Comentário a “Equilíbrio Reflexivo e Prudência: um processo de deliberação moral”

 

Lucas M. Dalsotto[1]

 

Referência do artigo comentado: Coitinho, Denis. Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 59 - 80, 2023.

 

Aos leitores familiarizados com os recentes trabalhos do professor Denis Coitinho não será difícil notar que sua intenção, com o artigo ora analisado, é dar um passo adiante na construção de uma teoria moral híbrida. A tese de fundo de sua proposta, já apresentada em Virtudes & Contratos: por uma teoria mista (COITINHO, 2016) e Virtudes & Contrato II: normatividade e agência moral (COITINHO, 2021), é de que a moralidade não é uma questão de tudo ou nada, como alguns teóricos parecem supor, mas um fenômeno complexo, cuja explicação exige a integração de diferentes critérios normativos. Especificamente em “Equilíbrio Reflexivo e Prudência: um processo de deliberação moral”, Coitinho (2023, p. 59) busca defender que “[...] a inclusão da expertise de um agente prudente no procedimento do equilíbrio reflexivo” (ER)[2] é capaz de responder a certas críticas dirigidas contra o método e o torna, ao mesmo tempo, compatível com as ideias de pluralismo ético e democracia. De forma geral, seu propósito é unir uma teoria coerentista da justificação epistêmica com uma epistemologia das virtudes. Todavia, antes de submeter a tese do professor Denis à análise, gostaria de reconhecer que ela faz o debate a respeito do tema avançar, especialmente por explorar relações pouco consideradas até agora pela literatura especializada. Se há uma tentativa em nosso país de fazer uma filosofia autoral e genuína, esse texto, certamente, é um exemplo disso.

Com a publicação de A Theory of Justice, de John Rawls (1971), ER acabou atraindo o interesse de muitos teóricos (e.g., DANIELS, 1979; SCANLON, 2003; DWORKIN, 2011), por lhes possibilitar a defesa de um tipo de objetividade moral sem os comprometer com a existência de padrões morais absolutos. A força explanatória de ER reside propriamente em sua capacidade de lançar luz sobre aspectos de nossa fenomenologia moral, que realistas e expressivistas têm sérias dificuldades de esclarecer. Enquanto os primeiros sofrem para lidar com questões metafísicas e epistêmicas, os últimos não estão em melhor posição para tratar de questões semânticas e normativas. Contudo, isso não quer dizer que ER não seja objeto de crítica. Se, de uma parte, a atitude falibilista-revisionista do método é um trunfo para teorias como a de Rawls, de outro, ela ameaça o sucesso delas por sua suposta fraqueza epistemológica. Aqui, Coitinho (2023) tem em mente duas objeções bastante recorrentes. A primeira é que ER poderia conduzir a uma espécie de conservadorismo, ao justificar e sistematizar crenças já tidas por uma comunidade (COPP, 1985); e a segunda é que ele poderia gerar sistemas de crenças coerentes muito distintos[3], o que seria consistente com o subjetivismo (SINGER, 1974).

A fim de contornar essas críticas, Coitinho (2023) espera mostrar que, com o acréscimo da prudência, ER garantiria ao agente um conjunto de crenças razoáveis. O procedimento metodológico teria mais ou menos a seguinte estrutura: se a disposição para bem deliberar do prudente, que é uma virtude epistêmica, possui uma conexão com algumas virtudes morais (e.g., benevolência, justiça e coragem), então, ele não poderia chegar a um sistema de crenças não razoáveis, se assim procedesse. Mas isso não é tudo. Após, o agente buscaria justificar, de modo coerente, suas crenças com o conjunto de princípios morais fornecidos pelas principais teorias éticas do debate contemporâneo[4], revisando tais crenças, se necessário. Por fim, o prudente ainda avaliaria se elas são coerentes com o conjunto de crenças factuais geradas pelas teorias científicas. Segundo Coitinho (2023), essa forma de equilíbrio reflexivo prudencial (ERP) seria suficiente para “[...] sanar a debilidade epistemológica do ER”.

Já frisei que essa me parece ser uma forma muito engenhosa de lidar com as alegadas dificuldades de ER, pois trilha um caminho ainda não explorado pelos teóricos interessados no tema. Entretanto, acredito que há ao menos duas questões que o professor Denis precisará considerar, em trabalhos futuros. Em parte, acho que o sucesso de sua empreitada dependerá de uma resposta adequada a elas.

A primeira diz respeito ao processo de justificação das crenças razoáveis do prudente com o conjunto de princípios morais do consequencialismo, do deontologismo e da ética das virtudes. Ao tratar disso, Coitinho (2023, p. 71) alega que, nesse estágio, é preciso “[...] checar se a decisão do prudente seria aprovada ou recusada pelos princípios assegurados por essas teorias ou pela maioria delas.” Se entendi corretamente a afirmação, seria necessário avaliar como as três teorias responderiam ao caso em tela. A justificação adequada de uma crença razoável dependeria de ela estar de acordo com todas ou ao menos duas das respostas oferecidas por essas teorias morais. Por exemplo, uma crença razoável que afirmasse x seria justificada apenas se estivesse de acordo com o critério de correção das três teorias conjuntamente, ou, então, da ética das virtudes e do deontologismo, ou do deontologismo e do consequencialismo, ou ainda do consequencialismo e da ética das virtudes.

Todavia, entendo haver um problema nessa descrição, pois o critério de correção da ética das virtudes é constitutivo do processo de deliberação do prudente. Se a prudência está conectada a certas virtudes morais, por conseguinte, a crença razoável resultante do processo de deliberação deverá, no mais das vezes, estar de acordo com o critério de correção da ética das virtudes. Como Coitinho (2023) acertadamente nota, o prudente não é apenas alguém que toma os meios necessários para a consecução de um dado fim (seja ele qual for), mas sim de um fim bom e estimável, cuja determinação depende das virtudes morais envolvidas (e.g., benevolência, justiça e coragem).

Se isso faz sentido, chegar a uma crença razoável em ERP já implica que ela seja compatível com o critério de correção da ética das virtudes. O que restará determinar é se ela também está em conformidade com o critério de correção, tanto do consequencialismo quanto do deontologismo, ou com apenas de um deles. Acredito que a força do argumento de Coitinho (2023) está exatamente em dar maior robustez à situação inicial em ER, de modo a garantir que o agente alcance crenças morais razoáveis. Nesse caso, as crenças às quais se chegaria em ERP não seriam um conjunto de crenças já tidas pela comunidade, nem levariam a sistemas de crenças coerentes muito diversos. De qualquer modo, meu ponto é apenas que o critério de correção da teoria das virtudes parece estar presente desde o início no procedimento metodológico de ERP.

A segunda questão que me parece ser preciso ter em vista é se a tentativa de conciliar diferentes teorias morais não pode pôr em risco a ideia de pluralismo ético. A proposta do professor Denis é claramente compatível com uma perspectiva liberal, e a introdução de uma epistemologia e de uma ética das virtudes em ER acresce um elemento perfeccionista nela. Em geral, são poucos os teóricos (e.g., RAZ, 1986) que assumem o ônus de mostrar ser possível defender uma teoria que tenha traços liberais e perfeccionistas, sem com isso negar princípios fundamentais de ambas as visões (e.g., neutralidade).[5] Contudo, do fato de que essa seja uma ideia altamente questionável não se segue que seja falsa. Apenas exige que se ofereçam argumentos em sua defesa. Por isso, creio que essa seja uma tarefa ainda a ser realizada pelo professor Denis, no desenvolvimento de uma teoria moral mista.

Penso haver dois caminhos a se seguir: um, que busca disputar teoricamente o significado dos termos “liberalismo” e “perfeccionismo”, com o propósito de evidenciar que não há uma incompatibilidade fundamental entre eles; e outro, que busca apresentar uma teoria liberal-perfeccionista mínima. Apesar de o primeiro caminho ser interessante[6], acho que o segundo pode render melhores frutos. Digo isso, porque o tipo de teoria defendida por Joseph Raz (1986) visa a lidar com a mesma questão que o professor Denis está lidando: como compatibilizar liberalismo e perfeccionismo, sem negar o pluralismo ético. Ao reconhecer o fato do pluralismo e a incomensurabilidade dos valores, Raz estabelece uma exigência mínima para estados liberais: estimular o desenvolvimento da autonomia dos agentes. Sem isso, a existência do pluralismo ético e o compromisso liberal com o valor da autonomia estariam fortemente ameaçados. Em algum sentido, esse também me parece ser um dos objetivos da teoria que o professor Denis está desenvolvendo, e Raz poderia ser um bom companheiro de viagem.

Por fim, gostaria apenas de admitir que essas duas questões que apresentei precisariam ser mais bem detalhadas e desenvolvidas. Porém, se elas forem de algum modo úteis para o fortalecimento e o aprimoramento dos argumentos apresentados por Coitinho (2023), este breve comentário já terá cumprido seu papel.

 

Referências

COITINHO, Denis. Virtudes & Contratos: por uma teoria mista. São Paulo: Loyola, 2016.

COITINHO, Denis. Virtudes & Contratos II: normatividade e agência moral. São Paulo: Loyola, 2022.

Coitinho, Denis. Equilíbrio reflexivo e prudência: um processo de deliberação moral. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 46, n. 1, p. 59 - 80, 2023.

COPP, David. Considered Judgments and Justification: Conservatism in Moral Theory. In: COPP, D.; ZIMMERMAN, M. (ed.) Morality, Reason, and Truth. Totowa, NJ: Rowman and Allenheld, 1985. p. 141-169.

DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011.

LARMORE, Charles. The Morals of Modernity. Cambridge: Cambridge University Press, 1996,

RAWLS, John. A Theory of Justice. Original Edition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1971.

RAZ, Joseph. The Morality of Freedom. Oxford: Clarendon Press, 1986.

SCANLON, Thomas. What We Owe to Each Other. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1998.

SINGER, Peter. Sidgwick and Reflective Equilibrium. Monist, v. 58, n. 3, p. 490-517, 1974.

 

Recebido: 10/09/2022

Aceito: 21/09/2022



[1] Professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8697-6105.E-mail: lmdalsotto@hotmail.com.

[2] Por ER, o professor Denis refere-se ao que Rawls denominou equilíbrio reflexivo amplo, em oposição a equilíbrio reflexivo restrito.

[3] Gostaria apenas de pontuar que não vejo como isso representaria um problema, pois teorias liberais que fazem uso de ER aceitam essa diversidade de sistemas de crenças coerentes. Acho que haveria um grave problema, se os sistemas fossem contraditórios, porém, esse não parece ser o conteúdo da objeção.

[4] Esse é um elemento que evidencia com clareza o caráter híbrido ou misto da teoria moral defendida pelo professor Denis.

[5] Rawls (1971) é um conhecido crítico do perfeccionismo e acredita que essa conciliação não é possível.

[6] Em The Morals of Modernity, Charles Larmore (1996) argumenta que a teoria moral de John Stuart Mill é um tipo de liberalismo-perfeccionista.