-se muitas vezes que de um corpo
Metade viva já, metade é terra.
Umidade e calor dão vida a tudo,
e mutuamente se temperam ambos.
Bem que d’água contrário o fogo seja,
Sai do úmido vapor quanto é gerado;
A discorde união fermenta, e cria.
Ovídio, Metamorfoses
Introdução
Em dezembro de 1971, uma jovem manicure chamada Waldirene, vinda do interior de
São Paulo, chegou à capital paulista com o propósito de se submeter à cirurgia de redesignação
sexual, a primeira realizada no Brasil. Após a operação, ela chegou a afirmar ter-se se visto
livre dos “órgãos execráveis” que a infernizavam: trouxera-lhe um grande alívio, parecendo
“[...] ter criado asas novas para a vida.”
3
1
Professora de Filosofia Política e Ética da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Juazeiro do Norte, CE
Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3066-1163. E-mail: regiane.collares@ufca.edu.br.
2
Professora de Filosofia do Centro de Formação de Professores/CFP da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (UFRB), Cruz das Almas, BA Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9881-5440. E-mail:
giovanatemple@ufrb.edu.br.
3
Todos os relatos de Waldirene, primeira pessoa a realizar a cirurgia de afirmação de gênero, no Brasil, e trechos
do processo judicial contra o médico que a operou foram retirados da matéria de Amanda Rossi para a agência
BBC Brasil (SP), intitulada “Monstro, Prostituta, Bichinha”. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-43561187. Acesso em: 10 maio 2022.
No entanto, no cenário sombrio brasileiro do início da década de 1970, em tempos de
ditadura militar, Waldirene foi interrogada, examinada, escrutinada e vilipendiada, por ter
realizado esse tipo de intervenção cirúrgica. Vale salientar que, na compreensão judiciária da
época, mesmo com o consentimento de quem se submetia ao procedimento médico, a retirada
da genitália masculina era vista como atentado a um “bem físico”, “inalienável e irrenunciável”,
o qual, em última instância, estaria sob a tutela do Estado.
Na denúncia do procurador para a abertura de inquérito policial contra o médico
pioneiro que realizou a redesignação sexual de Waldirene, seguia o seguinte argumento de
acusação:
Não nem pode haver, com essas operações, qualquer mudança de sexo. O que se
consegue é a criação de eunucos estilizados, para melhor aprazimento de suas
lastimáveis perversões sexuais e, também, dos devassos que neles se satisfazem. Tais
indivíduos, portanto, não são transformados em mulheres, e sim em verdadeiros
monstros (grifo nosso). (ROSSI, 2018).
Não importava, portanto, as motivações e, tampouco, o desejo de ter outro corpo das
pessoas implicadas na cirurgia de afirmação sexual
4
, pois tudo isso seria “irrelevante”. Ou seja,
seriam irrelevantes as motivações daqueles que se submetiam a esse tipo de operação, segundo
a Promotoria de Justiça, porque se tratava de monstros, de doentes mentais. Inclusive, na
sentença que condenou em primeira instância o médico que realizou a redesignação sexual de
Waldirene, chegou a se sugerir que ela procurasse um “[...] tratamento psicanalítico de longa
duração como tentativa de cura.”
Desse modo, além de ser vista como monstro e doente mental, para o Ministério Público,
a retirada do órgão masculino do seu corpo também havia deixado algumas sequelas: a
manicure vinda do interior de São Paulo teria se tornado potencialmente perigosa à sociedade
o entendimento do suposto perigo estaria calcado em sua “neovagina” oferecida aos homens,
“[...] induzindo, instigando e auxiliando a prostituição” e do constrangimento trazido às
famílias, pois a cirurgia significaria aos pais ter que “suportar”, no seio dos seus lares, além de
filhos homossexuais (“de que ninguém está livre”, segundo documento acusatório), indivíduos
mutilados.
5
4
Muitas pessoas transgêneros passaram a questionar o termo mudança de sexopara o procedimento cirúrgico
de intervenção em órgãos sexuais, que tal terminologia seria inadequada, porque não se trataria propriamente
de uma mudança de seus corpos, mas de uma redesignação anatômica, a partir do gênero com o qual se sentiam
identificadas. Nesse sentido, outros termos são utilizados para esse procedimento, tais como redesignação sexual,
processo transsexualizador e, mais atualmente, afirmação de sexo. Cf. MASIERO, S. A cirurgia de redesignação
sexual no Brasil. Revista Bagoas, n. 8, 2018; ou, ainda,
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/01/09/conselho-divulga-novas-regras-para-cirurgia-de-
transicao-de-genero.htm. Acesso em: 20 jun. 2022.
5
Termos utilizados pelo Ministério Público de São Paulo, para se referir a Waldirene, no processo contra o
cirurgião Roberto Farina, o médico que fizera o procedimento de afirmação de sexo dela (ROSSI, 2018).
Mesmo que o médico tenha conseguido absolvição em segunda instância
6
e que o laudo
do Instituto Médico Legal (IML) fosse favorável à identificação de Waldirene em acordo com
o sexo feminino, ela teve parte de seus sonhos mitigados, por não ter conseguido, durante muito
tempo, permissão jurídica para mudar o nome e o sexo contidos no registro de nascimento.
Assim, não possuir um documento que certificasse sua existência, enquanto mulher,
inviabilizou-lhe muita coisa: ela se viu circunscrita por toda a vida aos limites da cidade na qual
escolheu morar, foi impedida de realizar viagens, de trabalhar na área de contabilidade curso
concluído antes da cirurgia , de tirar a carteira de motorista etc. Somente aos 65 anos de idade,
quarenta anos depois do pedido de uma nova documentação, ela pôde, enfim, receber o seu
registro de nascimento.
Faz-se importante destacar que, desde 2018, no Brasil, é possível às pessoas trans a
retificação de nome e sexo do registro de nascimento, sem a necessidade de uma ação judicial.
7
No entanto, na matéria jornalística aqui referenciada sobre o caso de Waldirene, o que é ainda
destacado em seu título são os ecos dos estratos discursivos “Monstro, prostituta, bichinha”
os quais foram responsáveis por condená-la a conviver, por quase toda a vida, com o registro
de um nome e de um sexo em que não se via mais reconhecida.
Apesar da atual permissão legal para a retificação dos registros de identificação das
pessoas trans e da despatologização da transexualidade
8
, até hoje é possível encontrar resíduos
do disparate da noção de monstro humano acoplado a esse modo de existência; monstros que
se perpetuam em imagens aterrorizantes, retiradas do quadro caduco das representações
jurídicas e biológicas, trazendo à tona uma atmosfera de repulsa e exclusão, que parece
6
Em 6 de setembro de 1978, o médico Roberto Farina foi condenado a dois anos de reclusão, por lesão corporal
de natureza gravíssima em Waldir Nogueira. Em novembro de 1979, os desembargadores que julgaram o caso, em
segunda instância, anularam a sua condenação.
7
Em 2018, foi julgada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275, pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
permitindo que as pessoas transgêneros retificassem seus nomes, sem precisar recorrer ao Poder Judiciário. Sobre
este assunto, ver: SOUSA, T. S. Retificando gênero ou ratificando a norma. Rev. Direito GV, v. 15, n. 2, 2019.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/LGBqxchkZBjjp4pRLb5kgNq/?lang=pt#. Acesso em: 24 maio
2022.
8
Como afirma Danilo da Conceição Pereira Filho, “[...] o ‘transexualismo e o ‘travestismo continuaram
referenciados no CID-10 como modalidades de ‘transtornos mentais’, classificados como ‘transtornos de
identidade de gênero’. Atualmente, desde a divulgação do CID-11, em junho de 2018, a OMS decidiu pela retirada
das transexualidades desse grupo de patologias psiquiátricas para reenquadrá-las na seção de ‘condições
relacionadas à saúde sexual’, sendo agora classificadas como ‘incongruência de gênero’. É curioso perceber que a
retórica que justificou a inclusão da homossexualidade no CID-9 era exatamente a mesma utilizada tacitamente
pelos ‘cientistas da mente psiquiatras, psicólogos e psicanalistas a fim de justificar a manutenção das
referências nosológicas às experiências trans. Tais argumentos médico-científicos circulavam basicamente em
torno da elaboração de uma imagem universal das pessoas trans enquanto adoecidas, depressivas, com dificuldades
importantes de aprendizagem, memorização, socialização e com uma vida sexual fora de padrões saudáveis,
desregulada, diriam.PEREIRA FILHO, D. da C. (Meta)pragmática da violência linguística. Trab. linguist. apl.,
v. 58, n. 2, maio/ago. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/010318138654118458092. Acesso em: 24 maio
2022.
funcionar atualmente como um dos gatilhos sociais para atitudes transfóbicas, para o
assassinato de transgêneros e travestis, para a precarização das condições de vida delas e deles.
Em suma, tendo em vista o conjunto de discursos e práticas que se voltam contra
existências consideradas dissidentes das regularidades sociais e dos imperativos políticos que
incidem nas nossas vidas, nós nos compelimos a escrever este artigo, a partir das formulações
de Os anormais (1975), curso proferido por Michel Foucault no Collège de France. Em suas
linhas gerais, tal curso não apenas nos fornece um panorama da lenta formação da “[...] grande
família indefinida e confusa” dos anormais (FOUCAULT, 2010, p. 285), como também trata
da importante participação da figura do “monstro humano”, na sua composição.
Tomando, pois, as dimensões da monstruosidade como fio condutor deste texto,
pretendemos nos lançar em alguns questionamentos sobre os equívocos que se deram acerca da
figura dos monstros humanos: como foi possível o seu surgimento? De que modo passaram a
ter múltiplas faces (perverso, criminoso, indivíduo perigoso, desviante sexual etc.) e, não
apenas isso, como essa figura veio a ter uma presença destacada na “grande família confusa”
dos anormais? De que forma o monstro humano, forjado entre as fronteiras do campo jurídico
e médico, adquiriu o caráter de monstro moral? E, em um último passo indagativo, como a
monstruosidade pôde se implicar à dimensão da sexualidade?
Se aqui tomamos como ponto de partida os caminhos do pensamento foucaultiano,
quase cinquenta anos após as formulações do curso Os anormais, isso se tanto pelo propósito
de querermos ressaltar, em acordo com ele, o caráter “ridículo” de discursos que apontam para
o “monstro humano” quanto para examinarmos algumas inflexões atuais do dispositivo da
sexualidade, que, por vezes, empreendem uma atmosfera suspeita e nebulosa a envolver os
corpos dissidentes, no que se refere a padrões de comportamentos e de afetividades.
Por fim, se ainda vemos as sombras monstruosas aderirem àquela(e)s que se desviam
do “verdadeiro sexo”, é nesse ponto, na existência e sobrevivência de corpos e prazeres, os
quais, de alguma forma, afrontam as classificações e apreensões dos mais diversos tipos de
saber sobre a sexualidade, que pretendemos salientar a constituição de espaços de resistência
que porventura surgem aos que, tal como Waldirene, sustentam mesmo que a duras penas
suas “novas asas para a vida”. Essas asas se alçam, muitas vezes, para escapar à anulação e
captura da própria vida, para enfrentar as violências cotidianas sofridas e a constante ameaça
de extermínio, fomentadas por discursos e práticas alijados da alteridade e, sobretudo, para a
composição política de alianças nas quais se coloca em pauta a construção de si mesmo e de
relacionalidades que não sejam impossibilitadas e mitigadas em face do sexual.
1 As metamorfoses do monstro humano e a questão da sexualidade
A propósito do surgimento da noção de monstro humano, em um breve trecho
explicativo do “Resumo do curso” de Os Anormais, Foucault comenta:
O monstro humano. Velha noção cujo quadro de referência é a lei. Noção jurídica,
portanto, mas no sentido lato, pois não se trata apenas das leis da sociedade, mas
também das leis da natureza; o campo de aparecimento do monstro é um domínio
jurídico-biológico. Sucessivamente, as figuras de ser meio homem, meio bicho
(valorizadas principalmente na Idade Média), as individualidades duplas (valorizadas
no Renascimento), os hermafroditas (que levantaram tantos problemas nos séculos
XVII e XVIII) representam essa grande infração; o que faz que um monstro humano
seja um monstro não é tão a exceção em relação à forma espécie, mas o distúrbio
que traz às regularidades jurídicas (quer se trate das leis do casamento, dos cânones
do batismo, ou das regras de sucessão). O monstro humano combina o impossível com
o interdito. (FOUCAULT, 2010, p. 285).
É na aula do dia 22 de janeiro de 1975 que Foucault se debruça sobre essa figura
emblemática que foi o monstro humano. Ele dedica uma sequência de três aulas (22, 29 de
janeiro e 5 de fevereiro de 1975), no intuito de investigar as suas metamorfoses até o ponto de
sua absorção pelo campo das anomalias, até o ponto em que se tornou “pálido”. Ora, o monstro
humano empalideceu, ao passo que o seu caráter monstruoso começou a se apresentar como
uma condição geral da anormalidade, no contexto social.
Nesse ponto das considerações foucaultianas, François Ewald e Alessandro Fontana, na
edição estabelecida do curso
9
, assinalam que a leitura das transformações históricas dos
monstros teve influência marcante da obra de Ernest Martin, Histoire des monstres depuis
l’Antiquité jusqu’à nos jours, publicada em 1880. Seguindo o fio da pesquisa de Ernest Martin,
o que Foucault oportunamente vem a grifar, em seus cursos sobre os anormais, é que houve
uma espécie de tendência histórica, a fim de que, no final do século XVIII e no decorrer do
século XIX, o monstro humano viesse a se destacar como “a figura mais importante”. O
monstro humano se torna o grande problema, porque ele atentaria tanto contra o campo médico
quanto contra o judiciário: “[...] o monstro é que é a figura essencial, a figura em torno da qual
as instâncias de poder e os campos de saber se inquietam e se reorganizam.” (FOUCAULT,
2013, p.53).
Nessa transformação da figura do monstro, Foucault não deixa de notar a sua
“comunicação” com duas outras figuras, a saber, o indivíduo a ser corrigido” e o
“masturbador”
10
, em que tais figuras despontariam como protagonistas no campo dos anormais,
9
Referência contida na nota de rodapé 3, da aula do dia 22 de janeiro de 1975 (FOUCAULT, 2013, p. 65).
10
De modo sumário, quanto ao “indivíduo a ser corrigido”, personagem que surgiria no século XVIII, Foucault
vem a ressaltar que o seu contexto de referência é a família; “[...] o indivíduo a ser corrigido vai aparecer nesse
jogo, nesse conflito, nesse sistema de apoio que existe entre a família e, depois, a escola, a oficina, a rua, o bairro,
a paróquia, a igreja, a polícia etc.(FOUCAULT, 2013, p. 49). Já quanto ao onanista ou masturbador, o qual veio
a ser uma figura surgida no século XIX, também teria seu contexto de aparecimento dado no seio da família, no
desde a metade do século XVIII (FOUCAULT, 2013, p. 51). Faz-se importante observar que,
das três figuras (do monstro humano, do indivíduo a corrigir e do onanista), o pensador cumpre
em destacar que o monstro-humano, do século XVIII até o começo do século XIX, vem a ser a
figura “mais importante”, o principal vetor dos processos de normalização (FOUCAULT, 2013,
p. 53).
Ernest Martin, no final do século XIX, comentava o seguinte sobre a ênfase do
monstro humano, a partir dos processos de normalização:
Eles refletem as preocupações supersticiosas que cercam as mentes de seus autores;
então, pouco a pouco, a imaginação cede à reflexão. Notamos que as mesmas
monstruosidades aparecem com os mesmos personagens; suas regularidades
emergirão e darão a ideia de tipos segundo os quais se constituem, e que devem estar
em íntima relação com a unidade do plano segundo o qual a organização normal é
concebida e realizada. (MARTIN, 1880, p. 114. tradução nossa).
Nesse sentido, indo além de uma perspectiva meramente histórica, Foucault buscaria,
então, nos apresentar como os monstros humanos vieram a ser incorporados em uma nova
economia de poder, uma articulação de poder que não se deteria apenas em matá-los ou puni-
los, mas em classificá-los e tratá-los, passando a se infiltrar na vida cotidiana de todos eles. No
panorama do curso sobre os anormais, ao que seus assuntos gerais nos indicam, abordar os
monstros humanos significou não apenas tematizar como cada época foi construindo uma
imagem assustadora acerca deles, mas, principalmente, de que modo e como eles foram diluídos
e esfumaçados no campo da normalidade, restando-nos seu vulto inconveniente e inassimilável.
Na primeira aula de Foucault dedicada aos monstros humanos, chama-se a atenção para
o fato de essa figura ter duas dimensões envolvidas na sua constituição histórica; uma delas é a
noção de que o monstro humano seria defeituoso, disforme (portentum ou ostentum em acordo
com o direito romano), enquanto a outra, de que ele, como monstrum, traria ameaça e seria
perigoso à sociedade (FOUCAULT, 2013, p. 54). Assim, o quadro geral dos monstros-humanos
não cessaria de estar relacionado a uma dimensão do horror, diante de suas formas disformes e
do medo do perigo, que supostamente alguns indivíduos trariam.
Além disso, Foucault também não deixa de destacar uma dimensão transgressora
atinente aos monstros humanos transgressão por deformar os limites naturais, as leis, as
classificações, as convenções etc. Sobre o caráter transgressivo do monstro, Foucault comenta:
“[...] transgressão, por conseguinte, dos limites naturais, transgressão das classificações,
entanto, um “[...] campo mais estreito de família.Sobre isso: “[...] seu contexto de referência não é mais a natureza
e a sociedade como no caso do monstro, não é mais a família e seu entorno como no caso do indivíduo a ser
corrigido. É um espaço mais estreito. É o quarto, a cama, o corpo; são os pais, os tomadores de conta imediatos,
os irmãos e as irmãs; é o médico toda uma espécie de microcélula em torno do indivíduo e do seu corpo.
(FOUCAULT, 2013, p. 50).
transgressão do quadro, transgressão da lei como quadro: é disso de fato que se trata na
monstruosidade.” (FOUCAULT, 2013, p. 54).
No entanto, mesmo que as dimensões do defeituoso, do perigoso, do transgressivo nunca
deixassem de participar do universo da monstruosidade humana, no quadro dos anormais, o que
passaria a se realçar não é outra coisa senão o fato de a existência do monstro humano “[...]
tocar, abalar, inquietar o direito, seja o direito civil, o direito canônico ou o direito religioso.”
(FOUCAULT, 2013, p. 54). Logo, ao longo do curso de 1975, Foucault enfatiza as alterações
das formas aberrantes assumidas pelos monstros humanos, na medida em que suas
deformações/transformações são descritas e tratadas de perspectivas diferenciadas, no decorrer
da história.
Por exemplo, vale inicialmente apontar que uma das deformações que comporia a figura
amedrontadora do monstro humano, quer na Idade Média, quer no Renascimento, se referia ao
seu aspecto [...] essencialmente misto” (FOUCAULT, 2013, p. 54). Nesse contexto, o “ser
possuído” e o “homem bestial” surgem como monstros, na época medieval, porque são vistos
como invadidos e misturados a outros seres: o homem bestial é monstro pela fera que traz dentro
de si; o possuído não deixa de ser um monstro, pelo demônio que se apossaria da sua alma.
Dessa forma, podemos observar que tal entendimento também reverberaria em uma
espécie de disposição misógina salientada no contexto da Idade Média, por exemplo, na ideia
de que o demônio tinha o poder de inserir no corpo de uma mulher a semente de diversas
espécies de animais, e de que dessa mistura se produziriam os monstros (MARTIN, 1880, p.
95), ou, ainda, das relações íntimas de mulheres com o demônio. Acerca disso, Silvia Federici,
em O calibã e a bruxa, comenta:
Todos os medos profundamente arraigados que os homens nutriam em relação às
mulheres (principalmente devido à propaganda misógina da Igreja) foram
mobilizados nesse contexto. As mulheres não só foram acusadas de tornar os homens
impotentes, mas também sua sexualidade foi transformada em objeto de temor, uma
força perigo, demoníaca [...] uma acusação recorrente nos julgamentos por bruxaria
era de que as bruxas estavam envolvidas em práticas sexuais degeneradas,
essencialmente na cópula com o diabo e na participação em orgias. (FEDERICI, 2017,
p. 341).
Igualmente, nos tratados dos séculos XVI e XVII, no Renascimento, os monstros
humanos foram apresentados e, consequentemente, estigmatizados em decorrência dessa
mistura perturbadora, de uma individualidade dupla; tal misto podia ser identificado nos irmãos
siameses, crianças nascidas com duas cabeças e um corpo só. Ou ainda no indivíduo
hermafrodita, que traria o amalgamado de dois sexos em seu corpo (FOUCAULT, 2013, p. 56).
Até mesmo nos bebês que nasciam natimortos, vindo a sobreviver um curto tempo, se
reconheciam traços monstruosos, justamente por manifestarem a mistura da vida e da morte. O
monstro humano viria, assim, a se atrelar a um composto natural, heterogêneo e inusitado, por
isso, o seu caráter assustador e enigmático.
Todavia, segundo a pesquisa foucaultiana, essa mistura perturbadora presente nos
monstros pouco a pouco vai se deslocar para o plano de uma “falha” individual, uma
degeneração
11
, seja orgânica, seja moral, propiciando um acervo de classificações e descrições
científicas sobre os indivíduos que teriam se desviado do curso “normal” de seu
desenvolvimento. Nesse panorama classificatório, a noção de instinto passa a ser uma chave de
inteligibilidade oportuna para a “compreensão” dos até então incompreensíveis monstros
humanos.
A respeito do instinto, Foucault assinala:
[...] o instinto permite reduzir a termos inteligíveis essa espécie de escândalo jurídico
que seria um crime sem interesse, sem motivo, e, por conseguinte, não punível; e, de
outro lado, transformar cientificamente a falta de razão de um ato num mecanismo
patológico positivo. (FOUCAULT, 2013, p. 118).
Assim, em um “jogo do saber-poder”, um rompante instintivo vem a ser identificado no
acometimento de crimes bárbaros, como o caso emblemático de Henriette Cornier.
12
Nesse
caso, a criminosa mata uma criança sem alegar nenhum motivo, apenas diz que o seu ato tinha
sido decorrente de “uma ideia”. Por essa ação impensada e instintiva, ela passa a ser vista como
doente, possuidora de “uma patologia da conduta criminosa.”
13
Vale salientar que a dimensão de monstruosidade também se aproximaria de condutas
menos trágicas. Além das impactantes atitudes bárbaras, assassinatos, a monstruosidade se
11
Segundo as pesquisas foucaultianas, de modo sumário, a ideia de degeneração nasceria como uma maneira “[...]
de isolar, de percorrer, de recordar uma zona de perigo social e lhe dar, ao mesmo tempo, um estatuto de doença,
um estatuto patológico.(FOUCAULT, 2013, p. 102). François Ewald e Alessandro Fontana, editores desse curso,
nos chamam a atenção, em particular, para a teoria da degeneração tratada por B.-A. Morel, Traité des
dégénérescences physiques. intellectuelles et morales de I 'espece humaine et des causes qui produisent ces
variétés maladives, Paris, 1857; id., Traité des maladies mentales, Paris, 1860; V. Magnan, Leçons cliniques sur
les maladies mentales, Paris, 1891; V. Magnan e P.-M. Legrain, Les degeneres. État mental et syndromes
épisodiques, Paris, 1895 (FOUCAULT, 2013, p. 115, nota 9).
12
Esse crime aconteceu em 1825, na França, tendo, à época, grande repercussão. Trata-se do caso de uma
empregada doméstica que mata a filha de uma vizinha com um facão. Quando perguntada pela motivação do
crime, Henriette apenas afirma: “Foi uma ideia”. Foucault relata esse crime, durante a aula do dia 05 de fevereiro
de 1975, sendo de extrema importância para explicitar a injunção do poder médico e do judiciário.
13
Sobre a conduta criminosa, Foucault a ressalta, a partir do contexto do projeto Prunelle: “E no tomo XVI do
Journal de médicine, Prunelle apresenta um projeto de pesquisa na penitenciária de Toulon, para verificar se os
grandes criminosos presos em Toulon podem ser considerados ou não doentes. Primeira pesquisa, acho eu, sobre
a medicalização possível dos criminosos [...], assinala-se o ponto a partir do qual vai se organizar o que poderíamos
chamar de uma patologia da conduta criminosa. Daí em diante em virtude dos princípios de funcionamento do
poder penal, em virtude não de uma nova teoria do direito, de uma nova ideologia, mas das regras intrínsecas da
economia do poder de punir –, se punirá, em nome da lei e claro, em função da evidência do crime manifestada
a todos, mas se punirão indivíduos que serão julgados como criminosos, porém avaliados, apreciados, medidos,
em termos de normal e de patológico.(FOUCAULT, 2013, p.78)
atrelaria a indivíduos vistos sob suspeita, classificados como monstros devido às suas atitudes
subversivas, desobedientes, insubmissas. Nesse caso, o monstro, um monstro eminentemente
moral, vem a ser o déspota político, a exemplo do rei que faz [...] de seu interesse a lei arbitrária
que quer impor aos outros” (FOUCAULT, 2013, p. 79), ou o revolucionário, pela perturbação
e ameaça à ordem pública.
Com esse quadro diversificado dos monstros humanos e suas transformações, destaque-
se, no curso foucaultiano, o hermafrodita, como uma das figuras mais investidas de atenção, no
contexto dos anormais. Desde a Idade Média, por exemplo, de modo geral, os hermafroditas
em certa medida já eram vistos como monstros; pelo horror que suscitavam, eram mortos com
crueldade, queimados e, depois, tinham suas cinzas jogadas ao vento.
No entanto, seria na Idade Clássica, séculos XVII e XVIII, que os casos de
hermafroditismo, ainda como monstruosidades, passaram a ser permeados por um contexto
moral e regulador direcionado ao sexo. Na esteira da pesquisa de E. Martin, em sua Histoire
des Monstres, Foucault retém oportunamente dois casos de hermafroditismo, “o hermafrodita
de Rouen” (1601) e o de “Anne Grandjean” (1765), casos que, para ele, foram marcantes por
sinalizarem toda uma reconfiguração da figura do monstro humano, a partir da dimensão da
sexualidade.
O primeiro caso a despertar sua atenção foi o da hermafrodita de Rouen, julgado em
1601 e relatado por J. Duval, no seu Tratado dos Hermafroditas.
14
Esse perito, primeiro expert
a ser requerido pelo parlamento para proceder como médico-legista, narra a história de alguém
considerado como uma mulher, chamada Marie Le Marcis; o seu “crime” estaria no fato de, aos
poucos, ter-se transformado em homem, vindo a se casar com uma viúva. Portanto, a acusação
contra Le Marcis se ancoraria no fato de “ela” se dar a ver como homem, sem ter nenhum sinal
de virilidade, sendo por isso classificada como um caso de “monstruosidade hermafrodita”
(MARTIN, 1880, p. 105).
Acerca do desdobramento do caso de Marin Le Marcis, E. Martin alude ao parecer de
Riolan, um dos grandes nomes da ciência médica dessa época: “Ele chegou à conclusão de que
Le Marcis teve boa fé, pois as aparências de seu sexo eram tais que ela pôde se enganar sobre
a realidade do seu próprio sexo.” (MARTIN, p. 105-106). Desfecho do caso: em decorrência
desse tipo de parecer médico, por se considerar que Le Marcis se enganara, ao se ver como um
14
Esse caso foi registrado em Des hermaphrodits, accouchements des femmes, et traitement qui est requis pour
les relever en santé et bien élever leurs enfants, Rouen, 1612, p. 383-447, por J. Duval, e reeditado pelo mesmo
autor, em Traité des hermaphrodits. Parties génitales, accouchements des femmes, Paris, 1880, p. 352-415 (Cf.
FOUCAULT, 2013, p. 67, nota 23).
homem, somente na condição de “engano”, ele escaparia da prisão perpétua. No entanto,
deveria vestir roupas femininas e permanecer solteiro, sob pena de morte.
o segundo caso que teria sido decisivo para Foucault, no que diz respeito à relação
entre monstruosidade e sexualidade, mais de 150 depois da “hermafrodita de Rouen”, foi o de
Anne Grandjean. Ela, também hermafrodita, inquieta pela atração que sentia por outras
mulheres, resolve se considerar como homem. Grandjean acabou sendo levada a juízo e
declarado culpado, porque, de acordo com o laudo de um cirurgião, de fato ele seria uma
mulher. Por ser anatomicamente uma mulher, não poderia assim viver conjugalmente com uma
pessoa do mesmo sexo.
Apesar da semelhança quase total com o caso de Le Marcis, o desfecho do caso de
Grandjean fora outro: além de ser considerado culpado, ele foi visto como possuidor de uma
grave anomalia. Ao ser declarado culpado, segundo Foucault, o que se ressalta dessa
culpabilização é o desaparecimento da figura da monstruosidade, vista como uma mistura de
dois sexos. Da perspectiva da medicina, mesmo com a indistinção anatômica dos sexos, todo
hermafrodita traria um sexo dominante, o sexo verdadeiro.
O caso de Grandjean se faz, então, um marco decisivo no entendimento de que a
monstruosidade dele não estaria mais assentada na mistura dos sexos. Com o saber médico
endossando a existência de um verdadeiro e único sexo, o que passa a se ressaltar é que as
relações sexuais e amorosas estabelecidas entre indivíduos do mesmo sexo seriam tão somente
[...] esquisitices, espécies de imperfeições, deslizes da natureza.” Isto é, essas esquisitices,
esses deslizes, tais “gaguejos da natureza” começam a ser vistos como [...] o princípio ou o
pretexto de certo número de ações criminosas.” (FOUCAULT, 2013, p. 62).
Diante dessa nova perspectiva classificatória, a monstruosidade que se torna
condenável não estaria mais relacionada ao fato de alguém nascer hermafrodita. Noutros
termos, a monstruosidade não é mais a mistura indevida do que deve ser separado pela natureza,
comenta Foucault: [...] é simplesmente uma irregularidade, um ligeiro desvio, mas que torna
possível algo que será verdadeiramente a monstruosidade.” (FOUCAULT, 2013, p. 62).
A amplitude dos assuntos tratados nas aulas foucaultianas sobre os anormais nos indica
que o desviante sexual, como um monstro a ser domado e corrigido, animaria a articulação de
uma rede de instâncias de poderes e campos de saberes. Essa articulação saber-poder passa a
ser determinante, sobretudo, na medida em que, em função dela, se desponta toda uma atenção,
ênfase, vigilância à dimensão da sexualidade, à forma de ela ser vivenciada, à verdade que ela
revelaria sobre nós.
Se as histórias de monstruosidade humana despertavam uma espécie de sentimento
ambíguo de horror e fascínio, devido às suas formas mistas, naturais, deformadas, a figura do
monstro-humano vai aos poucos sendo fagocitada pelo contexto da sexualidade, como um
objeto privilegiado da constituição da scientia sexualis, passando do registro de uma
monstruosidade como aberração da natureza para a monstruosidade da conduta cotidiana.
E, se o indivíduo monstruoso continua a aparecer, e ainda aparece! Foucault
advertia em sua aula , ele não surge mais como um monstro desmedido, mas se divide, se
distribui, numa nuvem de pequenas anomalias, “[...] de personagens que são ao mesmo tempo
anormais e familiares” (FOUCAULT, 2013, p. 94). Assim, o monstro bicho-papão de outrora
se tornaria o “Pequeno Polegar” tolerável e tratável de hoje. Nessa proliferação de uma
“multidão de pequenos polegares”, todos nós, em certa medida, passaríamos a carregar nosso
quinhão monstruoso; uma virtualidade monstruosa ancorada em nosso sexo, uma face
importuna a espantar e atravancar as chances de vivermos ao nosso modo.
2 Dos fantasmas e fantasias da verdade do sexo
Podemos notar que Foucault elabora sua História da Sexualidade, lançada em 1976,
como uma espécie de prolongamento das questões que aparecem em seu curso de 1975 sobre
os anormais. Assim, no primeiro tomo de sua pesquisa dedicada à história da sexualidade, ele
vem a se deter nos múltiplos efeitos da constituição de uma scientia sexualis.
15
Essa ciência,
dada no final do século XIX, surgiria como uma prática médica “insistente e indiscreta”, a qual
teria insuspeitamente instaurado uma “[...] licenciosidade do mórbido.” (FOUCAULT, 1988,
p.62)
Compreendemos, em termos gerais, que essa licenciosidade do mórbido parece não se
servir de outra coisa senão dos fantasmas dos monstros humanos, imagens tenebrosas que
serviram de pretexto para que as ciências sexuais pactuassem a promessa de “[...] assegurar o
vigor físico e a pureza moral do corpo social”, e não apenas isso, mas de “[...] eliminar os
portadores de taras, os degenerados, e as populações abastardas.” Noutros termos, em nome da
defesa da sociedade frente aos monstros humanos agora sexuais , em uma demanda biológica
e histórica, tal ciência, em meio aos seus “bons” tratamentos, realça Foucault, teria não
endossado, mas constituído “[...] os racismos oficiais, então iminentes.” E, talvez, seu aspecto
mais embaraçoso: ela “[...] os fundamentava como verdade.” (FOUCAULT, 1988, p. 62).
15
Para tratar da Scientia Sexualis, Foucault dedica a parte III da História da Sexualidade I a vontade de saber.
Cf. FOUCAULT, 1988, p. 59-84.
Essa verdade, devidamente questionada por Foucault, teria sido então produzida na
intersecção entre cnicas de confissão e uma discursividade científica, isto é, onde “[...] os
mecanismos de ajustamento (técnica de escuta, postulado de causalidade, princípio de latência,
regra de interpretação, imperativo de medicalização)” (FOUCAULT, 1988, p. 78) começariam
a se empreender. Nesse panorama,
[...] a sexualidade foi definida como sendo, “por natureza”, um domínio
penetrável por processos patológicos, solicitando, portanto, intervenções
terapêuticas ou de normalização; um campo de significações a decifrar; um
lugar de processos ocultos por mecanismos específicos; um foco de relações
causais infinitas, uma palavra obscura que é preciso, ao mesmo tempo,
desencavar e escutar. (FOUCAULT, 1988, p. 78).
Por conseguinte, somente na condição da sexualidade ter-se tornado um assunto popular
que as suas faces mais monstruosas foram insistentemente realçadas, abrindo-se daí o caminho
para a intrusão de mecanismos reguladores, diante das nossas vidas e prazeres. No entanto, faz-
se importante verdade observar que o fato de esses mecanismos terem se tornado tão eficazes
sem que se precisasse abrir um período de caça às bruxas ou mesmo queimar os monstros em
praça pública , se deveu a um jogo de poder-saber que nos despertou a fantasia de saber da
verdade de nosso sexo.
Trata-se de um jogo útil e sedutor, do qual nos sentimos instigados a participar. Ora, em
um contexto em que se fala muito sobre sexo e se espera muito da própria sexualidade
(felicidade, prazer, boa performance sexual etc.), a intervenção de tecnologias normalizadoras,
em certa medida, não apenas foi permitida, mas autorizada, por cada um de nós (ou talvez pela
maioria de nós). Isto é, é como se da verdade do sexo, do seu constante exame, despontasse a
grande razão da nossa existência.
Muito atento aos fantasmas e fantasias oriundos do verdadeiro sexo, em 1980, Foucault
escreve um prefácio à edição americana do Diário de um hermafrodita, Herculine Barbin, dite
Alexina B, na intenção de tocar o dedo na ferida da violência em relação aos corpos dissidentes.
A vida de Herculine ganhara atenção, à época, porque se tratava de um caso em que a envolvida
teria se suicidado, após ter sido obrigada judicialmente portanto, contra a sua vontade a
adotar o gênero masculino. O prefácio de Foucault a esse diário, em sua primeira linha, traz
uma desconcertante questão: “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”
(FOUCAULT, 1982, p. 1).
Perguntar-se pela necessidade de sabermos do verdadeiro sexo, no prefácio do diário de
Herculine, do diário de alguém que não suportou mais viver em face das arbitrariedades em
relação aos seus prazeres sexuais, ao que tudo indica, teria o efeito de se ressaltar o caráter
perverso, insidioso, obstinado, teimoso, de uma questão responsável por arruinar, levando
inclusive à morte, muitas existências; de uma questão responsável por toda uma história de
horror, no que concerne ao fantasma do “verdadeiro sexo”.
Mesmo que atualmente se possa reconhecer para alguns, ainda com muita dificuldade
a possibilidade de um indivíduo adotar um sexo livre das determinações biológicas, ainda que
as pessoas estejam mais abertas às afetividades e aos corpos dissidentes que transgridem as
normalizações de gênero, parece que ainda hoje a questão “do verdadeiro sexo” não deixou de
nos compor. Nesse sentido, a “vontade de saber” debruçada insistentemente sobre a verdade do
sexo não cessou de reatualizar os fantasmas e as fantasias mais monstruosas que se esconderiam
sob nossos, até então, insuspeitos e fortuitos prazeres.
Uma vontade de saber que, de certo modo, foi e continua sendo responsável em fazer
recair sobre os corpos dissidentes os piores olhares, identificando-se neles algo de errado, de
nebuloso, de doentio, de desconcertante e de “anormal”. Nas próprias palavras de Foucault, é
como se do sexo despontasse “[...] a ameaça do mal; o fragmento da noite que cada qual traz
consigo.” (FOUCAULT, 1988, p. 79).
Por todas essas artimanhas da vontade de saber do verdadeiro sexo, Foucault parece
identificar que, diante disso tudo, uma peça incontornável nos teria sido pregada, a saber: as
existências humanas, suas dores e delícias, passariam a ser tributárias de uma verdade
constituída paulatinamente. Estando às voltas com essa “peça” que nos fora pregada, Foucault,
na entrevista Sobre a história da Sexualidade (FOUCAULT, 2011, p. 243-276), acentua o papel
social e político do que designou como “dispositivo da sexualidade”, dispositivo ocupado não
apenas no controle, mas na produção de subjetividades.
Sobre isso, comenta Maria Rita César, no artigo “O dispositivo da sexualidade ontem e
hoje: sobre a constituição dos sujeitos da anomalia sexual”:
A nominação e classificação dos sujeitos da sexualidade se deu a partir de uma
engenharia conceitual e institucional que escrutinou os corpos e descreveu
minuciosamente práticas sexuais, hierarquizando a ambos entre normais ou anormais.
Numa palavra, uma vez constituído o dispositivo histórico da sexualidade, o sexo
(com seus misteriosos desejos, com sua fisiologia complexa, com suas aberrações
assustadoras) se tornou uma instância privilegiada de determinação da verdade mais
íntima dos sujeitos e de sua classificação enquanto pertencentes à classe das anomalias
ou da normalidade, separando-se os indivíduos e as populações entre os que
constituem perigos a serem socialmente disciplinados, vigiados, castigados e os que
fornecem o parâmetro para as boas sociabilizações. (CÉSAR, 2017, p. 244).
Desse modo, pelas engrenagens capciosas desse dispositivo que até hoje parecem se
operar, apesar de sua dinâmica de poder se infiltrar em diversos espaços, dada toda sua
complexidade heterogênea, “[...] o somente de textos, mas de imagens e práticas; o
somente de palavras, mas igualmente de coisas e olhares que as captam” (COURTINE, 2013,
p. 79), cabe-nos, em contrapartida, uma pergunta oportuna: de onde despontariam seus focos
de resistência? Como resistir ao que também nos constitui?
3 A força de resistência dos monstros
Sobre a questão da resistência ao dispositivo da sexualidade, Foucault se esquiva de
qualquer formulação propositiva. Ele apenas se reserva a considerar que os focos de resistência
se disseminariam “[...] com mais ou menos densidade no tempo e no espaço.” Desse modo,
algumas vezes, a resistência poderia ser encontrada “[...] no levante de grupos ou indivíduos de
maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos
de comportamento.” (FOUCAULT, 1988, p. 106). noutras vezes, também seria possível
reconhecê-los “móveis e transitórios”, pontos de resistência que “[...] introduzem na sociedade
clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamento, percorrem o próprio
indivíduo, recortando-os e remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões
irredutíveis.” (FOUCAULT, 1988, p. 107).
Levando em conta essas várias formas de podermos resistir, compreendemos que a
monstruosidade aqui tematizada possa ser, ela mesma, uma forma de enfrentamento dos
imperativos normalizadores que nos tornam localizáveis e classificáveis, encerrados dentro de
nosso verdadeiro sexo. Assim, se a resistência também pode se dar pelos aspectos móveis e
transitórios traçados no corpo, por pensamentos e práticas, sentimo-nos instigados a considerar
os corpos transformados, transgêneros, como um modo de tensionar as fronteiras de uma
estrutura binária e impositiva de gênero.
A atitude de resistência, como uma constante atividade operada em uma rede de poder,
não deixa também de se relacionar ao deslocamento de corpos que vão se implicando aos
espaços, em formas e funções diferenciadas. A experiência de ter um corpo transformado
sugere, assim, um contínuo movimento de expropriação de si mesmo. E é isso que nos leva a
considerar que as experiências de resistência de corpos dissidentes são possíveis, uma vez que
neles se esfumaçam as separações antípodas e binárias de gênero; porque é neles e,
principalmente, por esse motivo, encontramos a coragem, a monstruosidade de romper a
unidade do verdadeiro sexo. Esses corpos resistentes são, portanto, “[...] guerreiros eternos da
travessia”, uma das formas pelas quais Paul B. Preciado se refere aos “órgãos utópicos”,
incapturáveis, órgãos questionados ante as transições de gênero (PRECIADO, 2020, p. 49).
Vale observar que Canguilhem, no artigo intitulado “A monstruosidade e o monstruoso”
(1962)
16
, mesmo se havendo com a injunção da monstruosidade ao campo dos anormais,
entende que a própria existência dos monstros teria o poder de questionar a vida, diante de suas
mais caras ordens estabelecidas e ensinadas pela razão. O fato de vermos “monstros”, de
apontá-los e classificá-los significaria que existe um outro, um diferente, que perturbaria nossas
“ordens” pelas suas dessemelhanças. Desse jeito, o monstro seria simplesmente “[...] o outro
que não o mesmo” (CANGUILHEM, 2012, p. 187).
Embora pareça haver uma concordância entre Foucault e Canguilhem, no tocante às
regulações normalizadoras do monstro humano, o qual é concebido como um ser dotado de
valor negativo, de valor diminuído ou como um ser contrastante e ameaçador, Canguilhem, em
uma abordagem diferente da de Foucault, ressalta o caráter ambivalente do monstro humano,
que é, ao mesmo tempo, amedrontador e maravilhoso.
Devido a essa ambivalência, o ser monstruoso é aquele capaz de nos despertar um
“sentimento confuso”, instigando nossos olhares a partir de suas transformações. Se é verdade
que, diante dos monstros, expressamos temor, horror, repulsa, não é menos verdade que eles
também nos trazem fascínio, pois o monstro, como oportunamente destaca Canguilhem, não é
nada menos do que [...] um maravilhoso ao revés, mas, apesar de tudo, maravilhoso.”
(CANGUILHEM, 2012, p. 189).
Também Judith Butler, em Undoing Gender, ressalta que o tornar-se monstruoso pode
ser politicamente importante; o “monstruoso” ao qual ela se refere corresponde à própria
inclusão das diferenças sexuais nas relações político-sociais, em uma forma que não será nem
a única, nem a definitiva. A respeito disso, Butler afirma:
Parece que, para alcançar novamente o humano em outro plano, o humano
deve se tornar estranho a si mesmo, ele mesmo monstruoso (grifo nosso). Este
humano não será “único”, não terá uma forma definitiva, mas será aquele que
está constantemente negociando a diferença sexual, de tal forma que não tenha
consequências naturais ou necessárias para a organização social da
sexualidade. (BUTLER, 2004, p. 191. tradução nossa).
Isto é, nas relacionalidades não binárias, o “monstruoso” se destaca como o que teria o
poder de transformar todo um panorama de relações coletivas. Nesse sentido, pensar gêneros
em deslocamento, se desfazendo, em transição, teria o papel político de questionar o
universalismo violento da determinação de modos de vida regulados por uma
16
Esse artigo reproduz, com algumas modificações, uma conferência pronunciada por Canguilhem em Bruxelas,
no dia 19 de fevereiro de 1962. Esse texto também foi publicado em Diogène, n. 40 (out./dez. 1962) e, depois,
acrescentado como o último capítulo (capítulo V) do livro O Conhecimento da Vida.
heteronormatividade compulsória.
17
Ora, para Butler, essas transformações em que os gêneros
se desfazem comporia a própria “[...] filosofia da liberdade.” (BUTLER, 2004, p. 219).
Depreendemos, pois, que o tornar-se monstruoso vislumbrado no desfazer de gênero,
sem se valer de um estatuto ontológico das diferenças sexuais, pode ser compreendido a um só
tempo como transformação do corpo e do próprio espaço político. Ora, corpos não
simplesmente habitam um espaço dado, eles também reconfiguram as dimensões dos espaços,
abrem os espaços a outras dimensões. Dependendo das interações entre os corpos, da rede de
relações, vemos todo um espaço político se transformar. Nesse sentido, Thamy Ayouch
comenta oportunamente, em seu artigo “De l’herméneutique au stratégique sexuation,
sexualités, normes et psychanalyse”:
A outra relacionalidade proposta pelas sexualidades e sexuações não binários
revelariam a sexualidade como criação muito mais do que como descoberta de um
aspecto secreto do desejo. Criar um modo de vida gay, um devir gay, como incita
Foucault, inventar novas formas de vida, de relacionamentos, de amizade em
sociedade, de arte, de cultura; são éticas e políticas capazes de criar um novo direito
relacional, para além das instituições empobrecedoras. (AYOUCH, 2016, p. 180).
Da monstruosidade humana relacionada à sexualidade e à transgeneridade, para além de
todas as suas capturas morais e patologizantes, da violência sentida na pele, da dor do
preconceito e da invisibilidade, cumpre realçar, nas linhas finais deste artigo, o traçado
“incrível” de vidas transformadas, conforme afirma Butler, em Problemas de Gênero, vidas
que se tornam “[...] completa e radicalmente incríveis” (BUTLER, 2016, p. 244), por fazerem
proliferar as configurações de gênero fora de estruturas restritivas e excludentes; essas vidas
transformadas, vidas incríveis, se destacam ainda pela coragem de existir, mesmo sob violência,
censura e vigilância dos que ainda se assombram com os monstros humanos.
Considerações Finais
Se, neste texto, Waldirene, Marie Le Marcis, Grandjean e Herculine Barbin, de alguma
forma, se encontram, isso se deve, principalmente, a um ponto em comum, a saber: no decorrer
de suas histórias, todas essas vidas carregaram o peso de vultos monstruosos presos a seus
corpos dissidentes. Isso não implica dizer que foram casos isolados ou, ao contrário, que dizem
de forma universal sobre um destino implacável que se abaterá inevitavelmente sobre outras
pessoas transgêneros.
17
Para Butler, uma matriz heterossexual que funcionaria ainda hoje como uma espécie de vetor de
inteligibilidade cultural, fazendo reconhecer corpos, gêneros e desejos como elementos naturais e binários. A
autora, na identificação dessa matriz de inteligibilidade heterossexual, usa também o termo “heterossexualidade
compulsória”, de Adrienne Rich, para criticar, assim, um naturalismo sexual. Cf. RICH, A. Heterossexualidade
compulsória e existência lésbica & outros Ensaios. Rio de Janeiro: A Bolha, 2019.
Ao considerarmos, por conseguinte, a dimensão da monstruosidade humana trazida por
Michel Foucault, no curso Os anormais, procuramos aqui não apenas destacar suas camadas de
constituição ligadas às disposições normativas da sexualidade, mas, de modo estratégico,
provocar o(a)s leitore(a)s a deslocar o traço monstruoso de um quadro médico-jurídico para um
campo de transformação política, no sentido de podermos tensionar as próprias categorias
normativas ligadas ao primado do gênero sexual.
Vale ainda notar que, no contexto geral do trabalho filosófico de Foucault dedicado aos
sistemas de pensamento, na esteira das suas considerações sobre a vontade de saber que
constituiu uma história da sexualidade, parece haver um convite à própria transvaloração (uma
marca nietzschiana) da noção de sexualidade.
18
Isto é, na medida em que a pesquisa
foucaultiana nos conduziu pelas variações normativas e morais da sexualidade, pelo
funcionamento de seus dispositivos, evidenciando suas relações de poder, tudo isso nos fez
encontrar na constituição moral da figura do monstro humano as chances para o enfrentamento
das situações de violência e exclusão, em face dos corpos dissidentes e da possível anulação de
sentenças responsáveis por atravancar, obscurecer e até interromper os seus caminhos.
Tudo indica que foi também com esses mesmos propósitos “transvalorativos” que Paul
B. Preciado, pensador “dissidente do sistema sexo-gênero”, ao ser convidado para proferir uma
conferência na 49ª Jornada Internacional da Escola da Causa Freudiana, na França, apresentou-
se a uma plateia de 3.500 pessoas como um monstro: “[...] o monstro que vos fala”, segundo
18
uma espécie de tendência para que a “transvaloração de todos os valores” (Umwerthung aller Werthe), em
Nietzsche, seja compreendida como uma ação destinada a desmascarar qualquer ilusão, uma censura a tudo o que
foi glorificado, valorizado; ou seja, entende-se que tudo que teria sido valorizado, apreciado, estimado, em um
dado contexto cultural e histórico, após a transvaloração, ressurgiria com os valores invertidos. Por exemplo, aquilo
que era superestimado surge desconsiderado, aquilo que era apreciado surge depreciado etc. No entanto, a intenção
nietzschiana quanto à transvaloração não pode ser resumida em uma simples inversão valorativa, eliminar um
antigo valor para colocar um valor oposto em seu lugar. Vale salientar que, no vocábulo alemão utilizado por
Nietzsche para se referir à transvaloração Umwerthung, o afixo um traz a ideia de um movimento operado,
sinalizando um retorno, uma mudança. Ou seja, transvalorar não significa simplesmente trocar ou inverter valores,
contudo, mudança, movimento, direção de retorno, de reavaliação. Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche fornece,
então, suas primeiras pistas sobre a transvaloração: [...] primeiro exemplo da ‘Transvaloração de todos os
valores’: um ser que vingou, um “feliz”, tem de realizar certas ações e receia instintivamente outras, ele carrega a
ordem que representa fisiologicamente (physiologisch darstellt) para as suas relações com as pessoas e as coisas.
(NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, VI, § 2).
A seu modo, Foucault, portanto, não deixa de destacar sua marca nietzschiana, quando afirma: “O único sinal de
reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzsche, é precisamente utilizá-lo, deformá-
lo, fazê-lo ranger, criar. Que os comentadores digam se se é ou não fiel a ele, isso não me traz nenhum interesse.
(FOUCAULT, DE I, p. 1621). Sendo assim, um exemplo de atitude transvalorativa em relação à questão da
sexualidade pode ser encontrada em uma entrevista de 1978. Na ocasião, o pensador afirma: “Creio que agora será
preciso, de algum modo, dar uma espécie de salto para trás, o que não quer dizer recuo, mas retomada da situação
em escala mais ampla. E se perguntar, então: mas, no fundo, o que é essa noção de sexualidade? Porque, se ela nos
permitiu lutar, também carrega consigo certo número de perigos. todo um psicologismo da sexualidade, todo
um biologismo da sexualidade e, consequentemente, toda uma captura possível dessa sexualidade por médicos,
por psicólogos, pelas instâncias da normalização. Não seria necessário, então, fazer valer, contra essa noção
médico-biológico-naturalista da sexualidade, uma outra coisa?(FOUCAULT, 2015, p. 4).
suas próprias palavras. Nessa conferência, que “causara um terremoto”, Preciado encarna o
personagem kafkiano Pedro Vermelho, do conto “Um relatório para uma Academia” (Ein
Bericht für eine Akademie), de 1917; é a história de um macaco que, capturado pelo circo, teria
se transformado em homem e prestado conta de sua transformação a uma plateia de cientistas.
A monstruosidade de Preciado, sublinhada nessa ocasião, é sobremaneira aquela vista
sob a perspectiva de alguém em transição. Não à toa, o seu comentário: “O monstro é aquele
que vive em transição. Aquele cuja face, corpo e práticas ainda não podem ser considerados
verdadeiros em um regime de conhecimento e poder determinados.” (PRECIADO, 2020, p.
45). Portanto, ao se considerar “monstro” e “em transição”, Preciado procura enfrentar a
hegemonia de epistemologias assentadas na fixidez familiar do binarismo sexual
homem/mulher, chamando a atenção de seus ouvintes para os efeitos de tais saberes em vidas
assim demarcadas.
Ora, a estratégia discursiva de enunciar-se como alguém monstruoso, colocando em
suspenso sua identidade de gênero, tem seus fins políticos. Ao evitar uma narrativa heroica ou
romantizada das vidas redesignadas ele diz: “[...] não havia nada de heroico nisso. Eu não sou
um lobisomem e não tenho a imortalidade de um vampiro.” (PRECIADO, 2020, p. 51) ,
Preciado, ainda nessa fala aos psicanalistas, apresenta seu corpo político em cena, ao discorrer
sobre as consequências muitas vezes nefastas de uma ordenação social amparada pela soberania
da diferença sexual.
Ou seja, perturbando as estimativas de valor provindas do conservador binarismo de
gênero que ainda se encontra em muitas abordagens “psis”, ao encarnar um monstro (sem
superpoderes e sem fatalismo), Preciado acaba por acentuar uma força de resistência que
envolveria os corpos dissidentes em, pelo menos, dois aspectos: primeiro, porque seus
contínuos movimentos transicionais colocam em xeque não apenas as apreensões normativas
como também os espaços em que vivem (suas divisões, hierarquias, hegemonias,
totalitarismos); segundo, as transições dos corpos que resistem ao processo do tornar-se
normal” também podem impeli-los à criação de outras relacionalidades, no espaço público, à
constante reinvenção de si e dos outros.
Judith Butler, por sua vez, indagando-se sobre as possibilidades políticas de
enfrentamento de todo um contexto de precariedade advindo das normas de gênero, afirma, em
Corpos em aliança e políticas da rua:
[...] a precariedade está, talvez de maneira óbvia, diretamente ligada às normas de
gênero, uma vez que sabemos que aqueles que não vivem seu gênero de modos
inteligíveis estão expostos a um risco mais elevado de assédio, patologização e
violência. As normas de gênero têm tudo a ver com como e de que modo podemos
aparecer no espaço público, como e de que modo o público e o privado se distinguem,
e como essa distinção é instrumentalizada a serviço da política sexual. (BUTLER,
2018, p. 41).
Nesse sentido, para a autora, o enfrentamento de situações nas quais vidas precárias
ficam diferencialmente expostas à violência e à morte se vincula às mudanças das condições
políticas em que podem ser reconhecidas como vidas dignas de serem vividas. Se o não
reconhecimento de tais vidas envolve um arsenal de injúrias e infâmias, de imagens
monstruosas, de narrativas grotescas e exageradas, da construção de barreiras que lhes
obstaculiza a entrada em espaços onde se espera que não apareçam, tendo em vista nossas
últimas considerações, resta-nos o seguinte questionamento: quais as lutas possíveis para que
existências transgêneros possam existir/resistir, sem que tenham de pagar um alto preço por
isso, sem que tenham de ser violentadas ou assassinadas, sem que tenham de se justificar ou se
submeter ao crivo dos mais diversos saberes e instâncias de poder? Em suma, quais as chances
de reconhecimento dessas vidas como dignas de serem vividas?
Sem termos respostas conclusivas às questões formuladas, sem sabermos ao certo quais
as formas de resistência que seriam as mais eficazes, justas, quiçá, com efeitos bloqueadores
diante das situações que insinuam violência, utilizamos, então, um recurso foucaultiano par
excellence: servimo-nos de sua “caixa de ferramentas”.
19
Encontramos, portanto, na abordagem
crítica da ligação dos monstros humanos com as existências transgêneros um modo possível de
começar a colocar em questão discursos e práticas que as patologizam, achincalham e
mal(tratam). E, quando aqui nos perguntamos sobre as condições de reconhecimento dessas
vidas, reservamo-nos a considerar, por fim e em consonância às formulações de Butler, que
“[...] uma luta corpórea por condições de reconhecimento” diz respeito à insistência pública em
existir e ter importância (BUTLER, 2018, p. 44).
Isto é, a luta cotidiana, na qual se conta com corpos diversos, com minorias em aliança,
implica a própria condição performativa
20
de estar no mundo, no registro “[...] do vir a ser, e
19
em uma entrevista realizada em 1975, Foucault evidencia uma espécie de caráter atuante, ao mesmo tempo
político e crítico, que pretendia alcançar com seus livros. Sobre seus livros “caixas de ferramentas” (boîtes à
outils), ele diz: “[...] um livro é feito para servir a usos não definidos por aquele que o escreveu. Quanto mais
houver usos novos, possíveis, imprevistos, mais eu ficarei contente. Todos os meus livros, que seja História da
loucura ou sejam outros, são, se vocês quiserem, pequenas caixas de ferramentas. Se as pessoas querem abri-los,
servirem-se de tal frase, tal ideia, tal análise como de uma chave de fenda, ou de uma chave-inglesa, para produzir
um curto-circuito, desqualificar, quebrar os sistemas de poder, e daí, eventualmente, compreende os próprios
sistemas dos quais meus livros resultam, pois bem, tanto melhor!(FOUCAULT, 2017a, p. 1588).
20
Há de se considerar que a compreensão da noção de performatividade ocupa uma função central nas posições,
ao mesmo tempo teóricas e políticas, de Judith Butler, no que diz respeito aos problemas de gênero. De maneira
sumária, sobre o caráter performativo do gênero sexual, ela explicita, em seu livro Corpos em aliança: A
performatividade caracteriza primeiro e acima de tudo, aquela característica dos enunciados linguísticos que, no
momento da enunciação, faz alguma coisa acontecer ou traz algum fenômeno à existência.E, mais adiante,
assevera: “[...] dizer que um gênero é performativo é dizer que ele é um certo tipo de representação; o
sempre vivendo com a possibilidade constitutiva de se tornar diferente.” (BUTLER, 2022,
p.364). Assim, compreendemos que as chances de resistência e reconhecimento se dão, na
medida em que os mais singulares modos de existências transgêneros podem ocupar os mais
diferentes espaços, expondo não apenas aquilo em que nelas excede as normas de gênero, mas,
ao mesmo tempo, expondo-se no ponto em que são capazes de desfazê-las, nos quais se
direcionam para a abertura de outras realidades e para a própria transformação.
Não é isso que Helena Vieira faz, ao escrever e inscrever-se, através de seu corpo trans?
Ela, escritora, transfeminista, dramaturga, em Transfeminismo, um texto escrito com Bia
Bagagli, afirma o seguinte sobre a resistência política a partir de seu corpo:
Sou uma pessoa trans, pois não me identifico com o gênero que me foi designado ao
nascer e para o qual fui criada. Considero meu corpo como instrumento de resistência
micropolítica. Quando saio pelas ruas vestida com roupas tidas como femininas, estou
rompendo com discursos normativos. Quando tomo hormônios femininos, não o faço
“para ser mulher”, mas para apagar as marcas deixadas pela testosterona no meu
corpo. Os hormônios que tomo fazem com que eu tenha seios. Minha meta? Que
olhem para mim e não saibam quem sou. (VIEIRA; BAGAGLI, 2018, p. 364).
Ora, poder olhar para vidas transgêneros sem o assombro provocado pelos monstros
significa poder reconhecer uma especial força de reinvenção de si e de outres
21
que ultrapassa
as barreiras normativas impostas pela diferença sexual. Portanto, (re)conhecer as escritas e
ações realizadas por Helena, Bia, Luma, Symmy, Isadora Ravena, Letícia, Amanda, Amara,
Erika, Duda, Nise, Cauê, Lazuli, Auris Flor e por tantas outras existências trans, sem pretender
saber quem elis são, em função do questionamento do “verdadeiro sexo” que possuem, aqui
tem o sentido de nos compassar de seus movimentos criativos e críticos. Isto é, de seus
‘aparecimentodo gênero é frequentemente confundido com um sinal de sua verdade interna ou inerente; o gênero
é induzido por normas obrigatórias que exigem que nos tornemos um gênero ou outro (geralmente dentro de um
enquadramento estritamente binário); a reprodução do gênero é, portanto, sempre uma negociação com o poder;
e, por fim, não existe gênero sem essa reprodução das normas que no curso de suas repetidas representações corre
o risco de desfazer ou refazer as normas de maneiras inesperadas, abrindo a possibilidade de reconstruir a realidade
de gênero...(BUTLER, 2018, p. 35-39).
21
Aqui se ressalta a possibilidade de efeitos políticos, com base no uso de linguagens não binárias. No livro
Manifesto Contrassexual, Preciado, na esteira das considerações de Butler, chama atenção para a pertinência da
“força performativada linguagem não binária, por “[...] sacudir as tecnologias de escritura do sexo e do gênero,
assim como suas instituições”. Para ele, “[...] não se trata de substituir certos termos por outros. Não se trata nem
mesmo de se desfazer das marcas de gênero ou das referências à heterossexualidade, mas sim de modificar as
posições de enunciação.(PRECIADO, 2017, p. 27-28). É, nesse sentido, que, em uma entrevista realizada
20 anos, Judith Butler viesse a dar importância à criação de gramáticas não binárias: “Não existe nenhuma forma
de contestar esses tipos de gramáticas a não ser habitá-las de maneiras que produzam nelas uma grande
dissonância, que digam exatamente aquilo que a própria gramática deveria impedir. A razão pela qual a repetição
e a ressignificação são tão importantes para meu trabalho tem tudo a ver com o modo de eu conceber a oposição
como algo que opera do interior dos próprios termos pelos quais o poder é reelaborado.(BUTLER, 2002, p. 155).
Portanto, pelo que depreendemos das considerações, tanto de Preciado quanto de Butler, a intenção de outros usos
de linguagens que não estejam no enquadre de termos binários não significa uma abolição dessas referências, mas
almeja provocar variações linguísticas, para que surja uma plasticidade de enunciações que não aquelas
aprisionadas na hegemonia do gênero heteronormativo.
movimentos efetivamente políticos, os quais, por uma profusão de caminhos (nas escolas e
universidades, no parlamento, nas artes, na dramaturgia, na ciência, na literatura, no cinema
etc.), se abrem a outros espaços e corpos, a exemplo dos caminhos que se abrem pela beleza
perturbadora do rosto (simulacro) de Helena de Troia, em A história trágica de Fausto, da
possibilidade de uma “[...] face que lançou mil naves ao mar.” (MARLOWE, 2006, p. 110).
FOUCAULT'S HUMAN MONSTERS AND TRANSGENDER EXISTENCES
Abstract: This article was written based on Michel Foucault's formulations in the course Abnormals
(1975) about the dimension of human monstrosity. In its general lines, Foucault not only provides us
with an overview of the slow formation of the “indefinite and confused family” of the abnormal, but
also deals with the important participation of the figure of the human monster in its composition. Thus,
taking the theme of the human monster as the guiding thread of this text, we intend to launch ourselves
into some questions about the technologies of knowledge and strategies of power that made its existence
possible, namely: How the dimension of monstrosity came to be linked to the panorama of sexuality?
How did the dispositif of sexuality get involved in the proliferation of the pale figures of human
monsters? And, in a final step, we ask ourselves about the possibilities of political resistance from the
perspective of dissident bodies, insofar as they face the violent universalism of determinations based on
true sex.
Keywords: Human monster. Sexuality. True sex. Political resistance.
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Recebido: 31/01/2023
Aceito: 12/03/2023