TRADUÇÃO
SERENDIPIDADE E INDISCIPLINARIDADE[1]
Autora: Sylvie Catellin[2]
Autor: Laurent Loty[3]
Tradução: Patrícia Carvalho Reis[4]
Resumo: A serendipidade é a arte de prestar atenção àquilo que surpreende e imaginar uma interpretação apropriada. A indisciplinaridade consiste em investigar além das disciplinas e contra seus efeitos esclerosantes. A primeira está no cerne do processo de qualquer descoberta, a segunda confronta diretamente com o paradoxo das disciplinas, ao mesmo tempo necessárias e prejudiciais. A serendipidade está na origem da indisciplinaridade ou é sua causa final. A "indisciplinaridade" poderia se tornar, junto com a "serendipidade", o conceito indispensável à dinâmica da pesquisa, como a "interdisciplinaridade" foi em seu tempo.
Palavras-chave: Serendipidade. Indisciplinaridade. Descoberta científica. Imaginação. Investigação.
Paradoxo das formas modernas do saber: a disciplinarização e a especialização das ciências favorecem o acúmulo dos conhecimentos e sua transmissão, mas esse processo prejudica precisamente a descoberta científica. Segundo efeito perverso da institucionalização das ciências: a dissociação das ciências matemáticas, naturais e humanas, a autonomia das ciências no que diz respeito às outras atividades sociais, levam à perda de significado e dos desafios humanos da pesquisa. O que faz a força das ciências faz também a sua fraqueza. A institucionalização delas ameaça o próprio movimento que as funda: a recusa de se submeterem a priori às autoridades e aos saberes estabelecidos, a liberdade de associar as coisas e as ideias, o envolvimento pessoal e a originalidade celebrados depois, naqueles que, às vezes, estão na origem... de novas disciplinas.
Desde que os neologismos "interdisciplinaridade" (1968), “pluridisciplinaridade” (1969) e "transdisciplinaridade" (1970) se tornaram as palavras-chave da reflexão sobre os efeitos perversos da divisão do trabalho intelectual, várias análises foram formuladas sobre o paradoxo constitutivo de uma ultrapassagem das fronteiras disciplinares, sobre os obstáculos que lhes opõem as inércias institucionais e, mais ainda, sobre os perigos de travessias interdisciplinares falaciosas ou pretextos para imperialismos disciplinares. Mas devemos ter cuidado para não reduzir o assunto a um lugar-comum inoperante. A distância em relação aos saberes estabelecidos está no cerne de qualquer grande invenção, e o paradoxo do congelamento disciplinar do pensamento é o ponto nevrálgico de qualquer política criativa da pesquisa.
Como renovar a reflexão, nesse domínio? Autora de uma história e de uma epistemologia da palavra “serendipidade”, inventor e principal intérprete da palavra “indisciplinaridade”, nós apostamos que esses dois termos combinados podem contribuir para isso. O sucesso atual desses conceitos é o sintoma de uma profunda crise na prática científica. Seu bom uso pode fazer deles conceitos mais abrangentes e aptos a responder aos paradoxos engendrados pelos efeitos perversos evocados acima.
Enquanto a palavra serendipidade parece estranha à dinâmica das ciências e a palavra “indisciplinaridade” parece se opor a ela, esses dois termos designam aquilo que está no cerne da abordagem científica. A primeira palavra esclarece o próprio processo da descoberta, o qual a insistência na aquisição de um método acaba por ocultar; a segunda palavra ajuda a pensar a liberdade de espírito que torna possível a serendipidade, ou o que, em sentido inverso, esta suscita. Veremos como esses dois conceitos se esclarecem mutuamente e abrem perspectivas para repensar as ciências e as políticas científicas.
Serendipidade, motor da descoberta
Proveniente de um conto persa com origens milenares, a palavra “serendipidade” vem da literatura e parece bem afastada da prática científica. É preciso ter seguido o longo desenvolvimento histórico de sua significação e de sua difusão, para compreender a pertinência do conceito e captar os desafios do seu sucesso hoje, tanto nas ciências da natureza, sociais e humanas quanto nos campos de criação artística e de inovação (Catellin, 2014).
Quando o escritor inglês Horace Walpole inventa a palavra, em 1754, deu-lhe uma definição ambígua: a faculdade de descobrir, por acaso e sagacidade, o que não se procurava. Outros escritores, como Voltaire, em Zadig (1748), já havia percebido essa razão ficcional muito antiga que dá ênfase à profunda sagacidade dos personagens capazes de observar traços que funcionam como indícios e de reintegrá-los em séries causais (Ginzburg, 1980). Mas, enquanto Voltaire racionaliza o processo de descoberta, Walpole é mais sensível ao papel da imaginação. Se a sagacidade está do lado da razão, o acaso refere-se a essa liberdade imaginativa, propícia ao surgimento de ideias incidentais, essas ideias não procuradas que revelam o próprio significado do que descobrimos. A serendipidade envolve um diálogo entre a razão e a imaginação, entre o consciente e o não consciente; o poder de descobrir decorre dessa interação.
No final do século XIX, o que o biólogo darwinista Thomas Huxley procura designar, referindo-se ao "método Zadig", o filósofo e lógico Charles S. Peirce o teoriza, nomeando-o “abdução”, enquanto o médico Sigmund Freud se serve dessa noção para reconstruir cadeias causais pela psicanálise e a nomeia "associação de ideias incidentais”. Contudo, é a palavra "serendipidade" justamente – porque integra o papel da subjetividade, da intuição, da imaginação na descoberta, sem se opor à razão – que entra no vocabulário científico e se populariza, no século XX.
Walter Cannon, professor da Faculdade de Medicina de Harvard, depois Robert Merton, sociólogo das ciências, são duas figuras-chave dessa transferência, nos anos 1930-1940 (Merton; Barber, 2004). Atento ao vivido da experiência subjetiva, Cannon enfatiza os conhecimentos conscientes ou não conscientes do pesquisador, motivados por fatos ou observações imprevistas, enquanto Merton relaciona a serendipidade ao fato acidental, à anomalia que entra em contradição com os dados estabelecidos. Cannon se interessou pela fisiologia das emoções, bem como pelos mecanismos específicos de resposta às mudanças no ambiente exterior, notadamente o “estresse”, termo que ele toma emprestado da física dos materiais. Após sua descoberta serendipiana da neurobiologia do estresse, ele cria, em 1926, o conceito de “homeostasia”, o qual será uma das chaves do desenvolvimento da cibernética. A palavra serendipidade é adotada igualmente nos círculos de pesquisa aplicada, em particular nos laboratórios da General Electric. Para seu diretor Irving Langmuir (físico e Prêmio Nobel de química em 1932), são sequências de observações e de conexões imprevisíveis, gerando associações de ideias, que levam às descobertas mais frutíferas, tanto em termos de conhecimentos básicos como naquele das aplicações (Langmuir, 1948). Quando o termo chega aos olhos de Norbert Wiener, em 1953, o fundador da cibernética observa com grande interesse que essa qualidade dos príncipes de Serendip constitui "uma arma vital no arsenal do cientista".
Toda descoberta científica é serendipiana
Podemos surpreender-nos com a redução feita pela expressão “descoberta por acaso”, a qual se tornou o significado corrente da palavra. Os cientistas sabem muito bem que a interpretação de fatos singulares ou de observações inesperadas não é algo do acaso. No processo de descoberta, o elemento acidental é apenas o ponto de partida. Se algo inesperado acontece, ainda é preciso procurar explicá-lo (Andel; Bourcier, 2009). Sem a receptividade, sem a atenção alimentada do saber e da experiência do pesquisador, sem liberdade imaginativa, não há serendipidade, não há descoberta. A persistência da referência ao acaso ainda hoje enfatiza, antes de tudo, o aspecto imprevisível e não planificado da serendipidade, e a necessidade da liberdade do domínio científico face ao político (Loty, 2011). No entanto, o acaso é aqui uma palavra-obstáculo, impedindo-nos de apreender o que a “serendipidade” designa: saber prestar atenção a um fenômeno surpreendente e imaginar uma interpretação pertinente. A descoberta sempre se refere a algo oculto ou desconhecido, que a razão dedutiva é impotente para conhecer. E como somente podemos procurar o que ainda não é conhecido, não sabemos aquilo que é preciso procurar. Quando os cientistas sabem aquilo que procuram, já o descobriram, por um raciocínio imaginativo. Toda descoberta importante implica a serendipidade.
Poderíamos afirmar que algumas descobertas não foram serendipianas, porque os pesquisadores já sabiam o que eles procuravam. Analisemos dois exemplos. Primeiro, o do neutrino, que Thomas Kuhn classifica na categoria das descobertas previsíveis, omitindo dela o processo criativo na origem da teoria. O conceito de neutrino foi pensado vinte e seis anos antes da detecção dos primeiros neutrinos, no interior de um reator nuclear. Tudo começa com um sério problema colocado pela radioatividade beta. O núcleo e o elétron resultantes da desintegração do núcleo radioativo não carregam toda a energia disponível, de modo que a validade do princípio da conservação da energia é questionada (Lévy-Leblond; Witkowski, 2001). É para encontrar uma solução para esse problema inesperado e surpreendente que o físico Wolfgang Pauli imagina, em 1930, uma terceira partícula de carga neutra e de massa zero, emitida na desintegração e que leva a energia faltante – daí o nome neutrino (pequeno neutro). A partir daí, os físicos começaram a estudar essa partícula hipotética, tão difícil de se detectar, pela sua ausência de carga elétrica e por sua interação muito fraca com a matéria. Portanto, o previsível não era a descoberta do neutrino, mas sua detecção, a prova experimental de sua existência.
Segundo exemplo, no campo da arqueologia. A descoberta da tumba de Tutancâmon (1922) seria desprovida de serendipidade, com base no fato de que o pesquisador sabia onde procurar. Ora, mas como ele sabia? O próprio Howard Carter reconstitui, em uma história emocionante, o percurso que lhe permitiu descobrir onde se encontrava o túmulo do faraó, precisamente naquele Vale dos Reis no qual seu antecessor havia desistido de escavar, convencido de que ele não tinha mais nada para fornecer (Carter, 2011). Carter prestou atenção a detalhes que outros haviam negligenciado (as áreas de entulhos cobertos por expedições anteriores), interpretou corretamente certos indícios (diversos objetos pertencentes ao faraó encontrados num túmulo saqueado), estabelecendo assim correlações que o convenceram, contra toda expectativa, de que o túmulo estava escondido perto do centro do vale.
Permitir deixar-se surpreender, depois imaginar uma razão para o que surpreende: a abordagem serendipiana poderia parecer uma evidência. Todavia, o saber ancestral da interpretação dos vestígios e dos sinais tem deixado tanto o lugar aos discursos do método científico, que se tornou necessário redescobrir a serendipidade, seja contra o método, seja como verdadeiro método, se entendemos por isso uma abordagem investigativa cujo próprio caminho não é pré-definido e pode levar a uma mudança de paradigma. A descoberta não pode surgir apenas da aprendizagem dos saberes disciplinares. E, paradoxalmente, os saberes transmitidos podem bloquear a imaginação.
No cerne do paradoxo, a indisciplinaridade
A pluri-, a inter- e a transdisciplinaridade designam a maneira pela qual um objeto pode, respectivamente: ser estudado por várias disciplinas reunidas, ser abordado na sua interseção, ser encontrado no núcleo de várias disciplinas e, assim, além da fronteira de cada uma delas. Os responsáveis pelas instituições de pesquisa sabem melhor do que qualquer um o paradoxo a que são confrontados, ao apoiar as disciplinas, fundamentos das pesquisas futuras, e se esforçam, ao mesmo tempo, para evitar que os saberes já reconhecidos as cimentem e as deixem esclerosadas. A ênfase colocada pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) sobre o ir além das fronteiras disciplinares leva em consideração a história das descobertas científicas, as quais sempre supõem desviar-se dos caminhos costumeiros. Desviar-se daquilo que é já conhecido é indispensável no próprio quadro de uma ultraespecialização; isso se impõe, a fortiori, no nível disciplinar ou macrodisciplinar, quando a invenção pode levar ao surgimento de uma nova disciplina.
Mas, presos a um paradoxo que confina os pesquisadores ao double bind, as palavras e ideias de pluri, de inter e mesmo de transdisciplinaridade não chegam a dizer claramente o que está fundamentalmente em jogo, na descoberta e na inovação: a capacidade de não se submeterem ao saber já dado, cuja estruturação institucional em “disciplinas” retoma um vocabulário proveniente da hierarquia clerical e, após, militar (Loty, 2000, 2005). Em um contexto econômico-político e cultural susceptível de fortalecer a programação de curto prazo da pesquisa, e com a hierarquização arbitrária de pesquisadores e de suas equipes, podemos compreender os apelos à indisciplina. Porém, esse trocadilho não pode ser o prelúdio para uma transformação das mentalidades ou das instituições: os pesquisadores mais livres sabem o que eles devem à transmissão das disciplinas. Por outro lado, a palavra "indisciplinaridade” retoma esse trocadilho libertador, mas inscrevendo-o, pelo seu sufixo, no quadro de uma conceptualização epistemológica que não se destina apenas a expressar uma rejeição.
Gostaríamos de defender aqui um uso que é, ao mesmo tempo, paradoxal e integrador desse conceito. A indisciplinaridade não é indisciplina. Ela ultrapassa e integra sua dimensão negativa num passo positivo. O pesquisador indisciplinar não é indisciplinado. Ele se opõe àquilo que, na disciplina, prejudica o processo de descoberta. A indisciplinaridade se alimenta de todas as contribuições das disciplinas, cultiva a autodisciplina e se opõe apenas ao que impede o livre movimento da serendipidade.
Da mesma forma, a indisciplinaridade não é a pluri-, a inter- ou a transdisciplinaridade. Ela explicita aquilo que está na origem desses termos: a consciência dos efeitos esclerosantes das disciplinas. Ela não parte da situação de um objeto no espaço dos territórios disciplinares: ela parte da pessoa que elabora um questionamento, numa disciplina ou fora de qualquer disciplina, e responde a ele segundo as necessidades da investigação, com ou sem o concurso das disciplinas, e mesmo contra aquelas que fazem obstáculo à descoberta. A indisciplinaridade pode levar ao enriquecimento de uma disciplina, reivindicar a pluri- ou a interdisciplinaridade, constatar a transdisciplinaridade; contudo ela afirma primeiramente aquilo que preside essas atitudes: a consciência de que a submissão à disciplina significa repetição sem invenção. Em diferentes graus, toda descoberta é, ao mesmo tempo, serendipiana e indisciplinar.
Descobrir fora das disciplinas ou contra elas
Vejamos dois exemplos de descoberta por indisciplinaridade. O primeiro diz respeito à história das relações entre ficção utópica e eugenismo. A investigação leva a encontrar, em muitas utopias, desde o século XVII, a representação de uma política de melhoria da população pela eliminação dos indivíduos considerados inferiores ou pelos cruzamentos de indivíduos considerados superiores. Um tal estudo pode surgir do espanto diante de uma utopia eugenista, nesse caso, La Découverte australe, de Nicolas-Edme Rétif de la Bretonne (1781), enquanto o eugenismo stricto sensu foi fundado nos anos 1880, pelo primo de Darwin, Francis Galton. Na realidade, Galton e mais tarde alguns eugenistas nazistas encontraram na ficção utópica o modo de exprimir seu progressismo anti-humanista.
Essa investigação permite conceituar melhor o eugenismo, integrando-o numa longa história do pensamento biopolítico, sem se focalizar na história das técnicas genéticas recentes ou numa dimensão exclusivamente ética. O desafio é identificar a articulação necessária entre reflexão ética e política, para abordar as relações entre o individual e o coletivo, no imaginário, as teorias e as práticas políticas e biopolíticas. É preciso qualificar essa pesquisa de interdisciplinar, no cruzamento da história literária, científica e política, ou bem reintegrá-la na disciplina histórica, ou ainda orientá-la a uma disciplina bioética em via de constituição? É melhor considerar que essa pesquisa indisciplinar é, antes de tudo, orientada por seu questionamento e suas descobertas (Loty, 2005).
Essa primeira pesquisa deu origem a uma outra, a qual apresenta outra dimensão de indisciplinaridade e de suas relações com a serendipidade, desta vez por oposição àquilo que, nas disciplinas, impede a descoberta. A mesma ficção publicada por Rétif, em 1781, propõe a primeira representação de uma teoria geral do transformismo, que Rétif reformula em forma de um tratado, em sua Physique de 1796. O estudo desses textos permite responder a uma pergunta que a história das ciências biológicas não pode responder: como ou por que o naturalista fixista Lamarck se tornou, por volta de 1801, transformista? É um autor indisciplinar como Rétif que pode fazer compreender que a ideia de uma transformação das espécies não se origina primariamente da biologia, mas de uma sensibilidade exacerbada à temporalidade, de uma forte imaginação e de circunstâncias culturais próprias a um filho de um camponês que se tornou, durante o Iluminismo e após sob a Revolução, um dos autores mais prolíficos sobre o assunto de histórias e de reflexões sobre as transformações políticas.
Antecipando Lamarck e outros, os textos de Rétif mostram aquilo que os textos hiperdisciplinarizados escondem, quanto à origem da ideia transformista. A ficção de 1781 também sugere que o eugenismo poderia ser, mais do que uma deriva do transformismo, um projeto político na origem da ideia científica (o que não impede de os dissociar). A lição seria a mesma para a teoria da evolução darwiniana: teoria naturalista, certamente; porém, cujos fundamentos devem ser buscados no confronto com a ideia teológica de adaptação, na influência das ideias demográficas e econômicas de Malthus, e no modelo de seleção artificial, praticado por criadores dos animais. Assim, a história das ciências biológicas acaba por não ensejar a descoberta de que o transformismo ou o evolucionismo são principalmente teorias da história, e que as ciências naturais são primeiramente, a montante e a jusante, ciências humanas. Essa disciplinarização da história dos saberes também nos impede de compreender por quais caminhos indisciplinares e serendipianos acontecem descobertas, como a transformação de espécies ou a seleção natural (Loty, 2012).
Esclarecimentos recíprocos
A indisciplinaridade e a serendipidade são duas qualidades complementares à pessoa que procura e que encontra. A serendipidade pode despertar a indisciplinaridade, no momento da interpretação do fato surpreendente, quando a pesquisa da explicação requer ir além do quadro disciplinar, a fim de relacionar objetos ou conhecimentos não previamente ligados entre si, ou para construir um novo olhar para novos objetos. Por outro lado, a indisciplinaridade favorece a serendipidade, esta que parte da capacidade de surpreender-se com algo estranho, que não se encaixa com as expectativas do paradigma disciplinar, e a colocá-lo como uma questão de pesquisa. Esses dois caminhos, um em direção do outro, tornam mais fácil entender como a serendipidade é um processo de duas etapas: a detectação de um fato surpreendente e, em seguida, a sua interpretação, duas fases, aliás, sempre associadas a uma tomada de consciência, a uma forte reflexividade (Catellin, 2012).
A análise de sua indissociabilidade também facilita compreender os diferentes níveis de intervenção e o grau de intensidade relativo à indisciplinaridade, bem como a sua dimensão fundamentalmente positiva. A serendipidade é possível sem indisciplinaridade? É certo que ela se pratica, habitualmente, no quadro de uma disciplina, mas supõe, em algum ponto dado, uma lacuna: o questionamento seria apenas de um microparadigma disciplinar. Tomemos o exemplo da descoberta da penicilina pelo próprio homem que faz conhecer a palavra serendipity, na capa do New York Times, em 1949, servindo-se dela para defender a liberdade dos pesquisadores. Quando Alexander Fleming percebe que a cultura dos estafilococos sobre a qual ele trabalhava se dissolveu na proximidade com um mofo que o tinha acidentalmente contaminado, ele ficou intrigado. Fatos análogos foram constatados por outros bacteriologistas sem, no entanto, suscitar uma atenção particular. Quanto a Fleming, ele fica interessado e faz experiências para descobrir as características dessa substância bactericida produzida pelo mofo, e assim ele descobre que ela é extremamente eficaz para destruir muitos germes das doenças. Na verdade, a ideia de que substâncias germicidas estavam presentes no organismo, a ideia de que se devia ser capaz de obter substâncias (não tóxicas) capazes de matar bactérias in vivo, essas ideias preocupavam a mente de Fleming. É por esse motivo que o aspecto estranho da placa de Petri ganhou um novo significado para ele. Fleming, portanto, bem descobriu a penicilina por serendipidade, mantendo-se dentro do quadro disciplinar – contudo, de uma certa maneira, ele se desviou daquilo que tinha aprendido, ou seja, que os únicos meios de destruir os micróbios no organismo consistiam na utilização de vacinas ou de soros.
Pode haver indisciplinaridade sem serendipidade? A nosso ver, isso diz respeito apenas ao lado crítico da indisciplinaridade como recusa em se submeter a uma disciplina, como indisciplina. Mas a indisciplinaridade inclui a indisciplina, num movimento positivo de pesquisa. Nos casos nos quais a indisciplinaridade precede a serendipidade, a serendipidade ainda está presente como um projeto. Assim, a serendipidade é a causa final da indisciplinaridade.
Palavras que são sintomas de um desconforto que cresce
A difusão das palavras “serendipidade” e “indisciplinaridade” é uma reação a um processo secular de especialização das ciências e estabelecimento de um imaginário de ciência dissociada de outras atividades do espírito humano. A isso se somam os efeitos recentes de grandes transformações geopolíticas e econômicas, que afetam as políticas de pesquisa e reduzem a liberdade e o tempo necessários para a descoberta.
A história das palavras é aqui sintomática. Desde os anos de 2000, a propagação da palavra “serendipidade” aumenta, tanto na forma impressa quanto on-line. É tema de artigos e de livros, acaba de entrar nos dicionários atualizados da língua [francesa], em 2011, após ter sido eleita palavra do ano de 2009, pela revista Sciences Humaines. A transmissão do recente neologismo "indisciplinaridade" também corresponde à última década. Inventado pela primeira vez, em 1980, por Fred Forest, pioneiro da arte multimídia, após, em 1986, por Jean-Marie Legay, a fim de defender a ideia de ecologia na biologia, o termo foi retomado por Marc Jarry, em 1995, em conexão com a complexidade. Quando foi reinventado novamente, em 1999-2000, foi dessa vez analisado em sua generalidade epistemológica e sociopolítica, no cruzamento da história dos saberes e da história cultural das palavras e das ideias (Loty, 2000).
Nesse mesmo ano de 2000, a palavra "indisciplinaridade" também apareceu na La Lettre d'Inforcom (da Sociedade Francesa das Ciências da Informação e da Comunicação), em um dossiê intitulado "Disciplina, interdisciplina, indisciplina”, com forma de subtítulo, “Há quinze anos, a indisciplinaridade”, que introduziu a reedição de um texto de Baudouin Jurdant, defendendo uma posição de exílio fora da disciplina. Esse texto tinha sido primeiramente publicado sem a palavra, em 1984, no número 1 dos Cahiers S.T.S., “Indisciplinas”, do programa “Ciências, Técnicas, Sociedades”, dirigido por Dominique Wolton. Essa convergência entre a reflexão sobre os saberes e sobre a comunicação é notável.
Última indicação para uma história cultural, a palavra "indisciplinaridade" aparece, nos últimos anos, como um resumo das publicações sobre o trabalho de um intelectual reconhecido: é o caso do prefácio às atas de um colóquio de Cerisy, intitulado La Philosophie déplacée. Autour de Jacques Rancière (2006); ou no prefácio que Dominique Wolton (2012) escreve, para sua coletânea de artigos Indiscipliné. La communication, les hommes et la politique, após uma referência às “Indisciplinas” dos Cahiers S.T.S. A palavra "indisciplinado”, etapa preliminar à invenção do “indisciplinar”, se espalha para descrever os cientistas engajados: assim, a biografia Edgar Morin, O indisciplinado (Lemieux, 2009), seguida de uma edição especial do Le Monde, em 2010, Edgar Morin, o filósofo indisciplinado. Essa efervescência deverá conduzir ao sucesso do conceito da indisciplinaridade, a partir de agora retransmitida em obras e em diversas revistas ou na internet.
A análise aprofundada do desenvolvimento conjunto das palavras "serendipidade" e "indisciplinaridade" também mostra que esse apelo à liberdade se origina do fato de que as ciências ditas humanas se juntaram às ciências ditas naturais, no seu estatuto de disciplinas sujeitas às algemas metodológicas e, mais ainda, às políticas de programação em curto prazo e de avaliação quantitativa, colocando em perigo a pesquisa.
Em favor da serendipidade: da interdisciplinaridade à indisciplinaridade
O sucesso atual das palavras "serendipidade" e "indisciplinaridade” é um sintoma do desconforto que sentem os pesquisadores, diante das restrições de desempenho que colocam as práticas de pesquisa em programas planejados, de acordo com objetivos pré-definidos e prejudiciais à criatividade. Por outro lado, esses mesmos termos podem constituir os conceitos sobre os quais se apoiam, de sorte a reiniciar uma dinâmica de pesquisa. Enquanto o primeiro é responsável por nos lembrar como se pode descobrir, o segundo se confronta diretamente com o paradoxo das disciplinas. A palavra "indisciplinaridade" afirma claramente aquilo que pluri-, inter- e transdisciplinaridade apenas sugerem, sendo que o termo interdisciplinaridade se tornou o conceito institucional preferido.
“Indisciplinaridade” se tornará, apesar de seu caráter paradoxal, ou graças a ele, e em associação com “serendipidade”, o conceito indispensável para o revigoramento intelectual e institucional, como a palavra "interdisciplinaridade” foi, em seu tempo (Morin, 1990)?
Uma das virtudes desses termos é abordar a invenção na sua dimensão subjetiva, sem, no entanto, negar a parte coletiva da atividade criativa. Tal perspectiva pode constituir um necessário reequilíbrio, num momento em que as formas de organizar a ciência tendem a privilegiar as grandes estruturas e a negligenciar o indivíduo criativo, ao contrário do papel que é suposto desempenhar nas artes. Ter em conta essa dimensão subjetiva vai de mãos dadas com o renascimento de uma concepção humanista das ciências. A questão das condições da invenção envolve igualmente da humanidade do saber, da sua origem e dos seus propósitos. Ela poderia iluminar o caminho para uma nova hibridização ou para uma (re)união das ciências e das humanidades. Não é o caso de as distinções entre as ciências naturais e as ciências humanas se dissolverem, entretanto, de que o sentido humano da pesquisa não seja negligenciado, e de que o compromisso pessoal correlato à indisciplinaridade e à serendipidade seja revalorizado.
Cabe-nos passar do diagnóstico à busca de uma estratégia ou de caminhos em direção a uma revitalização e uma re-humanização das ciências. Esclareçamos primeiramente que convém evitar os efeitos negativos do uso indevido dessas noções. A serendipidade não é um apelo à descoberta por acaso, nem à intuição sem verificação rigorosa das interpretações. Enquanto a interdisciplinaridade, às vezes, favorece programas questionáveis, projetando, por exemplo, modelos biológicos ou de computador sobre processos sociais ou humanos, uma indisciplinaridade mal compreendida poderia consistir em descartar a formação pelas disciplinas, ou em rejeitar qualquer reintegração de descobertas indisciplinares no saber comum. Os conceitos de serendipidade e de indisciplinaridade não colocam em questão a dinâmica da pesquisa acadêmica: eles lançam luz sobre o verdadeiro funcionamento delas.
Nós esperamos que esta reflexão nos convide a imaginar respostas a uma pergunta complexa e paradoxal: como desenvolver vias institucionais e espaços de pesquisa, promovendo a serendipidade e a indisciplinaridade?
A título de exemplo, em seu livro sobre a serendipidade (Merton; Barber, 2004), o sociólogo Merton promove a ideia de “centros de serendipidade institucionalizados”, livres espaços de encontro e diálogo entre pesquisadores. A dificuldade está na concepção e na implementação de tais estruturas. Convém desenvolver a reflexão, sem se contentar em conectar algumas disciplinas. A ideia de indisciplinaridade supõe que a interdisciplinaridade deve, às vezes, dar lugar a uma indiferença radical ou oposição à própria ideia de disciplina. Assim, as comissões e os programas interdisciplinares do CNRS são importantes, mas também temos de encontrar os meios para suscitar programas indisciplinares.
Uma reflexão aprofundada sobre essas formas de liberdade, dentro das próprias instituições científicas, seria um meio para escapar das tentações do irracionalismo, da sujeição dos pesquisadores e da defesa reativa de uma ciência indiferente aos desafios sociais e que, segundo o modelo falacioso da arte pela arte, advogaria a ciência pela ciência.
SÉRENDIPITÉ ET INDISCIPLINARITÉ
Résumé: La sérendipité est l’art de prêter attention à ce qui surprend et d’en imaginer une interprétation pertinente. L’indisciplinarité consiste à enquêter en dehors des disciplines et contre leurs effets sclérosants. La première est au cœur du processus de toute découverte, la seconde affronte directement le paradoxe des disciplines, nécessaires et néfastes à la fois. La sérendipité est à l’origine de l’indisciplinarité ou en est la cause finale. “Indisciplinarité” pourrait devenir, avec “sérendipité”, le concept indispensable à la dynamique de la recherche, comme “interdisciplinarité” l’a été en son temps.
Mots-clés: Sérendipité. Indisciplinarité. Découverte scientifique. Imagination. Enquête.
SERENDIPITY AND UNDISCIPLINARITY
Abstract: Serendipity is the art to give one's attention to what is surprising and of devising a relevant interpretation. Undisciplinarity means taking investigations beyond disciplinary boundaries to overcome their ossifying effects. Serendipity lies at the heart of all discoveries, while undisciplinarity directly confronts the paradox of disciplines, which are at once necessary and harmful. Serendipity is the origin of undisciplinarity, or its ultimate cause. “Undisciplinarity” could, with “serendipity”, become the essential concept underlying the dynamics of research, just as “interdisciplinarity” became in its time.
Keywords: Serendipity. Undisciplinarity. Scientific discovery. Imagination. Inquiry.
Referências
ANDEL, P. (van); BOURCIER, D. De la sérendipité dans la science, la technique, l’art et le droit. Leçons de l´inattendu. Chambéry: L’Act Mem, 2009.
CARTER, H. La Fabuleuse Découverte de la tombe de Toutankhamon. Paris: Pygmalion, 2011 [1978].
CATELLIN, S. Sérendipité et réflexivité. Alliage, n. 70, p. 74-84, 2012.
CATELLIN, S. Sérendipité. Du conte au concept. Préface de Laurent Loty. Paris: Seuil, 2014.
D’Inforcom. DISCIPLINE, interdiscipline, indiscipline. La Lettre D’INFORCOM, n. 0 (nouv. formule), hiver 2000. Disponível em: https://data.bnf.fr/fr/34361295/lettre_d_inforcom__paris_/). Acesso em: 25 abr. 2023.
GINZBURG, C. Signes, traces, pistes. Racines d’un paradigme de l’indice. Le Débat, n. 6, p. 2-44, nov. 1980.
“INDISCIPLINES”, Cahiers, S. T. S.,n. 1, 1984. Disponível em: https://science-societe.fr/cahier-s-t-s-1-indisciplines/. Acesso em: 10 mar. 2023.
LANGMUIR, I. The Growth of Particles in Smokes and Clouds and the Production of Snow from Supercooled Clouds. Proceedings of the American Philosophical Society, v. 92, n. 3, p. 167-185, 1948.
LEMIEUX, E. Edgar Morin, l´indiscipliné. Paris: Seuil, 2009.
LÉVY-LEBLOND, J.-M.; WITKOWSKI, N. Neutrino. In:WITKOWSKI, N. (dir.). Dictionnaire culturel des sciences. Paris: Éditions du Regard, p. 305, 2001.
LOTY, L.“Sens de la discipline… et de l’indiscipline. Réflexions pour une pratique paradoxale de l’indisciplinarité”, Pour l’histoire des sciences de l’homme. Bulletin de la société française pour l’histoire des sciences de l’homme, n. 20, p. 3-16, 2000.
LOTY, L. Pour l’indisciplinarité. In: DOUTHWAITE, J. V.;VIDAL, M. (dir.). The Interdisciplinary Century: Tensions and Convergences in 18th-century Art, History and Literature. Oxford: Voltaire Foundation, p. 245-259, 2005.
LOTY, L. Le hasard dans la sérendipité: histoire d’un déni du politique (XVIIIe-XXe siècle) et enjeux pour une politique scientifique. In: BOURCIER, D.; ANDEL, P. (van) (dir.). La Sérendipité: le hasard heureux. Paris: Hermann, p. 205-218, 2011.
LOTY, L. L’invention du transformisme par Rétif de la Bretonne (1781 et 1796). Alliage, n. 70, p. 31-46, 2012.
MERTON, R.; BARBER, E. The Travels and Adventures of Serendipity: A Study in Sociological Semantics and the Sociology of Science. Princeton: Princeton University Press, 2004.
MORIN, E. Sur l’interdisciplinarité. In: Carrefour des sciences: L’interdisciplinarité. Actes du Colloque du Comité National de la Recherche Scientifique. Paris:CNRS Éditions, p. 21-29, 1990.
WOLTON, D. Indiscipliné. La communication, les hommes et la politique. Paris: Odile Jacob, 2012.
Recebido: 29/11/2022
Aceito: 18/05/2023
Publicado: 22/10/2023
[1]Texto original: «Sérendipité et Indisciplinarité», de Sylvie Catellin e Laurent Loty. In: BESNIER, Jean-Michel; PERRIAULT, Jacques (coord.). VALADE, Bernard; WOLTON, Dominique (supervisão). Interdisciplinarité: entre disciplines et indiscipline. Hermès, La Revue, CNRS Éditions, n. 67, p. 34-42, 2013.
[2] Professora honorária em Comunicação da Universidade de Versailles Saint-Quentin, Yvelines – França – e ensaísta. ORCID: https://orcid.org/0009-0007-7687-175X. E-mail: s.catellin@orange.fr.
[3] Pesquisador em Epistemologia e História das Ideias Científicas e Políticas, no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) Sorbonne Université – França. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8236-091X. E-mail: laurent.loty@cnrs.fr.
[4] Professora da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3322-1507. E-mail: patricia.carvalhoreis@hotmail.com.