Comentário a “Maquiavel e a Origem das Sociedades Políticas”: Maquiavel e o Realismo Político

 

Helton Adverse[1]

 

Referência do artigo comentado: Falcão, Luís. Maquiavel e a Origem das Sociedades Políticas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 1, p. 149 - 170, 2023.

 

            Falcão (2023) apresenta argumentos bastante convincentes a favor da seguinte tese: não há nenhuma teoria acerca das origens da sociedade em Maquiavel. De minha parte, estou inteiramente de acordo. Isso não significa, como nosso autor bem demonstra, que a questão sobre as origens esteja ausente dos textos do florentino. Desde os escritos de chancelaria até os Discorsi sopra la prima Deca di Tito Livio, passando por sua produção literária, o começo das cidades é tema recorrente sob sua pena. O ponto principal da argumentação de Luís Falcão consiste em compreender o sentido dessas passagens, resistindo à tentação de transformar Maquiavel em um contratualista avant la lettre ou torná-lo, nesse quesito, um mero continuador dos antigos (seja na versão aristotélica. seja na versão lucreciana).

Nenhuma das duas opções de leitura se mostra consistente, para Falcão, porque deixam escapar o essencial, a saber: Maquiavel é um pensador da cidade, da política sempre já dada em uma circunstância histórica determinada. A estratégia de situar Maquiavel em uma espécie de naturalismo político ou, ao contrário, empurrá-lo para a tradição contratualista, se revela incapaz de apreender a especificidade de seu realismo político – termo este, ao que parece, entendido no artigo (sem que lhe seja dada uma definição precisa), no sentido de um enquadramento metodológico que visa a compreender a “[...] verdade efetiva das coisas” (Maquiavel, 2017, p. 183), ou seja, a política como o campo da ação humana no tempo. Nas páginas que se seguem, meu objetivo será discutir certos aspectos desse realismo político que parece comandar a argumentação de Luís Falcão, sem que seja tematizado. Assim, não pretendo fazer um comentário do artigo, mas refletir a partir dele.

            A principal hipótese do autor, no que diz respeito à discussão sobre a origem das cidades, é a de que o tema em Maquiavel cumpre sobretudo uma função retórica. Desse modo, essa questão não adquire verdadeiro status teórico. Trata-se de um estratagema que objetiva produzir no leitor a sensação de familiaridade, uma vez que está atendido um tópico clássico da tratadística política. Na perspectiva de Luís Falcão, Maquiavel está cumprindo uma exigência, quase pagando uma dívida, sem o que não é possível expressar seu verdadeiro pensamento sobre a matéria em pauta. De meu ponto de vista, isso está correto, mas não inteiramente, porque essa identificação das considerações sobre o momento anterior à fundação das cidades como uma mera estratégia retórica corre o risco de fazer perder de vista que elas cumprem também uma função teórica. Afinal de contas, se essas considerações almejam adequar a obra à linguagem dos grandes tratados, elas estão também a serviço da exposição das ideias de Maquiavel. Por isso, cabe questionar se elas são realmente desprovidas de interesse conceitual, como Falcão deixa entender.

Não estou dizendo que elas permitem inscrever Maquiavel em alguma tradição política ou que elas expressem suas convicções teóricas, contudo, que, sem elas, o florentino não poderia avançar a apresentação de suas próprias teses nem fazer o leitor perceber sua radical originalidade.

Não é este, contudo, o ponto de maior relevância. Como já indiquei, um dos grandes méritos do artigo é apontar os limites das interpretações que buscam no pensamento maquiaveliano elementos pré-políticos ou extrapolíticos para se compreender a vida da cidade. De um lado, o florentino é um pensador que rompe com a tradição clássica, pois esta não pode abrir mão de pressupostos metafísicos, éticos ou ontológicos, para compreender a política. De outro lado, Maquiavel passa ao largo da tradição do direito natural, reformulada no âmbito da escolástica e refundada no começo da modernidade. Ambas as tradições, malgrado suas diferenças, veem utilidade no conceito de estado de natureza e, assim, são mais ou menos compatíveis com a noção de pacto. Ora, acolhendo essa noção, define-se o lugar da linguagem e da história no pensamento político. Gostaria de esclarecer esse ponto, porque ele é importante para se entender o realismo maquiaveliano.

            De um modo geral, a linguagem, seja entre os clássicos, seja na perspectiva contratualista, é vista como o meio imprescindível para a construção do espaço político, o que pode ser entendido de, ao menos, duas maneiras: por meio da linguagem, é possível estabelecer laços entre os seres humanos, os quais podem compartilhar suas concepções acerca do bom, do útil e do justo; através da linguagem, é possível persuadir, visando à legitimação da dominação e inscrevendo as relações de poder em um campo distinto da violência. Essa dupla dimensão da linguagem também está presente na filosofia política moderna, que verá no pacto político o ato linguístico privilegiado, fundante, no qual é possível reconhecer essas duas dimensões acrescentadas de uma terceira, a saber, aquela propriamente jurídica.

Ora, em Maquiavel, nós nos encontramos em um terreno muito diferente. Embora ele esteja longe de desconhecer a função persuasiva da linguagem (basta recordar o capítulo XVIII de O príncipe ou do capítulo 3 do livro I dos Discorsi), não encontramos em seu texto nem a noção ciceroniana de consensu juris, nem a concepção moderna de consentimento. Mais precisamente, essas noções parecem obliterar o fato de que o espaço político e o poder têm sua origem e sua dinâmica atreladas ao conflito. Seria possível dizer, com Claude Lefort, que o discurso político que privilegia o consenso, o consentimento e a obediência opera no registro da ideologia, porque apaga as condições de sua enunciação (Lefort, 1978). Em contraste, o discurso maquiaveliano coloca no centro da vida política a irremediável divisão.

É claro que a linguagem pode comportar diversos usos, na política, incluindo a produção do consenso, todavia, Maquiavel não hesita em enfatizar seu uso combativo (por exemplo, na instituição da acusação, descrita no capítulo 8 do livro I dos Discorsi), isto é, como ela se torna um elemento-chave nas disputas políticas. Assim, o discurso maquiaveliano sobre a política indica outro caminho, aquele que conduz à verdade efetiva, o qual tem em seu núcleo o fato irredutível da fratura civil e este é, a meu ver, o primeiro aspecto do realismo maquiaveliano: colocar a superação da divisão civil como um horizonte alcançável significa fazer concessão à “imaginação das coisas”.

Convém agora tratar brevemente do problema da história. A linguagem do pacto e do estado de natureza veicula, a esse respeito, uma concepção que cumpre igualmente uma função ideológica (sempre compreendendo esse termo em uma acepção lefortiana, isto é, a dissimulação das condições de enunciação do discurso político). Com efeito, a pressuposição de um estado pré-político, no qual os seres humanos seriam vítimas de sua própria selvageria, coloca o advento da sociedade política e do poder instituído sob uma luz enganadora, envolto em uma grande ambiguidade.

Nessa perspectiva, postula-se que o momento da fundação do corpo político, embora signifique uma ruptura com o momento anterior, mantém com ele uma forte continuidade, porque o estado de natureza lhe serve de fundamento. Se tomarmos a tese polibiana, por exemplo, segundo a qual os homens se reúnem para se protegerem, desponta uma ideia de necessidade que dilui na natureza as motivações humanas para agir. Em Políbio, o ciclo em que ocorrem as mudanças de regime é presidido por essa concepção de necessidade, a qual termina por reduzir as motivações humanas como causa apenas coadjuvante no rumo dos acontecimentos políticos.

Mas, se formos ao outro extremo do espectro examinado por Luís Falcão, em seu artigo, quer dizer, o contratualismo moderno, vemos que a história é elidida (ao menos na maior partes dos autores comumente inscritos nessa tradição) em um estado de natureza atemporal. Somente é possível falar de história após a realização do pacto e instituição da sociedade política. Se a história vem depois, faz-se tábula rasa das condições de possibilidade que tornaram necessária a instituição do poder. O pacto, fazendo as vezes do momento de fundação do corpo político, resolve o problema de sua continuidade, fazendo apelo à dimensão jurídica, tomando como marco fundamental a manifestação da vontade de conciliação. Ora, para Maquiavel, como muito bem demonstra Luís Falcão, o processo de fundação jamais se encerra no tempo: ele sempre é reposto, porque as circunstâncias que lhe deram origem estão sempre presentes. A história, em Maquiavel, não antecede a política nem a sucede. Ela é o horizonte intransponível no qual se desenrolam as ações humanas.

Por isso, a fundação de um corpo político é uma fratura no tempo, um momento de abertura em que o destino humano está indefinido, um momento que não pode ser deduzido do passado, nem determinar o que ocorrerá na sequência. Em outras palavras, ainda seguindo Lefort, a fratura no tempo explicita que a ação humana é marcada pela contingência e pela indeterminação. E novamente nos deparamos com a verdade efetiva das coisas, pois e um de seus aspectos mais notáveis é a presença da consciência da transformação. Como gostava de dizer Maquiavel, “[...] o tempo tudo varre” (MAQUIAVEL, 2017, p. 105). Lição de realismo que aguça nossa percepção do tempo, tornando-nos sensíveis ao fato de que ninguém domina o curso da história, assim como ninguém tem uma visão da totalidade.

A política para Maquiavel, lembra-nos Luís Falcão, em seu belo texto, começa com a cidade e seu sentido apenas nela pode ser decifrado.

 

Referências

Falcão, Luís. Maquiavel e a Origem das Sociedades Políticas. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 1, p. 149 - 170, 2023.

LEFORT, Claude. Les formes de l’histoire. Paris: Gallimard, 1978.

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Edição Bilíngue. Trad. de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Editora 34, 2017.

 

Recebido: 28/10/2023

Aceito: 04/11/2023



[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9455-2057. E-mail: heltonadverse@hotmail.com.