O PRINCÍPIO DO COMUM COMO APÓFASE AO PRINCÍPIO DA
PROPRIEDADE NAS DEMOCRACIAS CONTEMPORÂNEAS
Joel Decothé Jr.
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Resumo: A implicação filosófica que guia o problema aqui tratado é a seguinte: como o princípio do
comum se constitui em apófase frontal ao princípio da propriedade, nas democracias contemporâneas?
Não se pretende oferecer uma resposta exaustiva para esse problema. No entanto, utiliza-se a estratégia
argumentativa de dividir este escrito em três seções: (i) investigar especulativamente a tensão dialética
entre o princípio do comum e o princípio da propriedade; (ii) observar analiticamente a premissa que se
coloca como contribuição às práticas comportamentais de individualismo exacerbado, como ato de
aversão ao princípio do comum e (iii) deter-se na articulação da noção de princípio do comum, como
fator que está presente no limiar entre o vulgar filosófico e o universal filosófico. Por fim, fazem-se
algumas considerações que problematizam a noção naturalizada de princípio da propriedade, nas
democracias atuais, tendo em vista o poder constituinte que o princípio do comum detém na perspectiva
de realização do bem-estar dos agentes humanos, na vida comunitária contemporânea.
Palavras-chave: Apófase. Comum. Democracias. Princípio. Propriedade.
INTRODUÇÃO
O interstício dos tempos que vivemos nas democracias contemporâneas está repleto de
elementos que nos colocam diante de um contexto de imprevistos, sendo algo que imprime
profundas mutações em nossas existências. Nesse cenário, múltiplos movimentos sociais
espalhados pelo mundo questionam o princípio sacralizado da propriedade, nas democracias
liberais contemporâneas, pela ganância de poder das oligarquias que desejam dominar os
recursos naturais, os conhecimentos produzidos, os espaços e os serviços de natureza pública.
Assim, nesse contexto social, uma questão problemática tem de ser levantada: como o
princípio do comum se constitui em uma apófase ao princípio da propriedade? O princípio do
comum pode agir como estratégia de lutas contra as práticas agressivas do capitalismo e
orientação para a boa gestão dos recursos, de bens e riquezas, pelo autogoverno do coletivo,
conforme denotam as renovadas formas de arranjos democráticos. Talvez, o princípio do
comum hipoteticamente faça parte da vida e do agir da espécie humana, em sua história
evolutiva, tendo em vista que, por meio da práxis, pode-se deliberar o que venha a ser o comum
e, assim, fomentar as diversas normas de implicações de responsabilidades que envolvem o seu
conteúdo substantivo. O princípio do comum tensiona o princípio da propriedade e convida os
agentes humanos a mudarem suas condutas, diante de um mundo marcado pelas injustiças e
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Professor do bacharelado em Filosofia no Instituto de Filosofia Espírito e Vida (IFEV), Teófilo Otoni, MG
Brasil e Pós-Doutorando no Centro de Estudos Humanísticos da Universidade dos Açores (CEHu), Açores
Portugal. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9499-1233. E-mail: joeldecothe@yahoo.com.br.
dominações capturadoras das condutas fugazmente alocadas num estado de coisas que as
desvaloriza e faz cair no esquecimento e na indiferença.
Uma das características do princípio do comum é buscar instaurar uma democracia que
seja marcada pelas relações de horizontalidade. Logo, os princípios do individualismo e da
propriedade não ganham protagonismo. nesse ambiente. O que se avoluma é a força da
indignação com os gestos políticos injustos que privilegiam as práticas financistas e as grandes
corporações. Aumenta o inconformismo com a desigualdade social e os ataques destrutivos aos
bens naturais do planeta e seu ecossistema, tornando evidente que a potência gestora do poder
estatal se orienta na conservação do poder do capital privado, em detrimento do bem comum.
Diante de tantas demandas de dominação, destaca-se a necessidade iminente de haver
certa organização e autogovernança democrática, para que os movimentos sociais tenham sua
relevância, nesse cenário catastrófico. Mesmo que a multidão tenha nos movimentos
horizontais as suas inconsistências, não se pode naturalizar novamente a hierarquização e a
centralização das representações da política nas lideranças carismáticas, seus partidos e
instituições. O importante, na verdade, é estabelecer a destituição do princípio da propriedade
e a constituição de um poder de organização coletiva, composto por lideranças que tenham
como orientação o princípio do comum.
Entretanto, torna-se um grande equívoco rejeitar todo tipo de liderança representativa,
no sentido de se recusar radicalmente o papel e a potência das organizações e instituições
políticas. Como veremos, a tensão dialética entre a horizontalidade e a verticalidade permanece
como um pêndulo entre o particular e o universal, os quais se revertem no problema nevrálgico:
o exacerbo do individualismo em face do princípio do comum como pano de fundo das
estruturas sociais estáveis. Assim, observo em seguida que o princípio do comum acaba sendo
tratado no limiar entre o vulgar e o universal filosófico.
A discussão sobre como desenvolver estratégias e táticas políticas que sejam eficientes
na produção de ações consistentes de constituir qualquer forma de vida perpassa o contexto de
compreensão, conduzindo-nos aos gestos de compartilhamento de bens sociais, tendo em mente
o princípio do comum como uma radical apófase do princípio normalizado, nas democracias
modernas capitalistas, a propriedade.
1 O INDIVIDUALISMO EXACERBADO COMO ATO DE OJERIZA AO PRINCÍPIO
DO COMUM
O procedimento de contestação do valor e da utilidade da esfera da vida pública e do
comum compõe a metodologia de ação da filosofia do homo economicus. Uma das justificativas
dessa apófase se com o argumento de que o comum seria a mera produção de arroubos
ideológicos encetados pelo movimento socialista. Logo, tanto o valor do público como do
comum se constituem como atos ineptos em face das demandas de gestão econômica da
governança política.
Portanto, conforme Ruiz (2020a), tanto a dimensão pública quanto o comum são
considerados quase uma aberração antinatural da economia das relações sociais. Ora, o aspecto
filosófico vertido da concepção de homo economicus elucida que os bens comuns não têm
condições de se constituírem como substância que componha o conteúdo fundamental dos
direitos humanos. Desse modo, todos os elementos que englobam as condições de dignidade da
vida humana acabam sendo subjugados ao procedimento de financeirização promovido pelo
mercado, tendo em vista o lucro.
Contudo, segue também a lógica de maximização de uma melhor administração dos
bens do erário público. O procedimento estratégico do homo economicus insiste na privatização
dos bens comunitários, pois tudo que tenha funcionalidade pública deve ser revertido a uma
espécie de utilidade mínima para o público e máxima para o domínio das potências de gestão
dos agentes humanos privados. Na esfera filosófica de interpretação do homo economicus,
ostenta-se uma visão de mundo desfocada das potencialidades naturais dos indivíduos como
empreendedores e em sua motivação pautada somente por interesses próprios, com suas
consequências na efetivação do ideal de se maximizar o lucro enquanto um de seus motores
naturais, para assim impulsionar e gerenciar com eficiência todas as esferas da vida pública e
social.
Nessa linha de análise, positiva-se a ideia de que não se deve estabelecer obstáculos à
pulverização dos interesses expressos nas ações atomizadas do homo economicus. O ideal que
se impõe, então, segundo Ruiz (2020b, p. 31), “[...] é o de nos tornarmos empresários de s
mesmos, fazendo da vida um empreendimento, uma empresa. O modelo de vida do homo
economicus é o empresário de si, que gerencia cada circunstância de sua vida como uma
oportunidade de negócio.” O pressuposto em jogo, nessa esfera de interesses, será o da real
liberdade de gerir os seus negócios, tendo em vista que a forma de vida do homo economicus é
a de um empresário de si. Logo, segundo Foucault (2008), este faz a gestão de cada situação
ocorrida em sua vida, como uma chance de realizar algum empreendimento.
Os bens comuns podem sofrer uma vulgarização em razão de sua capacidade de ação
universal, nos mais diversos âmbitos da vida humana, pois, para o homo economicus, as formas
lógicas que têm funcionalidade são a da gestão dos bens comuns, através do interesse atomístico
e das ações administrativas de ordem privada. Essa postura filosófica postula que cada agente
humano atomizado deve cuidar de seus problemas materiais e mercadológicos individualmente,
em razão de não terem direitos garantidos a qualquer tipo de uso de bem comum. A posição do
homo economicus é alimentada por uma concepção limitadamente consumista atuante nas
democracias contemporâneas, sendo essa percepção animada pelo desprezo e ojeriza pelo
compartilhamento de bens em comum, na coexistência de pessoas que têm interesses privados
e em comum.
Na realidade, se considerarmos a factualidade do uso do bem comum, esse
procedimento pode se dar, segundo Sandel (2020, p. 325), “[...] por meio da deliberação com
nossos concidadãos sobre os propósitos e os fins dignos de nossa comunidade política, a
democracia não pode ser indiferente ao caráter da vida em comum.” Nesse sentido, observa-se
que o individualismo se alça como o valor absoluto diante da descaracterização da proposta de
construção de relações sociais que sejam pautadas pela forma de vida fundada não somente no
atomismo egoístico, mas sim nos valores de uso do bem comum.
Um dos maiores problemas da contemporaneidade é a supervalorização dos interesses
do indivíduo, em detrimento dos da comunidade. Como tratado até aqui, o ponto nevrálgico de
inflexão é o imaginário individual do homo economicus, o qual, conforme Ruiz (2020a), tem
consolidado um tipo de cultura do individualismo como o modo natural de existirmos, no atual
momento das democracias hodiernas.
O cultural do individualismo incita a crença de que a natureza atomística esteja marcada
pela necessidade de efetivação dos instintos atrelados aos seus próprios interesses, acabando
por desencadear uma postura de querer reduzir as suas alteridades a meros objetos, na satisfação
de seus próprios desejos de sobrevivência. Nesse pano de fundo da nova cultura do capitalismo,
o homo economicus carece freneticamente atender a um modelo de individualidade idealizada,
que consiste, segundo Sennett (2015, p. 47), “[...] num indivíduo constantemente adquirindo
novas capacitações, alterando sua “base de conhecimento.” Na realidade, esse ideal é
impulsionado pela necessidade de “manter-se à frente da máquina”. Dessa forma, o
procedimento de subjetivação atomístico penetra e se entranha nas diversas esferas da vida dos
agentes humanos, nos arranjos das sociedades ocidentais de democracia liberal.
Apesar das mutações nas instituições e nos padrões de modo de vida, um dado que
não parece mudar, a saber, a naturalização do princípio do indivíduo enquanto uma espécie de
átomo inquebrantável, em sua estrutura antropológica. A força do individualismo causa um
estranhamento que advém da potência ostensiva de ojeriza ao valor de uso sobre o bem comum.
A cultura do atomismo radical forja a forma da individualidade idealizada, a qual, para Sennett
(2015, p. 48), é “[...] capaz de prosperar no turbinado mundo da aquisição de controle de
empresas. Essa pessoa idealizada foge de toda a forma de dependência, não se prende aos
outros.”
Essa cultura visa a implodir qualquer esboço reativo de rumar-se para outro paradigma
constitutivo de forma de vida, em termos de subjetivação, descentrado do individualismo. O
paradigma do homo economicus tem a sua base de sustentação na concepção de individualismo,
sendo esse modelo de atomismo radical a métrica que vige nas ações que envolvem a ideologia
da capacidade da resolução de problemas motivados, sobretudo, pela força da individualidade.
Nessa perspectiva, de acordo com Ruiz (2020b, p. 36), as alteridades são consideradas meras
vias de oportunidades para a realização e a solução de interesses e problemas individuais, na
efetivação do modo de vida pautado pelo ideal do homo economicus.
A narrativa individualista exala uma série de promissões, no âmbito da cultura secular
ocidental. O pensamento presente na reflexão dedicada à concepção levinasiana de alteridade
desconstrói o mito da individualidade como solução para todos os problemas contemporâneos.
No fundo, a proposta apresentada nessa corrente de pensamento é a que nós estamos implicados
como individualidades, numa espécie de ontologia da relacionalidade, a qual é o reflexo da
complexidade de uma trama interacional, construída ao longo de toda a vida existencial com as
demais pessoas à nossa volta.
Assim, qualquer visão de mundo que ostente uma postura ontológica, na qual os agentes
humanos sejam irredutivelmente indivisíveis, estará postulando uma quimérica noção do que
seria o real. Logo, as articulações de constituição da vida dos agentes humanos se dão numa
relação intensiva com os demais seres no mundo. As correntes de pensamento que glorificam
o princípio do individualismo reduzem suas alteridades a meras extensões úteis para a
realização de seus próprios interesses, resultando em problemas intrincados nas democracias,
segundo pontuam Ruiz e Costa (2020c, p. 4): “[...] a democracia de mercado constitui o campo
livre e autorregulado para a projeção econômica dos indivíduos livres e para o fomento de seus
interesses tanto na concorrência empresarial quanto no consumo individual.”
Portanto, as nossas alteridades não são objetos à nossa disposição, para satisfação de
nossos interesses. As alteridades fazem parte do processo de constituição da vida moral de cada
agente humano, no imaginário de sua vida pessoal e comunitária. As relações intersubjetivas
evocam a prática do compartilhamento de experiências que abarcam o eu e o tu, sendo a
presença do eu no tu, e vice-versa, uma marca indelével na operatividade das ontologias do
comum.
As relações que forjam a identidade de cada agente humano, em sua individualidade,
têm a potência de evidenciar a determinação do fluxo comunitário dos interesses
compartilhados, fazendo parte das histórias das existências que compõem as diversas
comunidades. O individualismo exacerbado como ato de ojeriza pelo comum é um gesto de
contraposição, em razão do valor comum das relações humanas, efusivamente constituídas
pelas influências de outras pluralidades inerentes às diversas ações das alteridades, atuantes
como amálgamas do hermético percurso de subjetivação do princípio do comum.
2 O PRINCÍPIO DO COMUM NO LIMIAR ENTRE O VULGAR E O UNIVERSAL
FILOSÓFICO
Na esfera filosófica, a condição humana pode ser encarada como o vetor de ligação em
relação àquilo que a espécie humana tem de comum; porém, as diferenças são uma realidade
inegável; mesmo assim, as potencialidades que a espécie humana agrega em sua história
evolutiva não podem ser aniquiladas pelas forças dispersivas presentes nessas diferenças.
Talvez, hipoteticamente, a realidade das diferenças imanentes à dinâmica da vida
humana não tenha as condições factíveis de impossibilitar a construção de novas propostas
políticas, em nível mundial. As intenções de diversos grupos atuantes no mundo contemporâneo
buscam tratar a categoria de humanidade como a base teórica da proposição de um mundo
pautado pela diferença. Desde a antiguidade filosófica, a potência da concepção de
universalidade e comum aparecia no pensamento ciceroniano como vetor funcional de
sociabilidade nas relações humanas. No caso da experiência do cristianismo, essa relação entre
o universal e o comum se movimenta na perspectiva de expor que o humano, em sua condição
de criatura, reflexo da ação divina, carrega consigo os predicados da animalidade racional, não
vedando a ele a procura da condição de bem-aventurança perenal.
Apesar daqueles esforços em estabelecer o procedimento de redefinição da ideia de bem
comum, na esfera da história da filosofia, o procedimento de distinção entre o comum e o
universal se reverte numa ação de desvalorização do comum, em detrimento do universal.
Portanto, gera assombro, conforme Dardot e Laval (2017, p. 45), “[...] que o léxico filosófico
tenha acolhido uma acepção tão carregada de desprezo da palavra ‘comum’.” Segue-se que, no
decurso da articulação da linguagem filosófica, a terminologia do comum, centralmente no
tempo da idade clássica, assumiu um deslocamento de significado que recai no termo do
meramente vulgar.
O reflexo de sentido que advém da ngua latina referente ao vulgar denota, por extensão,
a designação da noção de vulgar revertida na linha de sentido do comum dos homens. Para
Dardot e Laval, é com o surgimento do sentido pejorativo de homem comum, no período
setecentista, que se tem a solidificação de uma linguagem de corte filosófico. Nessa direção,
podemos encontrar, no fim da segunda meditação das Meditações metafísicas, de Descartes,
uma análise do objeto da cera, onde parte dessa consideração utiliza com reforço o termo
vulgus. Quando essa terminologia é traduzida para a ngua francesa como commun (comum),
Descartes (1973) produz a radicalização da metodologia da dúvida metódica, articulada como
aporia, em sua meditação metafísica na perspectiva do comum.
O filósofo francês segue sua argumentação, enfatizando o ato de percepção da cera como
objeto pela via do senso comum, operado por meio do poder da imaginação. No entanto,
Descartes infere que se faz necessário realizar a distinção entre o que seja o bom senso ou
entendimento e o senso comum e a imaginação, pois isso acaba sendo uma forma de expressar
que o bom senso seja bom apenas na condição em que este não seja identificado com o comum.
Na esteira da interpretação de Dardot e Laval, o pensamento cartesiano alça a
condicionante avaliativa que faz a desvalorização epistemológica sobre a categoria do comum.
A noção de senso comum ou sensação comum advém do pensamento de Aristóteles, porque,
nessa linha de reflexão, tal categoria não representa a ideia de sexto sentido especial que venha
a se adicionar aos sentidos exteriores. Porém, o dado mais relevante será que a percepção dos
objetos em comum é que opera pela via da variabilidade dos sentidos exteriores. A despeito de
qualquer coisa, segundo Dardot e Laval (2017, p. 46), “[...] esse sentido de ‘vulgar’ continua
ainda por muito tempo a ser associado ao termo comum’ na linguagem filosófica.” Segundo
Kant (2016), em sua filosofia crítica, os termos de julgamento estético, no seu parágrafo § 40,
expressam o lamento de que a sanidade do entendimento ainda não foi devidamente
aperfeiçoada.
Desde essa perspectiva que tem em vista a universalidade comunal do juízo é que, para
Kant, talvez se torne necessário o esforço de compreensão de que a expressão existente é a ideia
de senso comum desde um ponto de vista universal que represente a concepção da existência
de determinada capacidade humana de se elevar acima das condições subjetivas e particulares
do juízo, implicando antropologicamente a inerência de universalização, dentre as quais várias
outras estão abrigadas na constituição do entendimento na dimensão dos juízos.
Logo, quando se pensa em termos kantianos sobre o dado do juízo, por um ponto de
vista universal, isso faz sentido se houver a declinação determinativa que considere a
possibilidade de se colocar desde o ponto de vista do outro. Assim, na perspectiva kantiana, de
maneira oposta ao uso mais corriqueiro, procura-se separar o sentido do comum em relação ao
do vulgar.
Kant conecta o comum ao universal, e isso se equipara de um modo mais sublime, em
termos semânticos. O dado relevante do pensamento extensivo de fazer o exercício de pensar
se colocando no lugar do outro conduz à condição de se elevar ao estado de coisas desde um
ponto de vista universal e, efetivamente, sem que haja nenhuma regulação pautada pela noção
de generalidade que coaduna somente com o maior número juízos a priori. Justifica-se, por
isso, a máxima de que a condição do gosto, como a faculdade de julgar, teria as condições de
ostentar o nome de senso comum a todos, ainda que esse senso comum o venha sustentar a
pretensão da exibição de normas objetivas coercivas.
Ora, para Dardot e Laval (2017, p. 47), “[...] o Gemeinsinn é um princípio subjetivo de
orientação capaz de ajudar a formar o juízo de gosto.” Um dos dados importantes, nesse
contexto, é que a restituição kantiana do valor do senso comum tem sua dependência da
concepção de senso comum, construída no século XVIII pelo filósofo inglês Anthony Ashley-
Cooper, Conde de Shaftesbury. Ainda assim, mantém-se simultaneamente certa diferença
em relação à concepção desse pensador sobre as categorias de comum e universal.
Shaftesbury traça o entendimento de que o senso comum seja o senso da comunidade,
ou seja, tem-se assim o senso do bem público e do próprio interesse comum. Não se trata,
sobretudo, de uma faculdade de caráter particular e exclusivamente do devido equivalente
social e político do senso moral, que implica certa disposição para forjar representações
coerentes com o bem moral. Se o bom senso faz a função de designar a faculdade natural que
opera a distinção entre o verdadeiro e o falso, assim, o senso comum conduz a uma disposição
de fundamentar representações que sejam ajustadas ao valor do bem público ou à disposição
inclinada ao sentido de bem comum.
O destaque desse sentido social e político torna-se bem distinto daquele propalado pelo
filósofo escocês Thomas Reid. Na concepção de Reid, o senso comum é abordado em
comparação com o bom senso e recebe a imputação axiomática valorativa na linha da
epistemologia. Essa fonte do conhecimento serve de base para a legitimidade operativa dos
juízos naturais comuns e inerentes à espécie humana. Do ponto de vista do pensamento
gadameriano, postula-se a interpretação de que, segundo Dardot e Laval (2017, p. 48), “[...] o
senso comum kantiano não é herdeiro desse significado social e político, uma vez que vale
apenas como juízo estético.”
Dando seguimento à formulação da abordagem inicial da arqueologia do comum, os
pensadores franceses recorrem ao pensamento político da filósofa Hannah Arendt. Nesse
contexto, Arendt faz a leitura do § 40 da terceira Crítica do juízo estético kantiano, na
perspectiva de significação como senso comum. A fundamentação linguística de tal operação
se dá com a tradução do termo alemão allgemein com o sentido de “geral”, pois, com isso, não
se utiliza a concepção de universal. Encaminha-se o entendimento para o campo semântico de
se falar de um ponto de vista geral, habilitando o entendimento à compreensão de que o juízo
político seja situado nessa direção mais basilar de significado primário. Aqui não se faz a
determinação de qual seja o marco paradigmático da comunidade de juízo, oportunizando-se o
entendimento de não se referir em nada à humanidade enquanto tal, nem a determinada
comunidade política específica. Logo, desde o senso comum, segundo Arendt (1994), traz-se a
articulação realizada que será, do ponto de vista kantiano, como um tipo de referência à noção
de pensamento alargado, no sentido pontual do espectador que julga.
Em linhas gerais, Dardot e Laval chamam a atenção para o fato de que o ponto mais
relevante nessa tratativa será que a visão de Kant encara o comum desde o crivo das exigências
formais de universalidade, e, nessa perspectiva, um reforço da fratura deste em relação ao
pressuposto da práxis. A fratura no campo semântico da terminologia do comum se evidencia,
quando se faz o movimento de análise imanente aos primórdios da tradição filosófica na ação
de distinção entre os sentidos de comum e universal.
Seguindo as indicações de Dardot e Laval, encontramos a concepção de que, no
pensamento aristotélico, existe uma distinção iniludível entre o geral ou comum em relação ao
sentido de universal. Nesse âmbito de estudos sobre o problema do ser, no pensamento
aristotélico, é que observamos tal distinção, de acordo com Aubenque (2012, p. 199), o que se
deduz do conhecimento do ser enquanto ser. Tendo em vista que, se “[...] o universal aristotélico
se definisse somente por sua extensão, o ser enquanto ser esse ser que é ‘comum a todas as
coisas’ seria o termo mais universal, e a ciência do ser enquanto ser, a mais preferida de todas
as ciências.”
Conforme a visão de Dardot e Laval, a determinação do universal impressa pelas
limitações presentes na noção de gênero acarretará que o comum significará o que venha a ser
o comum, para a diversidade de gêneros. Se a análise se reverte para a extensão do termo, o
comum poderia ser tomado como de natureza mais elevada em relação ao universal. A
elucidação se orienta na linha de compreensão de que esse sentido do comum seja o
transgenérico ou, ainda, o comum que perpassa os gêneros em sua totalidade, se efetive em
termos de simultaneidade naquilo que denota o fator do que seja o indeterminado, isto é, a
modalidade tratada é a do ser em geral que se verte no comum a todas as coisas, tendo em vista
que todas as coisas são, não condições de constituição de um gênero por ausência de restrição
que garanta a própria existência deste. Nenhuma potencialidade tem a condição de anular o ser,
em sua capacidade de operar pela via do elemento da inclusão, pois não se constata a existência
de qualquer coisa que seja mais elevada em potência que o ser e muitos menos que o ser venha
a ser alocado como mera espécie. Assim, o ser se constitui como a terminologia do comum,
porém, recai de forma negativa em termos significativos, no âmbito categórico do universal.
Em outro ponto de vista, o universal se alça com elevação em relação ao comum, segundo este
vai ganhando o estatuto de se efetivar pela via da compreensão conceitual, deixando de ter
grande relevância em extensão formal.
Dardot e Laval, em sua reflexão arqueológica do comum, na esfera de sentido da
filosofia, se questionam sobre o modo como tal discurso do homem age, atingindo ou não o
próprio homem e, consequentemente, como entra em jogo o modo de captura da relação entre
os humanos pelo pensamento do poder soberano. A impressão inicial será que a generalidade
concernente ao mais comum tem uma frágil capacidade de reverberar sobre a concepção
vinculatória entre as pessoas.
Por conseguinte, os pensadores franceses mencionados se indagam sobre a maneira
como o comum do ser possui as condições necessárias de se referir à estrutura de tal vinculação.
Estes ainda ponderam sobre o seguinte fato: existe uma tradição persistente que, com certa
legitimidade, se pronuncia em nome do pensamento aristotélico, porque buscou desvalorizar o
comum em detrimento do universal, sendo a forma específica de tal interpretação articulada no
bojo da reflexão das relações dos humanos com a sua própria essência. A partir disso, ocorre o
retorno ao âmbito linguístico da filosofia política, sendo posto em exame de uma maneira mais
precisa aquilo que seja o comum relacionado a todos e inerente a um mesmo gênero. Aqui se
faz referência aos indivíduos que pertencem ao gênero humano. Isso se efetiva através de outra
via e não tem relação com o que seja o comum, em termos variados dos gêneros, e com mais
forte razão, a todos os neros, ou seja, o ser em sua condição de transgenérico. Hegel contribui
para esse debate, em sua Enciclopédia das ciências filosóficas, no campo da ciência da lógica.
Hegel, no parágrafo § 163, trata da natureza do conceito como tal. Segundo Dardot e
Laval, constata-se um equívoco sobre a gênese do conceito, pois quem o identificar como a
operação que coloca de soslaio o dado do particular tem como exemplo o caso das plantas, as
quais, em sua diversidade, ostentam suas diferenças singulares, sem conseguir anular aquilo
que as faz ter algo de comum. Nessa direção, constata-se que seja de maior relevância, para
Hegel (1995, p. 297), “[...] tanto para o conhecimento como para nosso proceder prático, que
não seja confundido o [que é] simplesmente comum, com o verdadeiramente geral, com o
universal.”
Dardot e Laval seguem com a sua leitura do pensamento hegeliano, apontando que o
exemplo do princípio da personalidade é utilizado como um ponto constitutivo da
universalidade do homem, que esse princípio foi pulverizado, desde então, pelo fluxo
missionário do cristianismo, ao longo da história humana. Hegel recorre ao pensamento de J. J.
Rousseau, em seu livro Contrato Social, tendo em vista que, em sua leitura, constaria a
expressão importante da distinção entre o que simplesmente seja comum e aquilo que seja
realmente geral, no modo indicado da distância de sentido entre a vontade geral e a vontade de
todos.
Conforme o pensamento de Hegel, o ponto crucial e crítico em relação à postura de
Rousseau, quando se pensa na vontade geral, nos remete a pensar no conceito da vontade. Nessa
linha, a vontade geral pode ser encarada como o universal por excelência, pois a vontade de
todos se reverte no comum. Essa forma de pensar hegeliana toma como base o próprio
pensamento sobre a possibilidade de a vontade geral poder cometer erros, de sorte que, segundo
Rousseau (2020, p. 534-535), “[...] é comum haver uma diferença considerável entre vontade
de todos e a vontade geral: esta considera somente o interesse comum, a outra considera o
interesse privado, e é apenas a soma das vontades particulares.”
Hegel segue a sua reflexão, desferindo uma crítica objetiva ao pensamento de Rousseau,
na linha da teoria do poder estatal, pois, nessa direção, conforme Dardot e Laval (2017, p. 50),
“[...] a crítica feita a Rousseau é por ignorar em sua teoria a distinção entre o comum e o
universal que ele próprio apontará. O que está em causa aqui não é nada mais que
fundamentação positiva do Estado na universalidade da essência humana.” Quando, no
pensamento rousseauniano, aparece a asseveração de que o poder estatal é a confluência da
ação do contrato, segundo Hegel, é nesse momento que Rousseau se equivoca, ao querer
fundamentar dessa forma, ignorando, assim, a diferenciação entre o universal e o comum.
O pensamento jurídico hegeliano reage ao contratualismo rousseauniano, ponderando
que, quando se toma a força do contrato como base para o poder a ser exercido pelo Estado,
não se tem como base a própria ação da essência humana. Porém, o que se tem como base é a
livre escolha e o consentimento dos indivíduos enquanto elementos comuns que emanam
originariamente dessa volição singular, de modo consciente. Hegel (1995) continua articulando,
agora no § 175, a semelhante distinção entre o comum e o universal, desde a análise da terceira
forma de juízo da reflexão, a saber, o juízo da totalidade.
De fato, segundo Dardot e Laval, são nesses tipos de juízos que encontramos as formas
mais habituais da universalidade, porque o procedimento tem a sua gênese marcada no ponto
de vista calcado na subjetividade, por meio da qual se adota em conjunto a visão de mundo dos
indivíduos, para fazer com que a determinação seja direcionada a todos. O universal irá se
mostrar, nesse sentido, somente como uma espécie de vínculo exterior, tendo assim a
capacidade de envolver os seres singulares que têm a potência de se estabilizar por si mesmos
e adotam posturas de indiferença para com o universal. Entretanto, o pensamento hegeliano
indica que o universal se erige como sendo o fundamento e a estrutura dada como substância
do singular. Logo, a volição de todos se expressa como a soma que opera na amálgama precisa
de tal espécie de vinculação exteriorizada.
Para Hegel, de maneira dialética, o universal verdadeiro se opõe como fundamento dos
indivíduos diante do universal superficial como marca da unidade externa aos indivíduos. O
comum não se expressa somente no fato de os agentes terem o mesmo gênero ou pertencerem
à mesma cidade ou país, porém, isso demonstra o seu universal, o seu gênero, sem o qual tais
indivíduos não poderiam ser assim, em termos absolutos. Ao comentarem o exemplo dado por
Hegel sobre o lóbulo auricular, elucidam Dardot e Laval (2017, p. 51), “[...] o que cabe a todos
os indivíduos apenas por ser ‘comum a eles’ é da ordem de uma universalidade puramente
nominal [...]”. Na visão dos pensadores, a percepção que se ergue será a oposição entre o que
seja o comum aos humanos, ou o que eles teriam de comum entre si e o aspecto universal,
constituído pelo elemento do gênero que faz parte da essência humana.
Nessa toada, o que se demonstra como algo comum aos humanos, no caso, o lóbulo
auricular, se identifica como algo de acidental e exterior; logo, o que se mostra de fato como
sendo de ordem universal é a sua humanidade, a qual acaba sendo o vetor de liame essencial
que os determina, em sua interioridade. Em face dessa tensão dialética oposicionista, torna-se
compreensível a postura de insatisfação explicitada por Hegel, segundo Dardot e Laval, pois,
tanto do ponto de vista universal kantiano quanto com o dado rousseauniano da volição de
todos, o que se nota é que, no caso do primeiro ponto de vista, sua fundamentação não passa de
um mero olhar subjetivista que não parte da própria noção de essência humana; no caso do
segundo olhar voluntarista, o resumo está dado num procedimento que determina o mero
cálculo somatório das vontades.
Assim, como via de saída tanto do naturalismo como do essencialismo se o
estabelecimento de que não é em razão de seu aspecto em comum que determinadas coisas são
ou devam ser coisas comuns, da mesma maneira que não é em razão de sua identidade de
essência ou pertença a um mesmo gênero que os seres humanos carregam alguma coisa em
comum e não meramente alguma coisa de comum.
Ademais, para o entendimento de Dardot e Laval (2017, p. 52), o “[...] comum, no
sentido que o entendemos aqui, não se confunde com uma propriedade compartilhada por todos
os homens (razão, vontade, perfectibilidade etc.).” Aqui, não será a humanidade o coletivo
daquilo que Kant denomina conjunto da espécie humana; também não se constitui no que todos
os humanos tenham em comum, mesmo que seja elucidado que tal noção de comum não deva
ser lida na linha da pertença, pois o indivíduo, em sua condição humana, não pertence à
humanidade, da mesma forma que pertence a uma família, tribo, casta ou Estado-nação. Por
isso, acontece o compartilhamento da humanidade com todos os demais que compõem a sua
espécie, algo que se mostra de forma amplamente diferente.
Por conseguinte, para Dardot e Laval, existe a possibilidade de se inferir que a condição
da humanidade como coletividade representa o Estado universal dos humanos, considerando a
especificidade de que tal Estado tenha a sua condição real garantida no mundo do
suprassensível. Em resumo, o comum não se configura como humanidade na condição de ser
essência moral ou de dignidade, nem a humanidade como espécie, nem como aptidão na linha
da simpatia com outros seres humanos, no sentido de não deixar de ter relação com o
pensamento, ao buscar se postar no lugar da sua alteridade.
Nessa linha de reflexão, de acordo com Dardot e Laval (2017, p. 52), o “[...] comum
deve ser pensado como coatividade, e não como copertencimento, copropriedade ou
copossessão.” Esses autores seguem com uma postura crítica, afastando-se do pensamento de
Nietzsche desde o momento em que este rebaixa a noção de universal. O que o pensamento
nietzschiano opera é a redução do universal a uma espécie de norma mediana, a qual teria o
poder de submeter à adaptação todos os seres humanos, no sentido de fazer a exposição de
oposição do nobre ou do raro. Nessa direção, o comum se colocaria de forma espúria como
vulgar, em oposição ao comum como universal indeterminado, traçando o sentido do primeiro
como a verdade do segundo. Porém, a razão do comum, na perspectiva de Dardot e Laval (2017,
p. 52-53), “[...] não define a priori um tipo de homem psicológico ou social ,
independentemente da atividade prática dos próprios indivíduos.” Nietzsche (1992, p. 47), no
§ 43 de seu livro Além do bem e do mal, assevera que não existe a possibilidade da existência
de qualquer bem que seja comum, porque a razão de algo ser realmente um bem se justificaria
por não ser comum.
Como visto, a filosofia que preza pela distinção de valor nietzschiana entre as pessoas
traça uma problematização do valor do juízo, o qual teria as condições de desvelar determinado
tipo de ser humano. Logo, o juízo que de fato teria valor seria constituído por aquele modo de
agir que não busca estar em concordância com as demais pessoas, seguindo, no fundo, um
percurso diametralmente oposto à postura kantiana que preza pelo sensus communis, que é a
norma do juízo de corte aberto. Enfim, o que se erguerá é a seguinte máxima: atingirá valor
pela condição de raridade e, por tal, se efetivará em razão do tipo de ser humano que o
exterioriza.
3 O PRINCÍPIO DO COMUM COMO APÓFASE AO PRINCÍPIO DA PROPRIEDADE
Sem dúvida, podemos asseverar que o princípio do comum não se constitui no princípio
sacralizado da propriedade das democracias liberais capitalistas. Contudo, as ações de
construção de projetos que visam a reformar a máxima da propriedade e delimitar o seu poderio
foram revertidas em ações eficientes e benéficas para diversos estratos sociais. Esse princípio
da propriedade, no entanto, não carrega consigo a sempiterna força de validez que a torna
insuperável. Quando se faz o exame das condições jurídicas que objetivam a legitimação do
direito das coisas, em termos de propriedade, este sucumbe ao manter a forma da exclusão, da
hierarquização e a prática de se tomar decisões centralizadas que rotineiramente representam o
reforço do princípio da propriedade em si mesmo.
Assim, se a gama de direitos gestados pelos pensadores liberais do direito moderno fosse
expandida de igual maneira para toda a sociedade, maior seria o risco de que a pluralidade
interna fizesse ruir as hierarquias que o princípio da propriedade pressupõe como exigência.
Nesse sentido, Hardt e Negri (2018) argumentam, de modo apofático e crítico, diante da força
desse princípio do poder privado.
Nessa perspectiva, fundamentalmente, o princípio do comum se caracteriza de forma
contrastante em choque com o princípio da propriedade, seja em âmbito público, seja privado.
Não se tem, nessa direção, uma nova maneira de se interpretar a noção de propriedade, todavia,
essa perspectiva do princípio do comum será a apófase da propriedade, ou seja, tem-se com isso
a mediação renovada de lidar e fazer a gestão dos valores e bens humanos. Nesse sentido,
segundo Hardt e Negri (2018, p. 132), o princípio do comum “[...] designa uma estrutura
igualitária e aberta para o acesso à riqueza combinada com mecanismos democráticos de
tomadas de decisão.”
Em outras palavras, podemos afirmar que o comum se constitui naquilo que pode ser
compartilhado e que age como uma tecnologia e estrutura social, cuja meta é o
compartilhamento daquilo que implica o agir do princípio do comum. Essa problematização do
princípio da propriedade e do comum é útil, pois desnaturaliza as relações que universalmente
são pautadas pela força do valor da propriedade. A concepção de propriedade privada, cabe
frisar, não se constitui como algo inerente à própria natureza humana e muitos menos um fator
inexorável, para que a vida em sociedade seja marcada pela civilidade. Porém, o que entra em
jogo é a fenomenologia histórica para a qual tal princípio do privado passou a existir desde o
implemento da cultura moderna do capitalismo, que não tem qualquer garantia de ostentar a sua
existência sempiterna.
Hardt e Negri nos alertam para o fato de que devemos reconhecer que o princípio da
propriedade, no decurso dessa fenomenologia histórica da modernidade, foi construído com o
expediente da violência e do morticínio que privilegiou a propriedade privada universalmente.
O resultado de tal prática será a destruição de todos os intentos sociais de compartilhamento
das riquezas materiais. Ora, mesmo assim, para Hardt e Negri (2018, p. 132), o princípio do
comum “[...] não deveria nos levar a conceber o comum em termos de formas sociais p-
capitalistas ou ansiar por sua recriação.” Em diversas ocasiões, os modelos erigidos em termos
de propostas de comunidades e sistemas de compartilhamento das riquezas materiais
prolépticas ao sistema de capitalismo moderno seguiram a lógica repulsiva do patriarcalismo e
da hierarquização da moral social que objetivava a divisão e o controle das ações humanas.
A questão reativa aqui será indicada no sentido de não se deter o olhar no aquém da
propriedade privada da acumulação capitalista, porém, insta-se olhar para além dessa realidade
limitada. Atualmente, existem condições de se elucidar os modos de compartilhamento dos
bens materiais igualitariamente e, de forma aberta, tendo em vista a possibilidade de se instituir
o direito de deliberar em conjunto os rumos da vida em comum, de maneira democrática, no
que tange à acessibilidade, ao uso, à administração e à redistribuição dos bens socialmente
compartilhados. Essa noção do princípio do comum concerne aos bens sociais e não faz
referência imediata aos bens individuais, conforme argumentam Hardt e Negri (2018, p. 133):
“[...] não necessidade de compartilhar sua escova de dentes ou mesmo de outorgar aos
demais capacidade decisória sobre aquilo que vocês mesmo produzem.” No que diz respeito
aos objetos do comum, encontramos variadas qualidades peculiares, porque, de certo modo, a
forma com que se pode pensar em termos de compartilhamento precisa assumir as mais
distintivas práticas.
Determinadas formas de bens valorosos no mundo da vida são caracterizadas como
limitadas e escassas, sendo que outras, de maneira oposta, são efusivamente reproduzíveis. Por
conseguinte, a administração da prática de compartilhamento desses tipos de bens, em geral,
requer grande capacidade imaginativa diante dos múltiplos desafios das distribuições destes.
Na sequência, poderemos ver uma proposta preliminarmente limitada das distintas maneiras de
se situar o que seja o princípio do comum: (i) a questão do planeta Terra e seus ecossistemas,
os quais são inevitavelmente comuns, tendo em vista que toda vida que habita o planeta está
implicada diante dos danos que a destruição de tal bem comum tem causado em relação às
diversas mazelas ambientais. No bojo dessa situação, encontra-se a crença de que a propriedade
privada ou o interesse nacional tenha condições de preservar tal bem. Na verdade, o planeta
Terra deve ser tratado como um espaço comum, pois todas as deliberações decisivas têm de ser
fundadas na coletividade, tendo em vista o futuro da multidão e da própria Terra, para garantir
ambas as existências; (ii) as formas dos bens, as quais são basicamente imateriais, tais como as
ideias, os códigos de programas, as imagens e as produções culturais, conseguem se opor à
mentalidade de exclusões impressa pelas relações advindas do princípio de propriedade e
inclinam-se ao princípio do comum; (iii) as mercadorias materiais, produzidas ou retiradas pelas
operações, calcadas com densidade nas ações cooperativas articuladas pelo trabalho social, têm
de ser abertas para o campo de uso comum e, de igual modo, entram em jogo as deliberações
estratégicas de planejamento de preservação de recursos naturais, as quais devem ser operadas
com a radicalização dos processos democráticos; (iv) os territórios sociais das grandes
metrópoles e do campo, quer se refiram aos espaços construídos, quer aos circuitos culturais
fixados, que são resultados das interações e cooperações sociais, precisam estar abertos ao uso
e geridos pelo princípio do comum e (v) as instituições sociais e as ações dirigidas à saúde, à
educação, à habitação e ao bem-estar social precisam ser reorganizadas, a partir do seu uso para
a benesse de todos os agentes humanos envolvidos e pautados por tomadas de decisões
democraticamente estabelecidas.
Nesse contexto, segundo Hardt e Negri (2014), a produção operada pelo princípio do
comum ganha protagonismo, se pensarmos que a multidão é quem tem a potência de produzir
uma linguagem que comunique o comum e que sirva como o princípio das produções futuras
de compartilhamento, numa relação de ampliação das potencialidades desta em espiral.
Todavia, mediante o exemplo oferecido pelos pensadores citados, torna-se um ponto crucial
que toda e qualquer forma de entendimento do princípio do comum seja regida pela noção de
uso comum na viabilização dos bens sociais, no sentido de serem conduzidos por uma boa
gestão coletiva.
Hardt e Negri tomam como base para a compreensão do princípio do comum,
atualmente, a obra da economista estadunidense Elinor Ostrom, que se concentra nas demandas
de governança e de instituição. Segundo os pensadores, a economista mostra, de forma
persuasiva, que existe uma falácia dos argumentos que indicam a existência de tragédia dos
comuns, onde se ostenta que, para a sua utilização ser garantida de maneira eficiente e
consolidada contra toda a possibilidade de ruína, todos os bens têm de ser revertidos em
propriedade pública ou privada. A postura de Ostrom segue a linha de compreensão de que
todos os recursos de acesso ao comum têm de ser administrados, porém, a autora se mantém
reticente em face do entendimento de que o poder estatal e a força capitalista de
empreendimentos sejam os únicos em condições de realizar tal gestão. Nesse sentido, segundo
Ostrom (1990), entram em jogo as condições de existir que realmente já existem, nas diversas
formas coletivas de gestão autônoma.
Mediante as relações de uso do bem comum natural, os apontamentos de Ostrom sobre
o comum se dirigem para a máxima de que o princípio do comum precisa ser gestado pela via
sistêmica da participação democrática comunitária. Entretanto, o ponto crítico da posição de
Ostrom, na visão de Hardt e Negri, é perseverar na concepção de que a comunidade que
compartilha a condição de acessibilidade e as tomadas de decisões deva ser situada de modo
reduzido e com delimitação precisa, promovendo a distinção entre os que compõem o seu
interior e os que fazem parte de seu contexto externo. Hardt e Negri (2016) afirmam que têm o
interesse de erigir outra concepção de experiências democráticas, seguindo em outra direção de
organização social.
O destaque recai no dado de que, no mundo globalizado, quaisquer que sejam os direitos
do comum nesses processos ativos ligados à democracia global, talvez, estes tenham de ser
atingidos com a distinção não apenas entre os critérios de direito público e privado, mas também
devam se orientar para o nível organizacional dos direitos sociais. Realmente, conforme Hardt
e Negri, os direitos sociais que têm a capacidade de efetivar algumas potencialidades do comum
se encontram numa situação paradoxal entre a luz e as sombras. O esforço de desvelar o
princípio do comum proporciona a articulação de diversas aporias, as quais pululam nas
sociedades contemporâneas.
Logo, esses pensadores do comum destacam que os direitos sociais têm o caráter de
serem estáticos, pois registram regras jurídicas que foram asseguradas internamente ao contexto
do mercado, tendo em vista a regulação das relações sociais; nesse sentido, argumentam Hardt
e Negri (2018, p. 135), “[...] o comum é fundamentalmente produtivo e não simplesmente regula
as relações sociais existentes, mas constrói novas instituições do ‘estar-junto’.” Se o direito
social exige um tipo de mobilização ampla, que se submete a normas do direito público e que
está atento às demandas do poder estatal e às ambiguidades das lutas entre as correntes políticas
que o compõem, para ambos os pensadores, o princípio do comum possui as condições de
construir um arranjo social que preze pelas interações democraticamente cooperativas, as quais,
a contrapelo da história, são erigidas e autogovernadas desde baixo.
Ora, conforme a visão do direito social, que segue assumindo a postura de entender que
a densa massa dos indivíduos serve apenas como seu objeto de manipulação formal, o princípio
do comum existe e age em razão da cooperação entre as singularidades, pois cada agente
humano detém a potência de contribuir peculiarmente com o soerguimento operacional das
instituições, em benefício da vida boa, no conjunto das relações sociais das sociedades
contemporâneas. Seguindo essa mesma linha sistemática de ação, Dardot e Laval (2016)
defendem uma nova razão do mundo, a qual pode ser privilegiada desde o princípio do uso
comum, em detrimento do princípio da propriedade privada exclusivista.
Por fim, observa-se que a noção de primazia do princípio do comum também pauta as
estratégias das reflexões sustentadas por Hardt e Negri. Eles pontuam que, apesar de o direito
social ter sua origem nos esforços do movimento trabalhista, o neoliberalismo o adulterou, no
sentido de aquele servir apenas para fazer a gestão do capital humano e, assim, participar dos
mecanismos do biopoder que normatizam as ações e as interações sociais humanas, a ponto de
submetê-las ao controle exercido pelo poder monetário e financeiro.
De modo diametralmente oposto, temos outro princípio de poder alternativo que se
constitui, como destacam Hardt e Negri (2018, p. 135): “[...] o comum avança sem mediações
legais e emerge como multidão, isto é, como as capacidades dos sujeitos de reunir suas
singularidades em instituições produtoras de riqueza e liberdade.” Nessa direção, o princípio
do comum não se configura como uma espécie de elemento mítico que marque presença para
além das propriedades privadas e públicas, como uma forma de propriedade distinta.
A questão não será a de forjar qualquer tipo de neologismo que renomeie outra forma
de propriedade. Por conseguinte, o princípio do comum se coloca como apófase do princípio
de propriedade, de uma maneira radical, em razão de suprimir o caráter pautado na exclusão
advinda dos direitos à propriedade, tanto no caso do uso como na tomada de decisões que o
institui; em detrimento disso, temos as possíveis práticas sistemáticas de uso aberto e
socialmente compartilhado, as quais se fiam pelo poder da multidão em termos de
autogovernança democrática, pautados pelo princípio do comum.
THE PRINCIPLE OF THE COMMON AS AN APOPHASIS TO THE PRINCIPLE OF
PROPERTY IN CONTEMPORARY DEMOCRACIES
Abstract: The philosophical implication that guides the issue addressed here is the following: how does
the principle of the common constitute a frontal apophasis to the principle of property in contemporary
democracies? I do not pretend to offer an exhaustive answer to this problem. However, I use the
argumentative strategy of dividing this paper into three sections: (i) theoretically investigate the
dialectical tension between the principle of the common and the principle of property; (ii) analytically
observe the premise that the behavioral practices of exacerbated individualism contribute as an act of
aversion to the principle of the common and (iii) dwell on the articulation of the notion of the principle
of the common as a factor that is present on the threshold between the philosophical vulgar and
philosophical universal. Finally, I form some considerations that problematize the naturalized notion of
the principle of property in current democracies, in view of the constituent power that the principle of
the common holds in the perspective of achieving the well-being of human agents in contemporary
community life.
Keywords: Apophasis. Common. Democracies. Principle. Property.
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