COMENTÁRIO A “REPRESENTAÇÃO, SOBERANIA E GOVERNO EM THOMAS HOBBES”: NOTAS SOBRE ESTADO E GOVERNO EM HOBBES, A PARTIR DA RELAÇÃO NATUREZA-ARTIFÍCIO

 

Rita Helena Sousa Ferreira Gomes[1]

 

Referência do artigo comentado: Teixeira Filho, Francisco Luciano. Representação, soberania e governo em Thomas Hobbes. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 93 – 110, 2023.

 

Partindo da problematização de democracia representativa, Teixeira Filho (2023) nos conduz ao conceito inovador de representação, em Hobbes, oferecendo-nos uma chave interpretativa para o tema da soberania. Especialmente, o artigo instiga a pensar nos meandros que aproximam e distanciam Estado e governo, colocando-nos diante de aspectos importantes para uma análise bem medida da política de Thomas Hobbes.

Em Hobbes, os tópicos políticos devem ser sopesados como componentes de uma teia maior, com diversos pontos de entrada. Acredito que esta seja uma das razões para, ao final da leitura do texto de Teixeira Filho (2023), termos tanto “respostas” quanto incontáveis possibilidades de novas questões. Isso atesta a seriedade do trabalho escrito por Teixeira Filho, ao passo que nos põe frente à difícil pergunta: que fio puxar agora?

Neste comentário, desejo sublinhar como a discussão da conexão e diferença entre Estado e governo, trazida por Teixeira Filho (2023), pode ser articulada com o problema da relação entre natural e artificial, presente em vários pontos da produção hobbesiana. Destarte, proponho retomar alguns pontos tocados no artigo, sob uma perspectiva diversa, mas suplementar, com o intuito de potencializar os debates que o perpassam.

O problema natureza-artifício demarca um incontornável pano de fundo para uma boa compreensão das obras políticas hobbesianas. Opto por chamar “pano de fundo”, haja vista que, a despeito de sua importância, Hobbes não a tematiza conceitualmente, de forma direta. Todavia, não são poucos os momentos em que, como leitoras/es, nos deparamos com exemplos, noções e argumentos os quais exigem que consideremos a convergência ou a divergência entre natureza e artifício. Nessa toada, a analogia da Introdução do Leviatã é emblemática: “Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial.” (HOBBES, 1974, p. 9).

Ao iniciar sua obra de maturidade, traçando paralelos entre natureza e artifício, Hobbes reitera o carácter inédito de sua ciência política, evidenciando sua separação da clássica ideia aristotélica de que os humanos são naturalmente sociais. Não há espaço, aqui, para destrinchar como a novidade hobbesiana nutre e é nutrida pelo contexto da nascente Modernidade. Meu foco se limita a grifar como, ao contestar a naturalidade da esfera política, Hobbes abre terreno para a emergência de interrogações originais.

Ao assumir a não naturalidade da vida política, Hobbes é obrigado a avaliar mais complexamente a relação natureza-artifício. Se, sob determinado prisma, natureza e artifício são opostos, por outro, são complementares. Assim, a complexificação dessa relação impõe, a leitoras/es de Hobbes, uma atenção constante para entender como essa discussão se oculta em aspectos basilares de sua filosofia.

Sob essa ótica, observemos a transição do estado natural ao civil, notando como a hipótese do estado de natureza vai muito além de um mero ponto que antecede o sistema político. Se, no cenário natural, o que existe são indivíduos atomizados e, prioritariamente, interessados na realização de seus desejos, a formação do Estado requer a criação de um âmbito de coletividade que ultrapassa arranjos grupais transitórios e desorganizados (ou parcamente organizados). Contudo, dada a configuração da natureza humana, como isso é possível?

Para resolver esse imbróglio, o qual parece opor radicalmente indivíduos e coletividade, Hobbes precisa encontrar na natureza recursos que sirvam de pilares para sua própria superação. Um dos recursos mais marcantes é, sem dúvidas, a lei natural. Com a lei de natureza, o filósofo de Malmesbury desenha uma ponte capaz de unir o interesse individual e as limitações inerentes à vida coletiva. Pela lei natural, articulam-se coerentemente paixões, razão – posto que “Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral estabelecido pela razão” (HOBBES, 1974, p. 82) – e capacidade de avaliação das condições concretas. Desta feita, a sociedade política resulta, em seu aspecto mais arcaico, de indivíduos que, através do bom uso da razão, reconhecem que seu desejo mais básico é partilhado por outros indivíduos. Trata-se, portanto, de algo individual que, eventualmente, se mostra comum.

O problema, contudo, persiste: na experiência natural concreta, o comum inexiste. De fato, o que existem são pessoas naturais portadoras de liberdade total e virtual igualdade de faculdades, logo, potencialmente perigosas umas para as outras. A descoberta do campo comum, por si, não basta: é necessário dar-lhe materialidade.

Porém, como materializar uma comunidade? Por natureza, o máximo que se pode atingir é uma aglomeração de indivíduos a um deslize do caos completo, uma multidão. É preciso, pois, recorrer a alguma estratégia artificial que garanta a invenção de algo novo: o povo. Simplificadamente, podemos afirmar que o povo é a multidão unificada por um representante[2] que carrega, simultaneamente, a autorização para agir e decidir em nome de cada indivíduo. Estado e povo são, assim, duas faces de uma mesma moeda. Enquanto o Estado materializa o comum, permitindo que ele perdure no tempo e no espaço, o povo se desdobra dele, na mesma medida em que o sustenta pela contínua e efetiva manutenção da autorização outrora prometida por cada indivíduo, no momento do pacto.

Por isso, a preocupação hobbesiana em frisar a unicidade da vontade do Soberano não é banal. Acima de tudo, a vontade una do Estado estende na realidade temporal e espacial o ponto comum que vincula o desejo de cada indivíduo ao dos demais. Isso significa que a vontade do Soberano se estrutura exatamente naquilo que animou sua criação, a saber, a busca pela paz e pelas benesses derivadas dela. Nesse sentido, o Estado é uma ficção que, como tal, é eminentemente diversa e irredutível à pura natureza. Mas é, ainda, uma ficção urdida em sintonia com demandas advindas da natureza humana que se mostram irrealizáveis em um campo meramente natural.

Usando essas lentes, podemos corroborar, sob novo ângulo, a diferenciação entre Estado e governo feita por Teixeira Filho (2022). O Estado é artifício, haja vista que o mundo humano comum não pode advir imediatamente da natureza. Isso posto, qualquer tentativa de identificar o Estado com o simplesmente natural redunda em sua negação. O natural, porém, adentra o Estado por uma questão prática: todo e qualquer membro da sociedade civil é portador da natureza humana, inclusive aquele que assume seu controle.

Essa constatação tem, de imediato, dois efeitos. De um lado, a dimensão insuperável da natureza humana presente em cada cidadão atualiza, diuturnamente, a ameaça de retorno ao estado natural[3] e justifica o enorme poderio do Estado. De outro, aponta para uma configuração do governo como uma sobreposição de artifício e natureza, uma vez que a pessoa (ou, no caso de uma assembleia, as pessoas) que assume(m) o cargo soberano não pode(m) se apartar de sua condição natural. Essa sobreposição abre espaço para eventuais confusões entre a pessoa que exerce o ofício e o aparato estatal propriamente dito.

Cabendo ao Estado o domínio total das decisões, interpretações e conduções relativas ao mundo comum, essa ambiguidade tende a se ampliar. Ou seja, não estando o soberano em exercício submetido a qualquer constituição ou limites legalmente aplicáveis, suas percepções pessoais podem guiar os rumos civis. Apesar de não ser objeto de preocupação primeira, tal questão não escapou da análise hobbesiana. Os inúmeros alertas, disseminados nas suas obras, sobre a função do Estado ser o bem-estar do povo e os perigos reais de não a cumprir me parecem prova disso.

 

Referências

HOBBES, T. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

ROSALES, M. El par conceptual pueblo-multitud en la teoria política de Thomas Hobbes. Córdoba: Alción, 2013.

SOUKI, N. Behemoth contra Leviatã: guerra civil na filosofia de Thomas Hobbes. São Paulo: Loyola, 2008.

Teixeira Filho, Francisco Luciano. Representação, soberania e governo em Thomas Hobbes. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 93 - 110, 2022.

 

Recebido: 08/09/2022

Aceito: 13/09/2022



[1] Professora associada da Universidade Federal do Ceará (UFC), Sobral, CE – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2306-4264. E-mail: ritahelenagomes@gmail.com.

[2] Para aprofundar essa discussão, veja-se Rosales (2013).

[3] Para aprofundar esse ponto, veja-se Souki (2008).