COMENTÁRIO A “TOTALIDADE E FINITUDE: SOBRE A SINGULARIZAÇÃO EM SARTRE”: MORTE, VIDA E TOTALIDADE: SARTRE VENCE PELA FINITUDE?

 

Luciano Donizetti da Silva[1]

 

Referência do artigo comentado: PRATES, Marcelo. Totalidade e finitude: sobre a singularização em Sartre. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 177 - 208, 2023.

 

Prates (2023) toca uma questão fundamental para a filosofia da liberdade: a finitude. Por certo, foi a suspeita nietzschiana a primeira a negar mais recentemente o etéreo-apriórico-transcendental, essa fantasmagoria cunhada pelos idealismos de todos os tempos, desde a alma de Platão. Heidegger, em suas rusgas com Husserl, deu um passo importante: estabeleceu o Dasein como modo de ser privilegiado, autor da questão sobre o sentido do Ser em Geral a partir do ser mesmo que ele é – ser-no-mundo; assim, se o Espírito Absoluto ou Eu Transcendental não sofrem nem podem morrer, o ser humano – Dasein – é ser-para-a-morte. Isso, no universo de Ser e Tempo, revela-se pela condição humana de, sendo, ter seu ser em jogo.

Sartre mantém e aprimora esse princípio, mas, mesmo reconhecendo a importância de Heidegger na definição da fenomenologia como berço de ontologias (liberação do ser do âmbito do juízo), recusa-se terminantemente a admitir qualquer finalidade prévia que determine Ser-Para-Si. Somente a liberdade poderia estar no princípio, pois será mesmo dela que pode advir todo e qualquer sentido para a realidade humana, sobretudo no que se refere a seus fins. Ora, o problema passa por fazer “[...] de meu ser-para-a-morte”, ou da morte ela mesma, dessa “[...] morte ‘ôntica’ que terei”, a “[...] minha possibilidade mais essencial” (SARTRE, 2011, p. 321); morte, assim como nascimento, são eventos devidos à absoluta facticidade de existir, contingência de Ser: morre-se porque se vive, e tudo que vive morre, ensina a inspeção fenomenológica; todavia, ela também ensina que existir demanda, ao menos, ilusão de ser eterno.

Tão misterioso quanto o início é o final da existência, o qual se anuncia onticamente de modo nebuloso: nunca se sabe o dia nem a hora, mas se sabe com certeza que o fim é inexorável. E fim aqui não significa finalidade, porém, encerramento, extinção, deterioração, apodrecimento, esquecimento – morte. Ainda pior, do ponto de vista da filosofia da liberdade, isso se reverte em determinação (nega a liberdade): o que se perde sob a máscara da finalidade fúnebre de homens e mulheres é justamente o que há de mais precioso, aquilo que homens e mulheres são (livres). Entra em cena a finitude, “[...] condição necessária do projeto original do Para-si” e “[...] para que eu seja o que não sou e não seja o que sou” (SARTRE, 2011, 412); no plano ontológico, descreve-se a passagem do não-ser ao ser-aí (nascimento), que não deve ser confundida com aquela do ser-aí ao ser-para-si: para, na expressão hifenizada, remete exatamente à reflexão, característica única que define ser homem e mulher no mundo; não as crianças e demais casos à parte.

Em resumo, o acontecimento absoluto – esse aparecimento de um novo para-si – dá-se a partir de um ser sui generis, o qual, por si mesmo, se revela consciência intencional, movimento de si a si; contudo, isso se faz em dois momentos: a idade da razão, que se sobrepõe a existência que antecede a reflexão. Assim, refletir não é atributo necessário ao ser humano, mas consciência, sim; todavia, ser homem exige o movimento da consciência (de) consciência, que, além de mostrar-se como liberdade, se revela como finitude. E isso é pressuposto, não para ser humano, mas para ser aceito no mundo humano como liberdade; note-se que há homens e mulheres que são tutorados por outros.

Para além do medo de morrer, condenação ôntica de todos os que vivem, Sartre chama a atenção para a consciência da finitude: concomitante com a descoberta da liberdade, a qual exige a assunção da situação na confecção de todos os projetos de ser-homem-no-mundo, revela-se também “Esse algo dado que sou sem ter-de-sê-lo – salvo ao modo do não ser – não posso captar nem conhecer, pois é por toda parte retomado e transcendido, utilizado para meus projetos, assumido.” (SARTRE, 2011, p. 412-413). Ser livre exige assunção da finitude: é pela negação do que se é, finito, que as noções de eternidade e infinidade podem ser aventadas; no entanto, todo projeto dessa ordem, seja na filosofia, seja fora dela, evidenciou-se impossível para o homem individualmente e para a humanidade (fim do homem é fim do mundo).

E, de novo, o paralelo; afinal, também de seu início nem a consciência nem a humanidade pode dar conta: portanto, finitude não se confirma somente pela morte previsível, mas também pelo nascimento ignorado. Resta como alternativa a má-fé, porque não há como escapar de algo que é indicado por todo o transcendente: não é somente morrendo que se deixa o mundo, vale lembrar, bastando para tanto a perda da consciência reflexiva; meu fim é esboçado, revela como eco por sua própria transcendência, donde “[...] eu jamais possa voltar-me para aquilo que me é indicado porque sou o ser indicado.” (SARTRE, 2011, p. 413).

A visão do Ser é estrábica, como também o são as noções de liberdade e finitude: sou a liberdade absoluta que pretendo, mesmo sendo finito. E aqui cabe trazer Descartes como vidraça: a primeira verdade, o Cogito, onde o filósofo pretendeu fundar a certeza do próprio Deus, mal garante existir uma coisa que pensa (descoberta do transcendental, ou sua invenção?). Afinal, homem não é coisa, é para-si: não se trata mais de uma diferença substancial que exigiria explicar sua união, mas da descrição fenomenológica, que se ocupa da separação ontológica sempre anunciada e nunca realizada. Não se trata mais de perguntar sobre o erro, o qual, para a sisuda Razão, é a existência de homens e mulheres; trata-se de descrever. Foi assim com Descartes, quando ele se deparou com sua liberdade: assustado, ele a atribui arbitrária e sem razão a Deus, que figura na ontologia de Sartre como mera hipóstase (Ser-Em-si-Para-si).

Ora, por uma reversão genial das estruturas da filosofia racionalista, Sartre mostra que, ao mirar a liberdade divina, foi a liberdade (ela mesma, estrutura ontológica de ser-homem-no-mundo) que Descartes acertou. Ou, em suas palavras: “Descartes, homem de ciência dogmático e bom cristão, se deixa esmagar pela ordem preestabelecida de verdades eternas e pelo sistema eterno dos valores criados por Deus.” (SARTRE, 2005, p. 297). A finitude volta-se para o infinito, que ela mesma criou e do qual espera suas respostas: notável que, em ciência, apenas se encontre de certo aquilo que a própria razão levou ao transcendente, dirá Kant.

Enfim, permanece insustentável a crítica heideggeriana (ou outras) endereçadas a Sartre, no sentido de que sua filosofia teria somente invertido termos da filosofia medieval. Para isso, esquece-se primeiro que a filosofia da liberdade é fenomenológica, e que não pretende revelar nenhuma verdade, senão fenomênica: por um lado, tem-se a provisoriedade (e falibilidade) de todo saber humano, todavia, de outro, permanece garantida a liberdade absoluta (ainda que ontológica) como sua única fonte. A passagem ao plano ôntico exige algumas mediações (a Crítica da Razão Dialética inteira), mas parece claro que inverter essência e existência não foi tarefa do existencialismo; mais, e isso parece claro no artigo em pauta, há de fato uma inversão: não aquela indicada por Heidegger, porém, da compreensão desse não-ser que serei (cadáver ou alma) e das esdrúxulas ideias medievais (Deus antes do mundo) claramente fundadas no ser-homem. Tudo se explica pela finitude ontológica de ser-para-si (que começa antes de seu início) e pelo medo demasiado humano (ôntico) de morrer, donde toda a inventividade de vidas eternas e paraísos flutuantes. Então, para encerrar, recorro ao mestre Bento Prado de Almeida Ferráz Júnior, nas últimas linhas de seu incontornável trabalho sobre Bergson: “A filosofia da consciência finita é, ao mesmo tempo, a projeção do ideal de sua infinidade.” (PRADO JÚNIOR, 1988, p. 217).

 

Referências

PRADO JÚNIOR, B. P. de A. Presença e campo transcendental. São Paulo: Editora da USP, 1988.

PRATES, M. Totalidade e finitude: sobre a singularização em Sartre. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 177 - 208, 2023.

SARTRE, J-P. A liberdade cartesiana. Tradução de Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

SARTRE, J-P. O ser e o nada - Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 20. ed. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

 

Recebido: 11/08/2022

Aceito: 21/08/2022



[1] Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0584-7377. E-mail: donizetti.silva@hotmail.com.