COMENTÁRIO A “REPRESENTAÇÃO, SOBERANIA E GOVERNO EM THOMAS HOBBES”

 

Anderson Alves Esteves[1]

 

Referência do artigo comentado: Teixeira Filho, Francisco Luciano. Representação, soberania e governo em Thomas Hobbes. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 93 - 110, 2023.

 

                Teixeira Filho (2023) busca explorar a representação contemplada no ato jurídico originário do pacto social: à medida que o soberano estatuído representa a multidão estatuinte, o primeiro atua em nome da segunda; aquele, ator, esta, autora e, assim, o que se transfere, em tal representação, é a ação, não a autoria. Na multidão, os indivíduos livres e dispostos com sua razão computadora agiram por si mesmos e, a fim de garantirem suas próprias vidas, resolveram a demanda por segurança, ao edificarem o Estado mediante um contrato e, com ele, as representação e soberania.

            Alguns dos apanágios da sociedade moderna, consciente e inconscientemente, estão assim contemplados no artigo em pauta e são questões candentes para o pensamento político: representação, soberania, formas de governo não foram objetos importantes apenas para a Inglaterra do século XVII, mas discutidos e (re)pensados hodiernamente, à luz de velhos e novos problemas. A porta que o trabalho de Francisco Luciano Teixeira Filho abre, portanto, permite explorar mais características da sociedade moderna, já antecipadas pelo Autor de o Leviatã, as quais contribuem para nos entendermos, uma vez que o material filosófico expõe nossos traços, ao mesmo tempo que procura transformá-los.

            O documento analisado pela Autoria do artigo é o Leviatã. Nele, algumas metáforas permitem a percepção de características denotativas da Modernidade, dentre elas, 1) a própria figura do monstro bíblico com força para derrotar os interesses e apetites particulares, em nome de um bem comum que importa para representantes e representados, na luta para que o império do gládio individual não resulte na restauração da guerra de todos contra todos; 2) o mercado da honra, recurso que expõe as pessoas, comparando seus diferentes graus de poder, riqueza, honra e conhecimento, de forma análoga à valorização que se dá às mercadorias – demarca-se, assim, a penetração dos valores e das leis do mercado na racionalidade, a qual avalia as possibilidades de indivíduos que se opõem e que, ao mesmo tempo, constroem um contrato e instituem uma soberania capaz de regular o bom andamento de uma sociedade competitiva (!) e que metamorfoseia a luta de todos contra todos em um conflito regulado/pacificado, a empreender o processo civilizador que desloca a violência para a latência (ESTEVES, 2019, p. 774).

Há mais metáforas na obra hobbesiana, que, aditivas ao argumento da Autoria do artigo, ratificam a posição nele defendida. Algumas delas estão em Do cidadão: 1) a metáfora do relógio (HOBBES, 1992, p. 15) expressa o modelo matemático de se pensar e o raciocínio hipotético-dedutivo (também presentes em o Leviatã), os quais, ao mobilizar o esprit de géometrie e seguindo rigorosamente o entrelaçamento dos anéis lógicos, por corolários, partem da premissa (indivíduo) e alcançam a conclusão (sociedade edificada pelo contrato social) – além do sucesso dos saberes matemáticos a serem incrementados na administração da sociedade burguesa, o “individualismo possessivo” (MACPHERSON, 2005, p. 14) e o “atomismo político” (TAYLOR, 2011, p. 114) estão contemplados nessa metáfora, como os comentadores citados registraram, com expressões a resumirem a questão; 2) a metáfora do cogumelo (HOBBES, 1992, p. 158) expõe o nascimento de homens suficientemente maduros e livres para decidirem um contrato entre si e, assim, em lugar do que, posteriormente, a Sociologia pesquisará como “processo de socialização”, o recurso literário hobbesiano investe, uma vez mais, no voluntarismo individual e na razão a operar, enquanto computação, como traços do século XVII que foram cifrados por Hobbes como caracteres da natureza humana; 3) a metáfora do vaso de água (HOBBES, 1992, p. 171-172) indica que a liberdade absoluta é aquela na qual, caso o vaso seja quebrado, se enseja movimentação desmedida e se permite que a água escoe e, por outro lado, se a água está preservada dentro de um recipiente, mesmo não se movimentando totalmente, ela ainda tem alguma liberdade e equivale à liberdade civil – é um erro tanto a movimentação ilimitada como a ausência de movimento, a estagnar e corromper o líquido, uma vez que uma possibilitaria o retorno ao estado de natureza e outra subtrairia a esperança dos súditos em conquistar as benesses possíveis da vida em sociedade, amalgamando, assim, a liberdade à proteção, à obediência e ao consentimento de um contrato que erigiu o Leviatã.

As metáforas aqui tratadas atestam a edificação da sociedade burguesa e, a despeito de a obra hobbesiana não ter sido completamente filiada à classe social ascendente, dos tempos do filósofo, apresentam-se, no seu interior, alguns dos componentes que, até hoje, estão na edificação social e política do Ocidente Moderno – representação, soberania, governo, alcances e circunscrições à liberdade, bem comum, mercado, individualismo, apreço pelo conhecimento quantitativo são alguns dos objetos para os quais a pesquisa filosófica ainda tem muito por revelar.

 

REFERÊNCIAS

ESTEVES, A. A. Divisão do trabalho e apologia da ordem em Thomas Hobbes e Norbert Elias. Educação e Filosofia, Uberlândia: UFU, v. 33, n. 68, p. 747-782, maio/ago. 2019.

HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de J. P. Monteiro e M. B. N. da Silva. São Paulo: Abril, 1974.

HOBBES, T. Do cidadão. Tradução de R. J. Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MACPHERSON, C. B. La teoria política del individualismo posesivo: de Hobbes a Locke. Tradução de J.-R. Capella. Madrid: Trotta, 2005.

TAYLOR, C. As fontes do self: a construção da identidade moderna. 3. ed. Tradução de A. U. Sobral e D. A. Azevedo. São Paulo: Loyola, 2011.

Teixeira Filho, F. L. Representação, soberania e governo em Thomas Hobbes. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 93 - 110, 2023.

 

Recebido: 10/09/2022

Aceito: 20/09/2022

 



[1] Docente do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), Itaquaquecetuba, SP – Brasil. Integrante do GEFPC (Grupo de Estudos de Filosofia Política Contemporânea, PUC-SP/CNPq) e do GPEPS (Grupo de Pesquisa em Educação, Politecnia e Sociedade, IFSP). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1479-3323. E-mail: andersonesteves@ifsp.edu.br.