Comentário a “Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral”

 

Referência do artigo comentado: Coitinho, Denis. Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 59 – 80, 2023.

 

Marciano Adilio Spica[1]

 

Como bem destaca Coitinho (2023), o equilíbrio reflexivo é, sem dúvida, um procedimento importante da ética normativa e da ética prática, apesar de ser alvo constante de importantes críticas, que buscam mostrar a inadequação de tal procedimento. Coitinho, em seu texto, está claramente disposto a levar a sério algumas críticas a tal procedimento proposto por Rawls, mas não apenas para defender tal procedimento nos mesmos moldes propostos por esse filósofo: ele quer aprimorar tal procedimento, de uma forma que fuja das críticas comumente endereçadas a ele. Tal aprimoramento se daria através da inclusão de uma epistemologia das virtudes focada na ideia de prudência. Para o autor do artigo, incluir a prudência como uma virtude de bem deliberar sofisticaria tanto a ideia de equilíbrio reflexivo quanto a própria ética de virtudes. No primeiro caso, livraria a ideia rawlsiana de fraquezas epistemológicas que levariam ao subjetivismo, ao conservadorismo moral e ao perigo de se chegar a crenças não razoáveis, utilizando-se o equilíbrio reflexivo. No segundo caso, ofereceria à ética de virtudes um método de justificação ao agente moral prudente.

O artigo de Coitinho (2023) é rico em problemáticas que poderiam ser discutidas e isso, por si só, revela a relevância dele. Mas, devido ao espaço que possuo, gostaria de me focar em apenas um ponto que me chamou a atenção. A saber, a conclusão do autor de que um equilíbrio reflexivo prudente (ERP) evitaria, entre outros, problemas de conservadorismo e subjetivismo, ideia deixada bem clara na conclusão do artigo. Mais especificamente, estou interessado em apontar um possível questionamento ao fato de que a deliberação prudente evitaria conservadorismo moral em tomadas de decisões, se adicionada ao ER. Para fazer isso, começo me valendo da discussão feita por Julian F. Müller (2019), em seu livro Political Pluralism, Disagreement and Justice: the Case for Polycentric Democracy. Antes de seguir adiante, quero chamar a atenção para o fato de que meu objetivo aqui não é mostrar que as ideias de Coitinho não são frutíferas ou são totalmente equivocadas: quero apenas apresentar um possível contraponto, a fim de fomentar discussões futuras nesse sentido.

No capítulo 7 do livro acima citado, intitulado “Deliberation and the Gains of Diversity”, Müller busca demonstrar os limites de algumas ideias filosóficas que defendem que um processo deliberativo, aos moldes aristotélicos, não apenas acomoda a diversidade, como faz bom uso dela. Ao fazer isso, o autor ressalta que processos de deliberação, em especial os de tipo aristotélico, tendem a ter um viés conservador.

Resumidamente, Müller defende que o viés conservador da deliberação vem do fato de que algumas descobertas empíricas, especialmente da psicologia, mostram que, em processos de deliberação, sujeitos tendem a enfatizar o que já é reconhecido como válido, às custas de novidades que poderiam também ser relevantes. É nesse sentido, por exemplo, que soluções inovadoras, as quais, de início, teriam “[...] pouco apoio internamente a um grupo de deliberação não seriam escolhidas ou mesmo consideradas seriamente.” (MÜLLER, 2019, 106). Além disso, essas mesmas descobertas evidenciariam que pessoas frequentemente se sentem intimidadas em serem uma voz dissidente, num grupo de deliberação, com medo de perderem seu status dentro do grupo. Diante disso e de outros fatores, que não nos interessam propriamente aqui, ele afirma:

Eu posso estabelecer que a deliberação não parece ser particularmente bem-sucedida em lidar com novidade ou soluções inovadoras. Isto, por sua vez, lança dúvida sobre a tese que uma abordagem deliberativa é especialmente bem sucedida para capacitar a sociedade a tirar ganhos da diversidade. (Müller, 2019, p. 107)

 

Como eu já frisei, não quero propriamente defender Müller, mas tocar em alguns pontos que, possivelmente, afetariam em alguma medida a argumentação de Coitinho, já que este defende a prudência como uma disposição adquirida para bem deliberar. Nesse sentido, gostaria de tocar em dois pontos do artigo de Coitinho que me parecem não resolver o problema do conservadorismo.

O primeiro ponto refere-se ao próprio conceito de prudência, a qual Coitinho caracteriza como uma “disposição-habilidade” ou capacidade de deliberar bem, própria de uma razão calculativa e que tende a se focar nos fins e não em princípios morais. Ou seja, ela seria uma disposição que nos ajudaria a resolver casos concretos da moralidade, situações difíceis nas quais temos de decidir o que fazer. Essa decisão seria focada nos fins da ação e não em princípios ou verdades morais. Basicamente, a prudência parece ser, portanto, a capacidade de escolher os melhores fins para uma ação de um sujeito, que, em termos do artigo proposto, seria chegar a crenças razoáveis sobre uma questão moral específica. A pergunta que fica é: que fins seriam esses ou quais são esses melhores fins? Em sentido aristotélico, seriam aqueles que homens prudentes escolheriam, isto é, uma espécie de seguimento de uma tradição de decisão moral. Para Coitinho, parece ser aquilo que é “comum à humanidade”. Em certa medida, pois, o prudente é aquele que decide o que é melhor a se fazer para se atingir certos fins, baseado, em certa medida, em um conjunto de dados da experiência do próprio indivíduo, um agente maduro, nas palavras do autor.

Todavia, a questão central, que poderia dar razão à tese de Müller de que processos deliberativos em sentido aristotélico levam a conservadorismo, é que não há garantia alguma de que a decisão pelo melhor a se fazer, no caso específico atual, seja o mesmo melhor a se fazer de experiências passadas. Basicamente, a justificação da ação do agente prudente seria a de que, como a experiência dele e de pessoas como ele foi de sucesso, nas vezes anteriores, essa vez também será. O que acontece aqui é uma espécie de conservadorismo advindo do hábito do agente maduro, o qual tenderá a se fechar para novidades, em termos de decisões morais. Essas novidades poderiam, em algumas circunstâncias, ser decisões melhores do que aquelas tomadas anteriormente.

Mas, obviamente, Coitinho poderia rapidamente responder a essa observação, argumentando que o ER pode, como ele mesmo propõe no artigo, ser tomado como um método de justificação do agente prudente, sendo a coerência um critério normativo importante para a justificação da tomada de decisão, o que evitaria, em alguma medida, o problema exposto acima. A grande questão é que parece que métodos de justificação de manutenção de crenças pelo viés coerentista tendem, em muitas situações, a levar também a conservadorismo epistêmico. Basicamente, a coerência parece exigir que não se aceitem crenças que coloquem em dúvida um conjunto grande de crenças de meu sistema-mundo de crenças. Em certa medida, a coerência pede que tenhamos cautela ao adotar novas crenças e que “[...] nós deveríamos escolher, entre aquelas alternativas que estão disponíveis para nós, aquela que está mais próxima de nossa convicção original.” (Stenmark, 2021, p. 153). Ou, como Müller explica, a nossa própria psicologia age escolhendo crenças que estão mais próximas ao conjunto de crenças que possuímos.

Coitinho novamente teria uma saída internamente a seu artigo, asseverando que, para evitar isso, é que ele afirma que a crenças geradas pelo prudente, de forma coerente, teriam ainda de passar pela prova de estar de acordo com as principais teorias éticas e científicas existentes sobre o tema. Não vou entrar no mérito aqui de quão custoso cognitivamente isso seria, já que exigiria um grau elevadíssimo de conhecimento de filosofia moral e praticamente excluiria boa parte da humanidade da discussão sobre o que é moralmente melhor para ela. Porém, gostaria de chamar a atenção, para finalizar, para a tese de Joshua Greene (2013), segundo a qual boa parte das teorias morais existentes são elas mesmas manifestações da nossa psicologia moral, ou seja, respostas tribais a nossos dilemas morais.

Se ele estiver certo, novamente, caímos em conservadorismo moral, porque adequaremos nossas crenças geradas por ERP a teorias morais elas mesmas tribais e que tendem a proteger crenças morais de um determinado grupo (tribo) moral. Não tenho espaço para aprofundar os efeitos da tese de Greene sobre a proposta de Coitinho, todavia, ela me parece apresentar um contraponto importante à tese geral do artigo, assim como às ideias de Müller. Apresentar respostas a elas, sem dúvida, tornaria a tese de Coitinho ainda mais relevante.

 

Referências

Coitinho, Denis. Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 59 - 80, 2023.

Greene, J. Moral tribes: emotion, reason, and the gap between us and them. London: Atlantic Books, 2013.

Müller, J. F. Political pluralism, disagreement and justice: the case for polycentric democracy. London/New York: Routledge, 2019.

Stenmanrk, M. Como relacionar ciência e religião: um modelo multidimensional. Trad. Marciano Adilio Spica. São Paulo: Reflexão/ABFR, 2021.

 

Recebido: 08/09/2022

Aceito: 12/09/2022

 



[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Guarapuava, PR – Brasil e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Cascavel, PR – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8977-8841. E-mail: marciano.spica@gmail.com.