A filosofia contemporânea brasileira e a questão da autoralidade: paradigmas e métodos
Ivan Domingues1
Resumo: O artigo versa sobre a filosofia contemporânea brasileira e tem como objetivo introduzir [i] os operadores conceituais no plano teórico-filosófico, com foco no problema da natureza da filosofia brasileira, tomando como ponto de arranque as ideias de autoralidade/originalidade; [ii] as ferramentas analíticas no plano epistêmico-metodológico, ao associar os métodos da metafilosofia, ao operar e dar expressão à ratio filosófica, e os métodos da história intelectual, ao operar e dar expressão à realização histórica da filosofia e da intelligentsia filosófica. O campo das discussões é a metafilosofia, na acepção de filosofia da filosofia, ao desenhar um percurso argumentativo onde metafilosofia, história da filosofia e história intelectual caminham juntas. Serão considerados, na vertente da história intelectual, a título de hipóteses para operar os processos históricos, os paradigmas da formação e pós-formação; na vertente metafilosófica, com foco no ethos, para tipificar os diferentes posicionamentos da intelligentsia filosófica brasileira frente à matriz europeia, nos séculos XX-XXI, as atitudes de alinhamento e reverência; autonomia e assimilação crítica; instrumentalização ideológica e política; suspeição e defenestração.
Palavras-chave: Filosofia contemporânea brasileira. Metafilosofia. História Intelectual. Paradigmas da formação e da pós-formação. Atitudes frente à matriz europeia da filosofia.
INTRODUÇÃO
O artigo versa sobre a filosofia contemporânea brasileira e se divide em duas partes.
Na primeira, a título de considerações preliminares e, não obstante, algo extensas, vou tratar, como foi proposto, da ideia de “autoralidade na filosofia” in abstracto, em escala mundial, e mais especialmente da questão da “Filosofia Autoral Brasileira”.
Na segunda parte, de natureza metodológica, ao encaminhar as discussões e, no entanto, sem poder desenvolvê-las, vou tratar dos “Paradigmas e métodos para a filosofia contemporânea brasileira”, como está no título, com a questão da filosofia autoral e outras a ela associadas, como a da originalidade, no centro das considerações, tendo por contexto os séculos XX-XXI e como foco as estratégias de análise.
O campo das discussões é a metafilosofia, aplicada à filosofia brasileira, tendo como núcleo duro a pergunta pela natureza da filosofia – brasileira, no caso –, levando ao questionamento sobre o logos ou a ratio filosófica, em sua diversidade, senão acerca dos logoi ou das ratios, pois se a razão é a mesma, seus métodos e ferramentais são diversos e mais de um (lógica, retórica, dialética e a própria matemática), e tendo em vista a razão filosófica como um grande arco que abriga diferentes elementos ou componentes, tais como as technai e os gêneros literários (tratados, ensaios, livros e artigos), passando pelo ethos e os ethei do filosofar como atitude, ideia e convicção, vazados numa cultura de um agrupamento intelectual (intelligentsia). E, paralelamente, como eu venho insistindo em minhas pesquisas, mais além do logos e da ratio como ato intelectual e associado ao pensamento, ao focalizar a práxis coextensiva ao ethos, levando ao questionamento ou à consideração da diversidade de sua expressão e realização históricas nesta parte do globo.
E desde logo, como eu vejo, ao serem consideradas, importando na distinção de fases ou etapas, bem como dos elementos do devir historial que permanecem e não mudam e daqueles que se modificam e se transformam, sem alterar, no entanto, a natureza da filosofia como logos e experiência intelectual. Concluindo, é aqui que fica justificada – nessas duas vertentes da filosofia como pensamento e como práxis, resultando em obras e ações – a pergunta pelo kanon da filosofia, em seus aspectos estático e dinâmico, e em cuja consideração, assim como na descrição e análise dos outros elementos ou componentes do filosofar, como o ethos e a techne, [i] metafilosofia e [ii] história da filosofia andam juntas e são o avesso e o direito de uma mesma realidade e experiência intelectual.
É o que vou tentar mostrar, nas páginas que seguem, perfazendo as duas seções do artigo.
1 A AUTORALIDADE NA FILOSOFIA
Começando pela primeira parte, ao me situar frente ao assunto, digo de saída que não tenho reservas em falar de autoralidade e de filosofia autoral, se entendemos por uma tal autoralidade e uma tal filosofia como uma atitude pessoal e uma filosofia em primeira pessoa, em que estamos pessoalmente empenhados ou engajados e podendo resultar numa contribuição original e inédita. A única exigência ou o único requisito é a autonomia intelectual, somada não só da ousadia pessoal em pensar e formular os problemas filosóficos, próprios ou não, mas do empenho pessoal em dar-lhes uma resposta ou uma solução.
Até aí tudo bem e eu não tenho nada contra, depois de ter assistido décadas atrás à “morte do autor” em terras francesas (Roland Barthes), seguida, passados alguns anos, de sua ressurreição na França (Ricoeur, p. ex.) e em outras paragens, inclusive no Brasil, autorizando a ver, como eu vejo, na ideia de autoralidade o outro nome para a originalidade e podendo a escolha recair sobre uma ou outra, com suas vantagens e desvantagens.
A desvantagem da originalidade é sua associação com origem, levando à primazia daquilo que vem primeiro, na ordem do tempo, como se o simples fato de algo ser primeiro ou ter surgido antes por si só lhe dá a garantia ou o selo de ser melhor ou o autêntico, ficando o que vem depois relegado a algo pior ou desvirtuado, como se fosse má cópia ou mero simulacro. Porém, como negar a recorrência dos problemas filosóficos ou que a questão do sujeito em Kant não tem nada a ver com cópia ou simulacro da questão do sujeito e da consciência em Descartes, tendo o francês servido de ponto de arranque para o filósofo alemão, que lhe vai dar uma outra solução?
Outra desvantagem da originalidade é sua associação com novidade, levando à moda e a modismos intelectuais, sendo que, como viu Roberto Gomes, em Crítica da razão tupiniquim, o “novo” e, por extensão, a “novidade”, é apenas um acidente do original, como nos carros sem motor e direção (1994, p. 21-22) – uma quimera em sua época, pressupondo sua modelagem e eventual fabricação o carro tradicional, que está na “origem”, e mesmo a diligência, pode-se dizer. Tudo isso há de ser considerado, devendo o estudioso delimitar com clareza o campo semântico do termo e barrar as implicações indesejadas.
Por sua vez, a ideia de autoralidade tem a desvantagem de ser pouco corrente, bem menos do que autonomia e originalidade, implicando pensar com autoridade e competência, bem como livremente e sem amarras, ao assumir reflexivamente uma posição determinada – e aí não é diferente da ideia de originalidade e de pensamento autônomo e original. Outra desvantagem, e esta, sim, própria da autoralidade e da ideia de filosofia autoral, é sua associação a autor e a autoria. Vale dizer, as criações intelectuais como algo próprio de um indivíduo e com sua marca pessoal, como os claims da filosofia analítica, levando em outros campos da atividade humana a copyright e direito de propriedade. De resto, a algo ou a um plus que não faz parte da essência da atividade intelectual genuína, ou pelo menos não fez parte por mais de dois milênios, sendo um acidente da história ligado ao capitalismo tardio.
Ora, se isso é verdade, como ainda assim falar de autoralidade e negar que a história da filosofia é um imenso hipertexto, que Descartes retomou e copiou Agostinho, da mesma forma que Aristóteles retomou e copiou Platão e Stuart Mill retomou e copiou Auguste Comte, tendo Spencer feito o mesmo? Como falar de autoralidade pessoal ou individual, em tempos como os de hoje, quando se estenderam da ciência para a filosofia experiências de dupla parceria, havendo ainda livros de autoria coletiva provenientes de colóquios, de festschriften ou de encomendas de editoras, sem esquecer a experiência de rede de colaboradores tendo como plataforma a Internet?
Assim, respeitante à dupla parceria, pode ser destacado o caso de Adorno e Horkheimer (Dialética do esclarecimento), na primeira metade do século XX, podendo ser citadas outras parcerias conhecidas na segunda metade do século, como a de Deleuze e Guattari – modalidade esta, no entanto, mais rara em filosofia do que na ciência, cujas revistas de prestígio, como a Nature e a Science, publicam o tempo todo papers com dois, três, uma variedade de colaboradores.
Assim, respeitante aos livros ou publicações de múltipla autoria, por vezes às dezenas, os exemplos hoje abundam por toda a parte, dispensando-me do ônus da escolha ou da necessidade de dar um ou mais exemplos, em nossos dias. Para ficarmos só com casos consagrados de décadas passadas ou mesmo de séculos precedentes, o exemplo mais famoso talvez ainda seja a Encyclopédie, de Diderot e d’Alembert, o maior best-seller do século XVIII, com várias dezenas de colaboradores e inúmeras vezes reeditada. Outro excelente exemplo, no século XX, é o Manifesto do Círculo de Viena, que veio a lume em 1929, com as assinaturas de Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Kurt Gödel, Hans Reichembach, Otto Neurath e outros nomes não menos ilustres, incluindo físicos, e ao qual está associada, como a sua maior realização, a Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada: precisando, trata-se de uma obra a várias mãos, fruto de um projeto ambicioso, constituída de dois volumes e levada a lume com o propósito de difundir o modelo fisicalista da ciência, cuja publicação foi iniciada nos EUA, em 1938, e só concluída em 1969, reunindo um total de 19 colaboradores, entre os quais Bertrand Russell e Niels Bohr, e 25 anos após a morte de seu idealizador, Otto Neurath.
E assim, acerca da colaboração em rede, corrente em ciência e só recentemente mostrando a que veio, na filosofia, como evidencia o caso de Derek Parfit, não muito citado entre nós e hoje falecido. Vale dizer, aquele que foi uma das últimas eminências de Oxford, que só depois de discutir amplamente Climbing the Mountain, na rede de colegas, estudantes e amigos, habitués de seus seminários, publicou sua primeira versão em 2006. E finalmente, ao dar-lhe a última demão, publicou sua versão definitiva, quando mudou o título para On What Matters, vindo a lume em 2011 (v. 1-2) e 2013 (v. 3), depois de anos e anos de discussão. Trata-se de mais um exemplo de autoria múltipla, como aliás o próprio Parfit reconhece e agradece, fornecendo os nomes.
Contudo, quem vai falar e mesmo vai se importar com isso, em filosofia e mesmo em literatura, se tudo não passa de um hipertexto, como a tradição filosófica com suas recorrências e dezenas de gênios criadores – e, portanto, como obra coletiva, sedimentada em correntes de ideias e escolas de pensamento –, e como também é o caso e nos mostra a literatura, mesmo ao considerar o indivíduo e o gênio criador? Precisamente, em literatura e em outros campos das artes, como negar que tudo não passa de um hipertexto, ao ter em vista o exemplo de Shakespeare? Sim, Shakespeare, em quem todo mundo reconhece a genialidade, de cujas 37 peças que compõem o First Folio, de 1623, nada menos do que 33 resultam da combinação de fontes diversas, aproveitando as comédias de Terêncio, as tragédias de Sêneca e relatos e crônicas de historiadores medievais, sendo, das 37 obras, apenas quatro rigorosamente de sua autoria? E, com efeito, repito, quem vai se importar com isso e dizer que Shakespeare foi um plagiador e um campeão do alheio? (CASTRO ROCHA, 2017, p. 139-140).
Continuando com as considerações preliminares, passo às ideias correlatas de “criação” e de “invenção”, tão essenciais no campo das artes e da literatura, assim como em filosofia, com o culto das mentes privilegiadas e do gênio criador dos grandes filósofos, advindo do romantismo alemão a que tanto a ideia de autoralidade e filosofia autoral quanto a de originalidade e de filosofia original estão associadas. Pessoalmente, desde quando passei a me entender como gente, na adolescência, eu tinha muita simpatia com respeito à ideia de criação no sentido forte, como nas artes, com as ideias de novo e de ineditismo, na linha de frente. Mais tarde, eu me vi mais e mais desconfiado, por causa da vizinhança com a creatio ex-nihilo, saindo alguma coisa do nada ou de um ponto zero, ao contrastá-la com outras noções em filosofia, como produção e construção, depois de reservar a inventio da retórica para a tecnologia, a creatio para as artes e a descoberta para as ciências.
Recentemente, ao ler o livro de João Cézar de Castro Rocha, que saiu pela É Realizações, com o título para lá de espichado de Culturas shakespearianas – Teoria mimética e os desafios da mimesis em circunstância não hegemônicas, eu me vi forçado a levar em conta o campo semântico das ideias de mimesis e imitatio, com seu potencial de vencer as rivais creatio e inventio em literatura, como no caso de João Cézar, e em filosofia, como em meu caso. Assim, João Cézar de Castro Rocha, ao citar George Steiner e seu livro seminal Grammars of Creation, publicado em 2001, onde faz o inventário das diferentes formas da creatio e recupera a distância que separa dois verbos latinos que a tradição intelectual do Ocidente terminou por apagar, tomando-os erroneamente como sinônimos: invenire, que leva a inventio, e creare, que leva a creatio. Peço a vocês, leitores, licença para citar uma longa passagem do livro de João Cézar que sintetiza as coisas que estão em jogo no campo da literatura, permitindo que eu tire as consequências e faça o translado para a filosofia, ao pensar a questão da originalidade e do pensamento em 1ª pessoa, ligada à autoralidade da filosofia brasileira. Conforme as palavras do autor carioca, apoiando-se no franco-britânico George Steiner:
Criar, do latim creare, é um verbo arrogante que implica produzir o novo no instante mesmo da criação; trata-se da romântica creatio ex-nihilo, no elogio do artista auto-centrado, imune a influências externas. Inventar, pelo contrário, do latim invenire, é um verbo sugestivo [trivial, eu diria], cuja modéstia leva longe, pois significa ir de encontro ao que já há, e, muitas vezes, fazê-lo por acaso. Inventar demanda a existência de elementos prévios, que devem ser recombinados em arranjos e relações ainda inexplorados. (CASTRO ROCHA, 2017, p. 227).
Desse modo, tirando as consequências, ao voltarmos ao exemplo de Shakespeare, as “culturas shakespearianas” – como as nossas, em que prevalecem a mimesis e a imitatio, frente à chamada civilização ocidental, recombinando o original em novos arranjos – “pertencem ao domínio da inventio” e não da creatio. E prossegue João Cézar, ao concluir o raciocínio, ressaltando a centralidade da inventio da retórica, não por certo – digo eu – a inventio da tecnologia, que sofrerá as limitações da matéria a que se aplica, à diferença da literatura, que tem suas injunções, mas são de outra ordem como obra de pensamento e expressão da subjetividade, não se deixando prender a determinismo algum, nem psíquico, nem físico ou biológico:
A invenção – escreve o crítico – é um dos procedimentos mais importantes da poética da emulação, cujo corolário é a anterioridade da leitura em relação à escrita, e, no caso das leituras não hegemônicas [vale dizer, subalternas, de países periféricos], a centralidade da tradução no desenvolvimento da tradição. Desse modo, aliás, Rubén Dario ‘concebeu seu latino-americanismo: um ser em tradução; uma subjetividade que se constitui no ato de traduzir o universal que se reconhece como alheio a códigos culturais próprios’. Neste ânimo, o poeta-crítico Haroldo de Campos propôs a teoria da ‘transcriação’, segundo a qual o ato de traduzir é, como ele diz, um ato criador. Ou um gesto de inventor, como proponho, pois o tradutor parte sempre de um texto prévio. (CASTRO ROCHA, 2017, p. 227-228).
Penso que é o bastante, devendo eu me limitar a fornecer alguns exemplos que ilustrem as ideias do crítico literário carioca, exemplos da literatura, com efeito, e em seguida proceder à expansão de suas considerações luminosas para outros campos da arte e da filosofia.
Inicialmente, exemplos da literatura, fornecidos por João Cézar:
[i] Haroldo de Campos, ao traduzir o poema “Blanco” do escritor mexicano Octavio Paz, fazendo da sua tradução uma verdadeira “transdução” e “transcriação” (CASTRO ROCHA, 2017, p. 228).
[ii] Jorge Luís Borges, em seu Um ensaio autobiográfico, ao falar de seus primeiros escritos, quando “[...] tentava imitar diligentemente Quevedo e Saadra Fajardo, dois escritores barrocos do século XVII que, [à] sua maneira espanhola, rígida e árida, procuravam o mesmo estilo da prosa de sir Thomas Bowne em Urn Burial.” (CASTRO ROCHA, 2017, p. 229].
[iii] E ainda Sergio Pitol, ao falar de Borges e de suas criações em literatura, definindo sua originalidade como a de um plagiário, não muito diferente de Shakespeare, eu diria, que foi o campeão e o maior de todos: “Gustavo Londoño sempre insistia que Borges era um herdeiro direto de Tchekhov. A mim parece que não. Borges inventou uma literatura própria, transformou nosso idioma apoiado nos modelos clássicos, quase todos ingleses. Leu o Quixote em inglês, como Homero e muitos outros clássicos.” (CASTRO ROCHA, 2017, p. 226-227).
Donde a conclusão do crítico carioca acerca de Borges e, indo além do argentino genial, acerca da centralidade da imitatio nas produções literárias, levando-o a relativizar a ideia de originalidade, da qual se pode dizer que se tem alguma coisa a ver com a criação, não é da ordem da creatio ex nihilo. Em vez, é da ordem de uma inventio, como prefere o autor, sem esquecermos que Borges ele mesmo falava de criação, deixando a creatio ex nihilo bíblica e romântica de lado.
E, voltando a João Cézar e suas considerações sobre o argentino, tudo somado “[...] é como se Borges fosse tão mais original quanto mais imitasse a tradição. A contradição é apenas aparente – você [leitor] já sabe. O avesso desse paradoxo, tem nome e sobrenome: poética da emulação.” (CASTRO ROCHA, 2017, p. 227). Emulação, ou seja, digo eu, imitação, não como cópia servil e atitude escrava ou subalterna, mas como competição ou esforço para igualar e superar outrem. É este o ponto que está em jogo e ao qual vou voltar, na sequência.
Passando para a pintura, onde as noções de criação, de imitação e de emulação são centrais, e não menos do que na literatura, ao colapsar a ideia de obra única e criação ex nihilo, o exemplo que eu gostaria de explorar nos vem de Picasso, cujo potencial para repensar a estética da criação artística eu antevi, ao visitar em setembro uma exposição sobre o pintor catalão genial, ao exibir peças inéditas em poder de sua filha mais velha e finalmente trazidas a público no Museu Picasso, em Paris. Trata-se de telas, de variações e esboços de telas e mais telas, na origem telas ou portraits de outros pintores, cujas obras Picasso amava de verdade, como Velázquez, e tentava apropriar-se delas de algum modo, tornando próprio o alheio, um plagiário, portanto, como Borges e Shakespeare – mas quem vai se importar com isso e defenestrar Picasso?
Assim, na exposição, eu me deparei com esboços e variações sobre o belíssimo Déjeneur sur l’herbe, de Manet, cobrindo o extenso período que vai de 1954 a 1962, dos quais resultaram três quadros de Picasso, doados por ele ao Museu, em 1979. Cópias, em suma, mas com sua assinatura, merecendo os seguintes comentários do curador da exposição, num pequeno quadro-notícia afixado ao lado de um dos esboços, a título de guia para os/as visitantes, contextualizando a obra, ao passar da França e dos impressionistas franceses para a Espanha:
Entre janeiro de 1959 e 1962, Picasso realiza estadas no castelo de Vauvenargues, imponente casa senhorial situada ao pé da montanha Santa Vitória perto de Aix-en-Provence. As paisagens circundantes tornadas célebres por Paul Cézanne [que vivera na região, ele mesmo tendo realizado vários esboços da montanha famosa, julgando sua apreensão e pintura impossíveis] lhe pareceram [a ele Picasso] como um quadro propício à criação. Este contexto favorece o prosseguimento de um trabalho conforme [d’après] os mestres dos quais testemunham El bobo [de Velázquez, que dará lugar ao de Picasso, de 1959, em cujo título ele acrescenta o nome de Murillo] ou o caderno de estudos consagrado ao Déjeneur sur l’herbe de Edouard Manet. Este “período Vauvenargues” está marcado, segundo as palavras do historiador de arte Maurice Jardot, pelo retorno a “uma Espanha interior, ardente, grave, simples e franca” da qual “o tom, o timbre, a impostação da voz são os exemplos na obra”. A paleta de Picasso se compõe então com as cores de seu país natal onde os vermelhos, os amarelos, o verde-garrafa e o negro dominam.2
Concluindo esse longo périplo, chego finalmente à filosofia, a começar pelo mainstream, digamos assim, tomada em sua atopia e expressão universal, comum a várias culturas e épocas históricas. De minha parte, entendo que a antiga rainha do saber, ao longo de mais de 2500 de sua história, com a experiência do filosofar variando no tempo e no espaço, conservou em suas grandes linhas aquilo que poderíamos chamar, em uma de suas componentes, de kanon: termo que em grego significava régua ou vara com que se mediam as coisas, cuja etimologia se viu acrescida depois das ideias de norma ou regra. E paralelamente, em outra componente, conservou para designar a práxis filosófica, em sua interioridade, dizendo respeito a convicções, ideias e valores impressos na alma – ou, antes, na mente, se se preferir –, aquilo que poderíamos chamar com Platão de ethos, associado a conduta ou a comportamento e consistindo numa atitude.
Por um lado, kanon do gênero literário e da expressão filosófica, com a ideia de obra na linha de frente, autorizando-nos a falar de clássicos da filosofia e da tradição filosófica, com Platão e Aristóteles encabeçando as listas, em meio à variedade de expressões e à exigência de alargar e reatualizar o kanon, ao incluir Foucault, Heidegger e Wittgenstein – situação que não é muito diferente da literatura, como mostrou Harold Bloom, em seu livro seminal (BLOOM, 1994). Nele o grande crítico norte-americano põe põe Shakespeare à testa da literatura ocidental, no mesmo passo em que abre a lista das obras canônicas às inúmeras variantes ou variações modernidade adentro, em torno desse núcleo prestigioso e paradigmático, ao incluir Marcel Proust, p. ex., resultando num crescendo, o qual não tem fim ou ponto de paragem. Tal situação não é muito diferente, como mostram outros estudiosos dos departamentos de criação das megacorporações da indústria cultural, que zelam pelos cânones de seus personagens dos cartoons e do cinema, como os de Batman, de Coringa e dos heróis da Marvel, como Hulk, o Homem de Ferro e a Mulher-Aranha, que podem variar, senão não há histórias e eles são esquecidos, mas jamais vazar o kanon ou pôr em xeque e abandonar o núcleo duro do script e do personagem (STRIPHAS, 2015).
Por outro lado, ethos do filósofo e da atitude de filosofar em suas várias modalidades e expressões: frente ao mundo e à realidade circundante, como nos mostram os gregos, que põem o espanto ou o estranhamento na origem do filosofar e da filosofia; frente às imperfeições da natureza e ao mundo humano decaído, com o empenho de salvar as almas, a sua própria e a dos outros, em busca da perfeição e da realização pessoal na outra vida e fora da ordem do tempo, na eternidade, como nos filósofos medievais; e, ainda, natureza e ordem transcendente à parte, frente ao mundo humano nos planos pessoal e coletivo, em meio a inquietudes existenciais acerca da vida que levamos ou frente às injustiças e distorções dos poderes instalados na sociedade, quaisquer que sejam eles, nos planos micro e macro, como nas filosofias moderna e contemporânea – numa vertente, em busca de experiências mais autênticas, como nos existencialistas, os quais pensavam a filosofia como modo de vida; em outra vertente, em busca de alternativas, com o empenho pessoal de mudar um estado de coisas, clamando pela reforma da humanidade e por mais justiça nas relações humanas neste mundo, como nos iluministas franceses e nos frankfurtianos.
Ora, num cenário como este, não vejo como as ideias de autoralidade e de filosofia autoral, assim como as rivais originalidade e filosofia original – umas e outras com as ideias de criação e ineditismo abrindo alas –, por si sós sejam suficientes para aquilatar os problemas que estão em jogo no tocante às obras filosóficas. Antes de mais nada, obras caracterizadas pela diversidade de gêneros literários, como o tratado, o ensaio e o paper, devendo o estudioso em seu exame recorrer às ideias de tradição e de kanon, em que o novo vem junto com o velho e o clássico ou o canônico com o datado e o anódino. Ademais, no tocante às formas do filosofar como experiência de pensamento e atitude intelectual, caracterizadas por sua grande variedade, não sendo possível reuni-las numa só, ainda que se fale de uma mesma filosofia como forma de pensamento e campo intelectual: numa direção, levando Descartes a falar de meditação e meditação metafísica, com sua filosofia em primeira pessoa; em outra, Kant a falar de pensamento e reflexão, ao distinguir o conhecimento por construção de conceitos, como nas matemáticas, e o pensamento por reflexão sobre os conceitos e, por extensão, as ideias, como na filosofia; em outra, Marx e Sartre falando em filosofia engajada e fusão da teoria e da prática; e em outra, enfim, Heidegger a falar de pensamento meditativo, ao colocar em xeque a tradição filosófica e a própria filosofia, em busca de outra coisa.
Com essas ideias em mente, eu tratei de abrir uma nova frente de pesquisa delineando o escopo da metafilosofia, ou filosofia da filosofia, com o propósito de, por um lado, pensar e dar coerência à diversidade dos gêneros literários e das obras filosóficas, com a ideia de kanon prestando seus serviços, não me parecendo melhor trocá-lo pelos rankings e algoritmos, como já apontei em estudos anteriores (DOMINGUES, 2014, 2015). E, paralelamente, junto com o kanon, como eu venho insistindo desde a publicação de meu livro sobre Filosofia no Brasil (DOMINGUES, 2017), levando as considerações sobre obra e gênero literário à techne e às diferentes technai filosóficas. Por outro lado, pensar e dar coerência às diversidades da experiência do filosofar, abarcando as diferentes atitudes do filósofo frente ao mundo humano e da realidade circundante, com a ideia de ethos/ethei mostrando seus serviços, não menos essenciais.
Dando um passo a mais nessas investidas, ao juntar pensamento e obra, bem como atitude, techne e gênero literário, de olho na história da filosofia e na tradição filosófica em sua longevidade e diversidade, estamos prontos para decidir o que é filosofia, ao fim ao cabo, como experiência intelectual. Trata-se de uma invenção, como na tecnologia, levando o filósofo a reinventar a filosofia ou a roda filosófica dos velhos problemas e soluções? Trata-se de uma criação, como a literatura, levando Montaigne a criar o gênero ensaio e Aristóteles o tratado? Trata-se de uma descoberta, como na ciência, levando o filósofo a descobrir uma ordem das essências escondida na realidade, como Heidegger ao falar da aletheia ou da essência da técnica como uma nova forma de objetivação e desvelamento? Ou será uma produção, senão uma construção intelectual, levando muitos de nós a falar de reprodução e outros de reconstrução, ao ter em vista a recorrência dos problemas e das soluções filosóficas?
É nesse cenário que faz todo o sentido – ao considerar a tradição filosófica e a história de filosofia, com as ideias de logos, kanon, ethos e techne na linha de frente, bem como as ideias de obra e de gênero literário – recorrermos à ideia de filosofia como hipertexto e cocriação coletiva, tendo ao centro e como fulcro o filósofo, pois, sem o filósofo como indivíduo, não há filosofia pessoal nem coletiva como gênero. Esta é a minha proposta: pensar a filosofia como criação do filósofo, ao me juntar, por um lado, a Deleuze, que em conferência de 1987, intitulada “O ato de criação”, fala da filosofia como criação de conceitos e de ideias, as quais ele parece colocar na base ou na origem dos conceitos, pois sem ideias não podemos fazer nada, e ainda ao me juntar a Adorno que, na Minima moralia, parte em defesa do kanon nas produções musicais; por outro lado, mais perto de nós, aqui no Brasil, sem que ninguém tenha feito ainda o kanon da filosofia brasileira, ao me juntar a Flusser, que toma como sinônimas a criação e a liberdade do artista, autorizando-nos a dizer a mesma coisa da filosofia e do filósofo, ao mesmo tempo, de nossa parte, livres das ilusões românticas do gênio criador do artista e do enfeitiçamento das criações ab ovo ou ex nihilo.
Tudo somado, se a filosofia é um imenso hipertexto como gênero literário e tradição intelectual, entrando em sua difusão mestres-escolas, o Herr Professor e o pensador; se a história da filosofia consiste na contínua recorrência e retomada dos problemas e das soluções, em meio a cisões e a disputas sem fim, dando lugar a correntes e escolas de pensamento; se as coisas se passam assim, em suma, nada mais raro do que brotar desse estado de coisas uma via totalmente nova e uma solução absolutamente original. Este foi o caso de Heidegger, o qual, em Ser e tempo, inaugura uma maneira sumamente original de fazer filosofia e trabalhar os problemas filosóficos, em que aparece acotovelado com Husserl e a fenomenologia, mas abrindo um caminho todo seu e absolutamente inédito, ao propugnar a analítica existencial do Dasein. Porém, os Heidegger são raros em filosofia, e mesmo raríssimos – e não bastasse o Heidegger 1 que veio antes e eu prefiro, há o Heidegger 2, que veio depois. Da mesma forma que é igualmente rara, senão impossível, uma criação rigorosamente nova ou absoluta, mesmo no caso de Heidegger, que bebeu em Husserl e aprendeu filosofia lendo os escolásticos medievais, quando mais jovem.
Por isso, todo cuidado é pouco, devendo de nossa parte deflacionar a ideia de criação e falar de criações relativas e mesmo de recriações, senão expansões ou renovações, como os neokantianos frente ao mestre e, no entanto, tendo de seguir outros caminhos, trabalhar novos problemas, como os valores e as culturas, e seguir adiante. Em suma, é isso, com tantas mentes envolvidas e às voltas da tarefa filosófica, inclusive a de difundir e a de ensinar, fazendo da filosofia e da criação filosófica um gradiente que vai do mais ao menos ou do menos ao mais, pouco importa, entrando o mestre-escola, o Herr Professor ou o scholar, assim como o exegeta e o historiador, e ficando o filósofo ou pensador no topo ou no plano mais alto, com nossa reverência e admiração. Contudo, como disse Isaac Newton em carta a Robert Hook, inspirando-se em um dito famoso de Bernard de Chartres, datado de cinco séculos antes: “Se vi mais longe, foi por estar sentado sobre ombros de gigantes.” (Em latim, conforme a fórmula mais sintética atribuída ao filósofo neoplatônico francês: nanos gigantum humeris insidentes). E como foi, aliás, o caso de Heidegger, que teve Husserl antes dele, como foi lembrado.
2 PARADIGMAS E MÉTODOS PARA A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA
Penso que já temos elementos mais do que suficientes para abrirmos o foco da grande angular, expandindo as investigações, ao passarmos para a segunda parte e focalizarmos a filosofia brasileira.
Tal como eu vejo, duas são as ordens de considerações. A primeira, de ordem teórica, em que está em jogo a compreensão global ou a ideia de conjunto acerca do percurso histórico da filosofia em nossas terras e de seus legados, mas com foco nos séculos XX e XXI, como está no título, exigindo que avancemos, a título de hipótese, as tendências ou as linhas de força que nos dariam o fio da meada dos processos em curso, assumidas como paradigma, num sentido próximo de Thomas Kuhn, mas diferente. A segunda, de ordem metodológica, respeitante aos métodos de análise requeridos, ao aliar os métodos metafilosóficos que nos levam à natureza da filosofia como pensamento (logos) e como práxis, ao perguntar pela filosofia da filosofia brasileira, e aos métodos historiográficos da história da filosofia.
A começar pelos paradigmas, eles serão dois em fim de contas, devendo ser coordenados e tensionados, como veremos. De um lado, o paradigma da formação, ao seguir um topos clássico da história das ideias no Brasil, com Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Raymundo Faoro e Antonio Candido, abrindo o caminho nas ciências humanas e sociais, e aos quais vão corresponder na história da filosofia brasileira Cruz Costa e Paulo Arantes – todos eles evidenciando, em suas obras seminais, que as coisas se passaram assim em Terra Brasilis da Colônia até tarde do século XX, quando finalmente o país concluiu sua formação histórico-cultural, em seus aspectos institucional e extrainstitucional, quando a nossa filosofia finalmente atinge a maturidade e entra no concerto da filosofia mundial. De outro, o paradigma da pós-formação, que eu introduzi em meu livro Filosofia no Brasil, para pensar o que sucedeu depois, nas últimas décadas do século XX, depois que o SNPG se consolidou nos anos 90, quando o sistema de doutorado foi implantado e o país, ao cabo de 30 anos, saltou de 4 teses, em 1987, para 226, em 2017.
Desse total, 164 sobre autor (= 3/4), somando 83 teses, com Kant (9), Aristóteles (8) e Rousseau (8) encabeçando as preferências, e um montante de 62 teses temáticas (=1/4) (LUCERO 2019, p. 71). E o que é importante: nenhuma tese em 2017 e em anos anteriores sobre algum pensador brasileiro, evidenciando a persistência do colonialismo epistêmico e cultural em nossos meios, e no mesmo passo bloqueando o caminho que levaria ao surgimento, entre nós, do primeiro filósofo brasileiro genuíno, a um só tempo cosmopolita e enraizado nesta parte do mundo, como Kant na Alemanha. Vale dizer, um filósofo não só dedicado a nossos problemas e à nossa cultura, como já temos e o tivemos no passado, mas com reconhecimento mundial como pensador, à diferença do que ocorre no campo da literatura, das artes plásticas, da música e das ciências humanas e sociais.
Passando para os métodos de análise, com a questão da originalidade ou não das criações filosóficas ao fundo das considerações, a que se soma a nossa própria condição de ex-colônia e de país periférico, evidenciada pelo paradigma da formação, levando à transculturação e transplantação das ideias, com a questão da inserção subalterna e colonização intelectual na linha de frente, teríamos o seguinte quadro analítico:
[i] A postulação da atopia da filosofia, que vai junto com as ideias de universalidade e agora internacional ou transnacional, onde as ideias são discutidas e estão em circulação, numa relação dialógica franqueada em princípio a todo mundo;
[ii] A postulação da inscrição local da filosofia, onde vai sofrer a fricção do meio que a hospeda e em que se enraíza, adquirindo novas cores e feições próprias, inscrição que vai junto com a questão geopolítica e o desnivelamento do movimento das ideias, com a circulação Norte-Norte e seus hipercentros se impondo sobre a Norte-Sul e a Sul-Sul, ao obliterar a Sul-Norte, desfazendo a isonomia e quebrando a reciprocidade;
[iii] A exigência de ajustar as duas postulações e considerar a dupla inscrição universal e local da filosofia, nas perspectivas dos países periféricos e centrais, para aferir a originalidade ou não das produções filosóficas, numa situação de hegemonia e domínio ou de colonização intelectual e epistêmica: ontem, na era moderna, como foram os casos da Alemanha e dos Estados Unidos frente à França, a Inglaterra correndo sozinha; hoje, como a França frente à Alemanha e a Alemanha junto com a Inglaterra frente os Estados Unidos, que fazem a globalização da filosofia e o debate filosófico mundial; e como foram e são os casos das ex-colônias e dos países periféricos frente à França, à Alemanha, à Inglaterra e aos Estados Unidos.
Foi assim – ao me ver desafiado a levar a cabo as novas análises requeridas em complementação ao meu livro Filosofia no Brasil – que eu modelei cinco atitudes possíveis de nossa intelectualidade filosófica tomada in extenso, em sua diversidade, frente à matriz europeia da tradição filosófica ocidental, abrigando num mesmo arco temporal: desde o europeu aqui atuante, como a Missão Francesa em São Paulo, até diferentes extrações da intelligentsia brasileira, tendo como escopo os séculos XX-XXI, com a filosofia acadêmica na linha de frente, mas não tão só ou exclusivamente. Ou seja, as atitudes de:
[i] Catequese e missão civilizatória, já presente no Brasil-colônia e replicada no professor europeu aqui atuante, no século XX, como na Missão Francesa, em São Paulo ou no Rio de Janeiro, podendo resultar numa transmissão acrítica da tradição filosófica, o mais do mesmo, ou na propagação das novidades dos modismos intelectuais;
[ii] Alinhamento e reverência, como contraparte da primeira atitude e marca de grande parte de nossa intelectualidade, ao internalizá-la, como no caso do especialista disciplinar, hoje uma legião em nossas universidades, imperando o mais do mesmo e a transmissão acrítica da tradição, sem considerar o contexto brasileiro;
[iii] Assimilação e independência crítica, como contraparte da segunda atitude e visada como sinal de maturidade intelectual e típica do filósofo genuíno, acarretando a possibilidade de recriação original das ideias ou sua transmutação, ao passar de um contexto a outro, como Benedito Nunes, ao tratar da obra de Clarice Lispector;
[iv] Apropriação ideológica e instrumentalização política, à esquerda ou à direita, levadas a cabo mediante a fusão do pensamento e da ação e vistas como próprias do filósofo intelectual público, com os riscos que a atitude instrumental implica ou acarreta, requerendo a mise-à-distance para resguardar as diferenças de atitude e engajamento do intelectual e do político, como no caso de Marilena Chauí, ao tratar do integralismo e do autoritarismo brasileiros;
[v] Suspeição, repúdio e defenestração da matriz europeia e ocidental, como no pensamento decolonial, com as distorções e as implicações que lhes são próprias, ao estabelecer a equivalência entre “lugar epistêmico” e “lugar social de fala”, atitude já presente há algumas décadas nas ciências humanas e sociais e tendo chegado à filosofia de nossas terras em anos recentes, levando ao insulamento das agendas identitárias ou então à sua exotização: à exotização do novo e do particular ou local, em suma.
Este ponto não poderá ser desenvolvido no presente artigo, devendo eu concluir as pesquisas em andamento nos próximos anos e então publicar os resultados em novo livro de ensaios, ainda sem data para sair, mas a cujos resultados parciais o leitor poderá ter acesso já em 2023, em dossiê especial sobre o assunto organizado pela revista Aurora.
CONCLUSÃO
Voltando à Introdução, com o propósito de sumariar os resultados das investigações desenvolvidas até aqui, penso que eles são de três ordens.
Antes de mais nada, no plano mais geral da metafilosofia e sua associação com a história, em sua dupla vertente da história das ideias e da história intelectual, o principal resultado consistiu em pavimentar um caminho para a argumentação filosófica, em que a análise das ideias e a clarificação dos conceitos e dos termos empregados, em atenção ao jargão técnico da filosofia, conquanto necessárias e fundamentais, não são, no entanto, suficientes e decisivas para clarificar e determinar a filosofia como práxis e fenômeno histórico-cultural: para tanto, além da argumentação lógica e linguística, em torno de conceitos e vocábulos, será preciso recorrer à argumentação contextual e histórica, mediante a consideração de contextos que variam e a introdução de hipóteses sobre o devir historial, incidindo sobre realidades e processos.
Por seu turno, ao sumariar os resultados específicos a que eu cheguei, no presente artigo, ao levar a cabo a vertente metafilosófica da pesquisa, com a análise conceitual no primeiro plano – donde a atenção especial devotada ao jargão técnico, com os vocábulos gregos logos/logoi, ethos/ethei, techne/technai e kanon/kanonis à testa das análises realizadas, com os termos gregos deixando claro se tratar de um uso eminentemente técnico – penso que o aporte mais significativo e capaz de iluminar as discussões opacas e infindáveis sobre a natureza da filosofia universal como gênero e as filosofias nacionais como caso ou modo, consistiu na distinção conceitual entre [i] a atopia da filosofia e sua inscrição na ágora transnacional e [ii] a heterotopia da filosofia e sua inscrição geográfica e histórica local. E o que é importante: ponto que eu não pude desenvolver, ao considerar a filosofia brasileira, o claim da dupla inscrição da filosofia nacional evidenciando que distinção não significa separação, podendo haver linhas paralelas ou combinadas.
Por um lado, o scholar ou especialista disciplinar que inscreve a filosofia e sua práxis individual na ágora transnacional e transcultural, participando de corpo inteiro do debate internacional das ideias, com a cabeça no Hemisfério Norte e fazendo home office no Brasil, como durante a pandemia. Por outro, o claim da inscrição local da filosofia, como no pensamento decolonial, de costas para a tradição filosófica, considerada racializada e eurocêntrica, ou ainda o claim da dupla inscrição local e universal da filosofia, como nos scholars de horizontes largos e definidos, em minha taxionomia acima, a terceira, como pensadores autônomos e independentes, a saber: aqueles que assimilaram a tradição ocidental (assimilação crítica) e, no mesmo passo, incluíram o Brasil em suas preocupações e agendas, como Benedito Nunes frente às obras de Heidegger e de Clarice Lispector, como foi lembrado.
E, por fim, ao sumariar os resultados específicos da vertente histórica da pesquisa, ao estabelecer o liame entre a história da filosofia e a história intelectual, acarretando a necessidade, a um tempo teórica e empírica, de introduzir as hipóteses unificadoras que vão explicar e dar sentido aos processos em curso ou já consumados, penso que o aporte mais significativo consistiu na postulação do paradigma da formação (hipótese 1) e do seu par, paradigma da pós-formação (hipótese 2). Vale dizer: paradigmas introduzidos ex hypothesis para pensar etapas diferentes de nossa história e com o potencial, por lidar com coerções ou forças da realidade e não tão só com coerções lógicas do pensamento, de introduzir nas análises lógicas e históricas o viés geopolítico.
Ou seja, na esteira do paradigma da formação, ao perguntarmos pelo modo de inserção de nosso país, e da filosofia brasileira especificamente, no concerto das nações em escala global ou mundial: uma inserção dependente e subalterna, ao fim e ao cabo, e isto desde a colônia, em razão do pacto colonial, depois neocolonial, resultando em verdadeiras barreiras estruturais que bloquearão o fluxo das ideias Sul Norte, em favor do livre curso Norte Sul. E numa outra perspectiva, na esteira do paradigma da pós-formação, com o país mantendo com o resto do mundo uma relação de interdependência, ainda que não exatamente horizontal, por causa da geopolítica, a própria disseminação da especialização disciplinar – com o scholar na linha de frente, ao dar origem a um novo mandarinato, em plena taylorização e “paperização” do conhecimento, imperando nas produções intelectuais o mais do mesmo – terminará por bloquear o conhecimento novo, levando à morte do pensamento e, consequentemente, impedindo o surgimento do filósofo genuíno como pensador, no Brasil e por toda parte.
Todavia, esses resultados, conquanto significativos – como no caso das hipóteses da formação e da pós-formação, já assentadas e com lastro nas ciências humanas e sociais, com os processos históricos evidenciando tanto sua fertilidade quanto sua plausibilidade, inclusive na filosofia –, são ainda provisórios, não passando de ilações e suposições, e sua ratificação ou não deverá aguardar a conclusão da pesquisa.
O próximo passo vai consistir em fazer o teste da abordagem que está sendo proposta e seus questionamentos, incluído o questionamento da ideia de filosofia autoral, brasileira ou não, ao se aplicar às cinco atitudes de nossa intelectualidade, já referidas, a começar pelo europeu aqui atuante, frente à matriz europeia da tradição filosófica ocidental, tendo como fulcro as ideias de alinhamento e reverência, autonomia intelectual e assimilação crítica, e repúdio e defenestração. E o que é importante: ideias e atitudes cujo exame vai requerer a incorporação de novas categorias analíticas para além da clivagem autoralidade/originalidade e, mesmo, para além do par criação/repetição ou imitação, havendo um gradiente de elos intermediários, combinações, arranjos, componentes e possibilidades interposto entre umas e outras.
Contemporary Brazilian Philosophy and the Authorialship Issue: Paradigms and Methods
Abstract: This paper focuses on Brazilian contemporary philosophy and aims to introduce [i] the conceptual tools on the philosophical-theoretical plan, emphasizing the problem of the nature of Brazilian philosophy and taking the ideas of authoriality / originality as a starting point; [ii] the analytical tools on the epistemic-methodological plan, when associating the metaphilosophical methods, operating and giving expression to the philosophical ratio, and the intellectual history methods, when operating and giving expression to philosophy's historical realization and the philosophical intelligentsia. The discussions field is that of metaphilosophy, in the sense of philosophy of philosophy, when designing an argumentative course where metaphilosophy, history of philosophy and intellectual history go together. We will then have, in the intellectual history branch, in terms of the hypotheses to operate the historical processes, the formation and post-formation paradigms, and in the metaphilosophical branch, with focus on the ethos, in order to distinguish the different stances taken towards the European matrix in the XX-XXIst centuries, the attitudes of: alignment and reverence; assimilation and critical independence; ideological appropriation and political instrumentalization; suspicion and defenestration.
Keywords: Contemporary Brazilian philosophy. Metaphilosophy. Intellectual history. Formation and Post-formation paradigms. Attitudes towards the European matrix of philosophy.
Referências
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Recebido: 12/11/2022
Aceito: 20/11/2022
1 Professor titular aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. Vinculado ao PPG em Filosofia como pesquisador e docente voluntário. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8252-020X . E-mail: domingues.ivan3@gmail.com.
2 De fato, Picasso não foi o único e com certeza não será o último grande pintor a retomar e “comentar” o quadro famoso de Manet, datado de 1863. Antes dele, houve nada menos do que Monet, com direito a vários esboços e a uma tela principal, belíssima, datada de 1866 e jamais acabada, que se encontra no Museu Pouchkine, em Moscou, enquanto outros esboços que faziam parte dos estudos podem ser avistados no Museu d’Orsay, em Paris. Como Picasso não os considera, ele que voltou ao tema cerca de 100 anos depois, decidi deixá-los à margem, para não encompridar o assunto.
Fica aqui apenas o registro, lembrando que o ideal é o leitor comparar as imagens dos três grandes mestres da pintura. Para tanto, selecionei, nos endereços abaixo, uma imagem atinente a cada um deles, dentre as várias possíveis, sabidos são seus numerosos esboços e telas.
Ver, respectivamente: Le Déjeuner sur l'herbe - 1863 (Édouard Manet) https://pt.wikipedia.org/wiki/Le_D%C3%A9jeuner_sur_l%27herbe#/media/Ficheiro:%C3%89douard_Manet_-_Le_D%C3%A9jeuner_sur_l'herbe.jpg; Le Déjeuner sur l'herbe - 1866 (Claude Monet)
https://www.artble.com/artists/claude_monet/paintings/dejeuner_sur_l'herbe; Le Déjeuner sur l'herbe d'après Manet, 1960 (Pablo Picasso) https://www.artsy.net/artwork/pablo-picasso-le-dejeuner-sur-lherbe-dapres-manet-luncheon-on-the-the-grass-after-manet