A moral nas técnicas de memória: Nietzsche e os comentários sobre a mnemotécnica de Tomás de Aquino


Adilson Felicio Feiler1


Resumo: A investigação apresenta uma hermenêutica da memória nos textos da maturidade de Nietzsche, à luz das contribuições de Aristóteles e Tomás de Aquino. Na Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral, Nietzsche introduz a influência que a memória exerce sobre a capacidade de reflexão e de ação. O procedimento mnemotécnico que o filósofo alemão analisa é o comentário de Tomás de Aquino sobre a reminiscência de Aristóteles. O aquinate identifica a ordenação daquilo que se quer, o investimento do espírito, a meditação frequente e a tomada da cadeia de pendências como pontos fundamentais para a atividade da memória. E, nesses pontos, Nietzsche concebe a moral como componente-chave no processo de memorização. Serão analisadas algumas aproximações e distanciamentos entre as teses nietzschiana e tomista, e em que medida a moral opera, no sentido de detectar a atividade da memória.


Palavras-chave: Memória. Técnica. Moral. Nietzsche. Tomás de Aquino.


INTRODUÇÃO

A memória constitui um dos grandes arcabouços, pelos quais a humanidade vem dando sequência a seus projetos, seja pela simples necessidade de recordar nomes, como apresenta a fábula de Simônides2, seja pela busca de organização e estabelecimento lógico de ideias, como constituído ao longo da modernidade ocidental. E, nesse período, tem destaque a reflexão que tanto Aristóteles, em seu texto A memória e a reminiscência, como Tomás de Aquino, em seu Comentário sobre a memória e a reminiscência de Aristóteles, fazem sobre essa instigante temática que marca a cultura ocidental. A relação entre memória e reminiscência é vista como fundamental para o processo de construção do conhecimento. Nesse processo, a memória, entendida enquanto capacidade de lembrança de evocação do passado, passa a atuar como propósito de reminiscência.

Aristóteles, em sua Teoria do Conhecimento, reconhece o valor que tem o processo abstrativo, que se dá mediante os dados dos sentidos. A memória é, segundo Tomás de Aquino, um dos sentidos internos, uma potência do intelecto que ordena todas as formas sensíveis, para guardar o passado no intelecto, no intuito de, com domínio sobre o presente, ter a possibilidade de modificar o futuro. Trata-se, pois, de um mecanismo de controle, que passa pelas diferentes faculdades até o intelecto. A memória atua como elemento ordenador desse controle de todas as esferas, tanto as do sentido como as do intelecto. Tomás reconhece, na memória, a potência para o inesquecível, o caminho para a capacidade de retenção de dados e informações. A reminiscência é a capacidade de recordação, uma potência, mediante a qual se aprende e conserva. É uma das condições para que a memória possa existir é o auxílio de imagens que conectam a memória com o conhecimento sensível, a memória guarda as imagens sensíveis. Desse modo, o conhecimento, pela constituição do conteúdo na mente, tem na memória um fator fundamental. A memória, como fator ordenador, compreende, assim, um conjunto de diversos elementos envolvidos, como o criar, o lembrar e o esquecer, que estão envolvidos em todo o processo de construção do conhecimento.

Enquanto Aristóteles proporciona, em seu pensamento, um caminho de reflexão que envolve as várias conexões mentais para subsidiar as funções superiores da mente e, entre elas, a memória, como fundamental para a reformulação da reminiscência, Tomás de Aquino segue essas sendas, aprofundando o papel da memória na construção do desenvolvimento do ser humano, bem como o papel que tem a consciência, nesse processo. E, quando se trata de consciência, entra a dimensão do que se recorda, do que se deve recordar, assim como do que se deve esquecer. Desse modo, Nietzsche, referenciando Tomás de Aquino, apresenta a visão da beatitude dos beatos como recordação da qual resulta maior prazer.

Ora, se há algo que não se deve esquecer, há, pois, uma técnica de memória, e esta prescreve o que se deve esquecer: os espetáculos profanos e jamais o sangue derramado pelos mártires cristãos. Por essa razão, Nietzsche, ao realizar essa referência às técnicas de memória em Tomás de Aquino, constata nelas a presença da moral, a qual prescreve o que se deve esquecer e o que não se deve. Mediante essas técnicas de memória, não se tem como objetivo primeiro e fundamental o processo de construção do conhecimento, pelo empenho das diversas conexões mentais envolvidas nas funções superiores da mente, mas, acima de tudo, veicular, pela memória, como uma das funções mentais superiores, um conjunto de imagens, lembranças, sinais que apontam para o valor do que é bom, a saber, a imagem dos mártires cristãos. E, desse modo, leva-se a rejeitar imagens, lembranças, sinais do que é mal, a saber, os espetáculos pagãos.

A presente investigação se propõe avaliar em que medida as técnicas de memória, como foram concebidas por Tomás de Aquino, uma vez depuradas da moral e da razão, servem de veículo promotor da afirmação da vida, tal como concebido por Nietzsche. Para tanto, o itinerário empregado se inicia com a apresentação e a problematização da memória, enquanto fator de ordenação da vontade, a razão, que se depreende das análises tomistas, frente à qual se pergunta: o que se quer reter na memória? Esse primeiro movimento se intitula: “A memória e a ordenação da vontade que quer.”

Na sequência, mediante o procedimento genealógico nietzschiano se atende a considerar qual o papel da moral sobre o procedimento da vontade que não quer esquecer. Nesse movimento, pergunta-se: o que se deve querer? O capítulo se intitula “O papel da moral sobre a vontade que não quer esquecer o que se deve querer.” E, finalmente, é analisado, num único movimento, o papel tanto da moral que prescreve como da razão que ordena, todo o processo mnemotécnico, diante do qual se pergunta: “O que não se consegue não querer? Este se intitula “A moral como ordenadora do processo mnemotécnico: o que não se consegue não querer.”


1 A MEMÓRIA E A ORDENAÇÃO DA VONTADE: O QUE SE QUER

Quando Nietzsche, referindo-se a Tomás de Aquino (GM/GM, I, 15, KSA, 5.284)3, frisa que “Os abençoados no reino dos céus verão as penas dos danados, para que sua beatitude lhes dê maior satisfação”, está acentuando um aspecto fundamental no processo de memorização, o qual o próprio Tomás de Aquino (I, 450 a9, p. 189)4 reforça, nestas palavras: “Memória, no entanto, e o que é do inteligível, não existe sem uma imagem. Portanto, isto pertencerá à parte intelectiva da alma por acidente, mas primeiro pela parte sensitiva dela.” A memória tem na experiência sensitiva a sua base fundamental5. Desse modo, aquelas imagens, referidas por Nietzsche, dos passos dos danados, são experiências sensíveis fundamentais para que a memória se constitua. E essas imagens são ordenadas, num segundo momento, pela inteligibilidade, pois, dessa maneira, aqueles, considerados abençoados, podem extrair uma lição da imagem sensitiva, recolhida pelos sentidos: a de fazer com que sua beatitude resulte em maior satisfação. Nesse segundo momento, é evidente a operação da razão. E Nietzsche segue, nesse mesmo aforismo, afirmando:

Mas restam outros espetáculos, aquele último e perpétuo dia do juízo, aquele dia não esperado pelos povos, dia escarnecido, quando tamanha antiguidade do mundo e tantas gerações serão consumidas num só fogo, quão vasto será então o espetáculo! Como considerarei! Como viverei! Lá me alegrarei! Lá exultarei, vendo tantos e tão grandes reis, de quem se dizia estarem no céu, gemendo nas mais fundas trevas. (GM/GM, I, 15, KSA, 5.285).


O filósofo alemão apresenta a experiência da visão de espetáculos que mostram reis e outros poderosos do mundo sendo castigados pelo fogo. E, dessa visão, o seu resultado e a ordenação intelectiva, que produz como lição, são o deleite, o riso, a alegria, por estar sendo cumprida a justiça divina. Isso, por sua vez, de acordo com a leitura de Claudia Crawford (1985, p. 01), “[...] leva à inconsciência reativa que é definida por traços mnemônicos.” Tal inconsciência reativa é uma espécie de inversão da direção da força, ou seja, um agir, um operar para trás6. E, nesse operar para trás, a razão atua juntamente com os sentidos, motivada pelas técnicas da memória, as quais condicionam a se recordar imagens determinadas por uma imputação externa.

De acordo com a compreensão tomista de memória, o intelecto, a razão, ou melhor, a razão intelectiva não vem separada dos sentidos: “[...] sempre que a memória atua, isto acontece sempre, ao mesmo tempo, com os sentidos, que tem visto ou ouvido ou aprendido esta coisa antes. O antes e o depois, no entanto, estão no tempo.” (AQUINO, II, 450 a18). Como visto, a memória opera, par e passo, com os sentidos, e isso mediante uma experiência deste efetuada pela visão, pela audição, pelo intelecto, dentro de um antes e depois, no tempo, portanto, dentro de uma cultura. Por essa razão, Charles Birgham (2007, p. 39) define a mnemotécnica como “[...] um conjunto de práticas de memória cultural.”

Uma vez experimentado algo, mediante os sentidos, poderá ser rememorado em tempos consecutivos que sucedem aquele da experiência inicialmente realizada como Nietzsche (Br/Cr am Heinrich Köselitz de 10 de dezembro de 1888, 1182, KGB, 8.516) mesmo experiencia e testifica, nesta carta a Köselitz: “Esse é um famoso começo, que as pessoas dizem ser difícil... Não só está tudo certo, mas também é dito de forma excelente – a memória do Conde Gobineau7 e o sotaque francês em geral é um golpe de mestre.” O ardil da memória, tal como Nietzsche, nessa carta, associa a um célebre escritor francês, bem como ao próprio sotaque francês, apresenta-se como táticas indeléveis, em face das quais não há como escapar.

Trata-se de uma experiência que excede a inteligência e os próprios sentidos para se ligar aos afetos, de um estado que carrega a marca do tempo. Ou seja, esse estado consiste numa experiência que se vive num dado momento ou instante e que carrega todo um lapso de tempo passado. Desse modo, o que se vive no atual instante é pleno, pois se conjugam todos os resíduos de experiências compreendidas num dado espaço de tempo. Os afetos e o tempo constituem uma unidade múltipla e plena. Esse espaço de tempo, compreendido como unidade plena e instantânea, se caracteriza, conforme a leitura de María Susana Paponi (2014, p. 21), como

[d]esgarramento, exílio, fora de si, máscara, instante, acontecer, imergir de novas formas, novas forças, pregas, despregas e repregas que não dão lugar a novas conexões, logo, criação de mundos que não são predetermináveis, nem previsíveis e – como no tempo linear da história da filosofia – senão Vontade de Poder, impulso vital, a vida constantemente exposta ao múltiplo, ao resguardo do não perecer novamente às mãos do Uno. (PAPONI, 2014, p. 21).


Aristóteles acentua esses dois aspectos, quando caracteriza a memória, a saber (I, 44b, p. 53)8: afecção e tempo: “Memória é, por isso, nem Percepção nem Concepção, mas um estado ou afeção de algum destes, condicionados pelo lapso de tempo.” São esses dois componentes da memória; a afecção e o tempo, que também Tomás de Aquino (I, 449 b24, p. 183) acentua, em seu comentário sobre memória e recordação: “Por isso, há uma coisa chamada memória, e isto não é nem sentido, nem opinião, mas com algum destes há um hábito ou uma afeição, uma vez que o tempo passou.” Na compreensão tomista, o hábito é uma espécie de afeição que recolhe todo um lastro de experiências passadas, as quais ficaram marcadas profundamente na vida de quem as realizou.

Por isso, a memória possui uma compreensão que excede os sentidos, bem como a união de algum juízo sobre estas, para ligar-se à noção de afeição, que, por sua vez, aponta para uma convicção, atitude esta própria de quem tem fé: “[...] a fé nos oferece muito mais – [...] coisas muito mais fortes, graças à Redenção.9” (GM/GM, I, 15, KSA 5. 284). A fé excede o âmbito da opinião, porque o que permanece no âmbito da opinião permanece apenas uma mera opinião, ao passo que aquilo que toca os afetos marca de maneira muito mais determinante toda a experiência vivida: “[...] os sentidos já não estão na história, senão na vontade.” (PAPONI, 2014, p. 20). Nesse sentido, memória é aquilo que passa pelos afetos, mediante os quais se produz uma relação de íntima profundidade, permitindo que tudo o que se viveu, num determinado lastro de tempo, não venha a se apagar.

E quando se trata de afetos, avizinha-se de outro tema importante, que é a vontade. Pela vontade, não apenas não se esquece de tudo o que se viveu, mas, mais que isso, não se quer esquecer. A vontade ativa uma série de forças capazes de reter experiências vividas e que se traduzem em um tempo que não é mais passado, porém, instante pleno. Esse segundo movimento da vontade é ilustrado através de uma referência que Nietzsche (GM/GM, I, 15, KSA, 5.285) faz sobre o modo pelo qual se impede a vontade de trazer experiências do passado para a memória: “[...] querendo-se ouvir o mesmo num tom mais forte, da boca de um triunfante Pai da Igreja, por exemplo, desaconselhando aos seus cristãos as volúpias cruéis dos espetáculos públicos, mas por quê? ‘Pois a fé nos oferece muito mais’ – diz ele.”

Nietzsche recolhe, nessa passagem, aqueles elementos que tanto Aristóteles como Tomás de Aquino apresentam em citações acima comentadas: a afeição e o tempo. A afeição que despertam os espetáculos públicos, experimentados em algum tempo passado e que permanecem profundamente marcados na vida daqueles que as viveram, como seriam cenas circenses, teatros e outras manifestações públicas:

[...] o empalamento, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos (o “esquartejamento”), a fervura do criminoso em óleo ou vinho (ainda nos séculos XIV e XV), o popular esfolamento (“corte de tiras”), a excisão da carne do peito; e também a prática de cobrir o malfeitor de mel e deixá-lo às moscas, sob o sol ardente. Com ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis “não quero”, com relação aos quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade. (GM/GM, II, 3, KSA, 5.296-7).


Tudo isso representa fascínio, deleite e desejo de que se perpetue, para além de algo situado num lugar no tempo passado, mas que se perpetue no instante10. Esse instante é a vida, a vida compreendida em sua dimensão mais elevada, como Bárbara Stiegler (2001, p. 42) reflete: “[...] a vida elevada, a vida superior, aberta ao meio cósmico mais veraz, pelo fato de ela ser a mais excitável e a mais frágil de todas, é assim, a mais forte e a mais capaz de cura.”

A moral se coloca como um dispositivo para fazer atuar a vontade que se deve afeiçoar por imagens e experiências no tempo, previamente determinados. Dessa forma, o deleite e o prazer se dão, não como movimento livre da vontade, mas como pré-determinação da moral. Por isso, a pergunta que se faz, diante desse processo de ordenação da vontade pelos mecanismos moralizantes, diz respeito ao que se quer reter na memória. Essa pergunta aponta para a razão: “Fé em que? Amor a quê? Esperança de quê?” (GM/GM, I, 15, KSA, 5.284).

As questões acima apresentadas tocam o conteúdo daquilo que se pretende reter na memória. E, por isso, quando se pergunta pelo que se quer memorizar, evoca-se a afeição e tudo o que concerne aos afetos responsáveis pela escolha daquilo que se memoriza e, também, ao mesmo tempo, no qual está situado o conjunto de todos os conteúdos dispostos à escolha do que se quer memorizar, realizando esse processo de uma maneira terrível e brutal: “Esses alemães souberam adquirir uma memória com os meios mais terríveis, para sujeitar seus instintos básicos plebeus e a brutal grosseria destes.” (GM/GM, II, 3, KSA, 5.296). Miguel Angel de Barrenechea (2013, p. 308), refletindo sobre a dureza da constituição das técnicas de memória, ressalta:

Ao analisar a memória em Genealogia da moral, Nietzsche chega a descrever a forma violenta em que foi formada a memória. A sociedade incutiu nos indivíduos uma memória, utilizando-se dos instrumentos morais estabelecidos pela tradição que a eleva e enaltece, em detrimento do esquecimento.


Por conseguinte, a razão, ao sujeitar os instintos básicos, ocupa um espaço fundamental no processo mnemotécnico: “[...] com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente ‘à razão’! – Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão.” (GM/GM, II, 3, KSA, 5.297). Mesmo que Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, mostre que a memória se constitua, antes, pelos sentidos e, acima de tudo, mais pelos afetos que pelo intelecto, este último, em suma, é o que comanda todos os processos anteriores. Com efeito, não há afeição sem algo pelo qual se desperte tais sentimentos: esse algo é fruto de uma escolha e, em todo ato de escolha, está presente a razão, como um componente fundamental para que esse processo se estabeleça.

Tomás de Aquino (449 b15, p. 183) argumenta que “[...] geralmente o primeiro até se chama sentido e o segundo conhecimento. Mas, desde que possa ter conhecimento e sentido sem o ato correspondente.” Todo ato humano vem acompanhado pelo intelecto. E, por isso, no que tange à memória, saber o que se está memorizando corresponde a um processo consciente de retenção de conteúdos mnemônicos. Nesse sentido, a fé, o amor e a esperança, tal como Nietzsche evoca ao princípio do aforismo, constituem conteúdos a serem retidos pela memória, mas que apontam para algo mais, “ao quê”, portanto, a uma razão que se esconde por trás desses três conteúdos mnemônicos. Nietzsche (GM/GM, I, 15, KSA, 5.284) parece querer levar até as suas últimas consequências a razão que move à fé, ao amor e à esperança, quando declara: “Para viver isto é preciso viver uma vida eterna para ser eternamente recompensado no ‘Reino de Deus’ por essa existência terrena ‘no amor’, na fé, na esperança.”

O filósofo alemão se utiliza da própria razão para pôr a descoberto a contradição presente na dinâmica de uma recompensa na eternidade pela existência terrena11. Este não passa de um expediente empregado pelo filósofo para enunciar um outro fator encontrado no processo mnemotécnico, para além da razão, que é a moral. Esse fator é muito mais incisivo que a razão, pois não é responsável pelo que se memoriza, mas, antes, pelo que se deve memorizar. A vontade é tolhida a se submeter a um mando superior que ordena ao que se deve crer, amar e esperar. Uma vez submetida a esses ditames, à vontade resta querer reter na memória aqueles conteúdos pré-determinados por alguma instância superior. Em que medida a vontade é capaz de superar os interditos propugnados pela moral?


2 O PAPEL DA MORAL SOBRE A VONTADE QUE NÃO QUER ESQUECER: O QUE SE DEVE QUERER


Pelas análises anteriores, foi possível perceber a grande influência que a vontade exerce sobre a memória. Por isso, ficou patente que não há memória sem os sentidos e afetos, que ocorrem no tempo. Desse modo, afeição e tempo constituem os dois grandes fatores que tanto Aristóteles como Tomás de Aquino acentuam, em suas reflexões acerca da memória. No entanto, quando se alude a memória, não há como deixar de considerar o que se memoriza, ou seja, quais objetos são recolhidos pela capacidade mnemônica. E, ao se tratar de objetos que correspondem à pergunta sobre o que é retido pela memória, depreende-se uma outra faculdade: o intelecto. Por isso, a razão constitui um papel fundamental no processo mnemônico: “[...] sempre que a memória atua, isto ao mesmo tempo sempre sente que tem sido visto ou ouvido ou aprendido algo antes. O antes e o depois, no entanto, estão no tempo.” (AQUINO, 450 a18, p. 189). Dessa maneira, tudo o que está na memória, antes se viu, ouviu ou aprendeu.

Nesse sentido, a razão atuou desde o começo, para que a atividade mnemônica pudesse ter obtido sucesso em seu empreendimento. Assim, também Aristóteles (II, 451a, p. 59) assevera que “[...] desde o instante quando alguém primeiro aprendeu [um fato da ciência] ou experiencia [um fato particular do sentido].” A razão, novamente, ocupa um papel central dentro da atividade mnemônica. Nietzsche (GM/GM, I, 15, 5.284), ao fazer referência à esfera moral, sobre a atividade mnemônica, afirma que “[...] coisas muito mais fortes, graças à redenção, dispomos de alegrias bem diversas, em lugar dos atletas temos nossos mártires, se queremos sangue, ora temos o sangue de Cristo.”

Frente a tal caracterização da forma como a moral atua, fica até difícil compreender os objetivos a serem acolhidos pela memória como opções. Trata-se, antes, de uma coação, pois as razões apresentadas são postas todas sobre uma das possibilidades. Por isso, nem há como exercer uma eleição, uma escolha, já que tudo se mostra determinado de antemão12. E essa determinação se dá pela força da imagem, a qual carrega toda a carga psicológica que conduz a se reter um conteúdo de preferência a outro, na memória. Tomás de Aquino (449 b30, p. 190), sobre isso, é enfático: “[...] não é possível para o homem compreender alguma coisa sem uma imagem.” A força que uma imagem desperta acaba por condicionar uma escolha, fazendo com que a imagem a ser retida na memória jamais possa deixar de ser aquela mediante a qual se está referindo.

Nessa perspectiva, “[...] a imagem que aparece [...] é uma afeição do senso comum; pois isto é consequente sobre toda a mudança do senso de poder.” (AQUINO, 450 a9, p. 193). Toda imagem que se apresenta à memória visa a despertar afeição, que, por sua vez, alavanca um sentimento, uma vontade de poder. E, ainda, Tomás de Aquino (450 a9, p. 193) sustenta que “[...] nada existe sem uma imagem.” É pela imagem que são despertados todos os sentimentos e afeições que irão resultar em ativação da memória. Por essa razão, Nietzsche insiste nas imagens do fogo, do sangue, do carro flamejante, como imagens que se imprimem na memória a ferro e fogo: “[...] no fogo, então se verá o auriga, todo rubro no carro flamejante.” (GM/GM I, 15, KSA, 5.284). Uma vez marcada por tais imagens, como de fogo e de sangue, a memória tende a não apenas não esquecer, mas, mais que isso, a não querer esquecer13. Ao mencionar o fogo, espetáculos terríveis de torturas dos cristãos, o seu objetivo é ironizar a crueldade existente nas teses cristãs que aludem a "redenção", "fé", "purificação", "vida eterna", "paraíso”; tais formulações são noções vazias, sem conteúdo algum, todavia, que operam como instrumentos de coerção, os quais almejam incutir terror, medo, nos crentes, pavor perante as punições "divinas", as quais não se pode e, nem mesmo, se quer esquecer: “[...] termina-se por reter na memória cinco ou seis ‘não quero’, com relação aos quais se faz uma promessa.” (GM/GM, II, 3, KSA, 5.296-7). Nietzsche considera que, ao se referir a mártires, a heróis, a filósofos, o cristianismo não visaria ao "amor", à "compaixão", à "fé", mas, ao contrário, pretende produzir emoções reativas, paixões ressentidas que se fixam na memória.

Ao atuar dessa forma, sobre a constituição da memória, a moral demonstra a sua astúcia, a qual não passa despercebida ao procedimento genealógico, que pergunta sobre quais critérios de avaliação sustentam as imagens, tais quais são expostos à memória. Nietzsche compreende a astúcia da moral mediante a sua atuação sobre a maneira pela qual se utiliza de imagens pertencentes a um tempo que passou, para condicionar a vontade que se apresenta diante de tais imagens14. A vontade enxerga uma determinada imagem com um olhar de aprovação e, por consequência, desejo, ou, vice-versa, de reprovação e, por consequência, repulsa.

Ao acolher as imagens do sangue e do fogo do inferno, a vontade passa a aderir a uma proposta que não se resume a uma simples visão corriqueira, mas a um programa de vida, o qual, de acordo com o sentir nietzschiano, seria muito mais de não vida, que propriamente de vida. Ora, esses temas, ao invés de afirmar a base da qual decorre a vida, a saber, a força dos instintos, a negam, em favor de prescrições dietéticas ligadas à negação do corpo e a tudo o que a este estiver ligado, para afirmar valores que a denigrem, a apequenam e a negam, como seriam aqueles valores de negação da vida mundana em favor da vida eterna. Como se naquela vida estivesse reservada alguma recompensa por tudo o que se faz nesta vida, de modo a conceber esta vida como uma espécie de propedêutica para a vida que virá:

Recompensa pelo quê? E como?... Parece que Dante se enganou grosseiramente quando, com apavorante ingenuidade, colocou sobre a porta de seu inferno a inscrição “também a mim criou o eterno amor – em todo o caso seria mais justificado se na entrada do paraíso cristão e sua beatitude eterna estivesse a inscrição “também a mim criou o eterno ódio”. (GM/GM, I, 15, 5.284).


Como bem nota Wilson Frezzatti (2020, P. 65), “[o] esquecimento é o que impede que o que é vivenciado ocupe espaço demais naquele processo [...] ele seria o que permite a assimilação do passado pela alma [...] a ‘força inibidora’ que faz a triagem do que foi vivenciado.” Essa triagem diz respeito a tudo o que a vida demanda, como seriam, portanto, aquelas imagens que poderiam ser impressas na memória, recordando espetáculos como “[...] os atletas, não no ginásio, mas no fogo lançando dardos.” (GM/GM I, 16, 5.284). A moral atua no sentido de fazer com que a vontade esqueça e não devendo querer que imagens circenses e de outros espetáculos mundanos constituam a memória, a não ser que estes venham atrelados à impugnação e/ou à reprovação, associados, assim, à imagem do fogo do inferno, da culpa e danação eterna. Como pontua Oswaldo Giacóia Júnior (2013, p. 289), é preciso superar

[...] estados gerais de prazer e desprazer interpretados segundo a lógica da causalidade, num processo comandado pela imaginação que atribui, ao mesmo tempo, eficácia causal e significação moral a entidades ou seres fictícios: espíritos, deuses, vontades substanciais, consciência, sobretudo a consciência moral. (Gewissen).


Por isso, a moral mais do que apenas apresentar imagens à vontade, que neguem a vida terrena em favor da vida eterna, promove uma associação de imagens à vontade15. A moral conjuga imagens mundanas com imagens que fazem recordar desconforto, angústia, medo, terror. Em que medida a moral, por meio de um procedimento ordenador de imagens, aparentemente opostas, converge para a constituição mnemotécnica?


3 A MORAL COMO ORDENADORA DO PROGRAMA MNEMOTÉCNICO: O QUE NÃO SE CONSEGUE NÃO QUERER?


Como ressaltado nas seções anteriores, tanto a razão como a moral constituem componentes fundamentais a atuar sobre a efetivação da memória. A razão atua no sentido de arbitrar sobre o que vai estabelecer como componente e/ou imagem, dada no tempo, a ser retida na memória. Há, nesse sentido, uma escolha a ser realizada e, em todo ato de escolha, está presente a atuação do intelecto. No entanto, além do intelecto, quando se escolhe, também é ativada a vontade, como potencialidade humana que lança alguém a realizar algo. Uma vontade perspectiva16, a qual, como recorda Paul Valadier (2012, p. 388), “[...] não conduz ao relativismo mas ainda à inanição ou à paralisia.” Esta consiste em uma vontade que conduz antes a um sempre “Novo infinito” (FW/GC, V, 374, KSA, 3.626), uma potência aberta a descobrir as ambiguidades de certos princípios supostamente considerados justos.

Essa potencialidade que quer é condicionada por imagens e afetos que acabam por direcioná-la para onde ela, pelo menos em princípio, não desejaria ir. E, nesse processo da vontade, segundo Nietzsche, que se pode perceber a atuação de algum fator externo a cercear a atuação da vontade: a moral. Mediante esse expediente, as técnicas de memória passam a assimilar imagens que despertam uma intenção previamente estabelecida: a de, negando tudo o que se refere ao corpo e à vida terrena, seus instintos e inclinações, dispor-se a afirmar uma vida eterna, a qual está para além deste mundo. Para que a moral alcance tal intenção, age de maneira bastante perspicaz. Nessa ação, a moral conta com a associação de imagens mnemônicas, que, isoladas, não teriam o mesmo alcance que o de atuarem conjuntamente. Nietzsche apresenta, como exemplo dessa associação de imagens, a do sábio filósofo e do fogo. “E também aqueles sábios filósofos, que diante dos seus discípulos tornam-se rubros ao se consumirem pelo fogo, juntamente com eles, a quem persuadiam que [...] as almas ou não existem ou não retornarão aos corpos antigos.” (GM/GM, I, 15, KSA, 5.284).

O filósofo alemão mostra a perspicácia da ação moral, ao associar a figura de um sábio filósofo que ensina que não há vida eterna e nem Deus, nem fogo e danação eterna. Ou seja, o destino daqueles, como os filósofos sábios, será o do fogo eterno. A esse respeito, Kamil Michta (2014, p. 01) recorda que o medo17 e “[...] a dor pode algumas vezes funcionar como uma ferramenta mnemônica.” Quando a memória associa essas imagens, acaba por interpor à vontade um direcionamento pré-determinado: o de rejeitar toda a sabedoria do mundo, para acolher a sabedoria que vem de Deus, aquela que ensina a vida eterna e tudo o que a ela está ligado.

Aristóteles faz referência a esses atos de recordação, como de um movimento que conduz a uma ordem capaz de interpor uma determinação. “Atos da recordação, como eles ocorrem na experiência, são devidos ao fato de que um movimento tem por natureza um outro que sucede em ordem regular.” (ARISTÓTELES, 459 b, p. 62). Desse modo, as imagens e os eventos, quando associados, como é o caso dos exemplos nietzschianos do filósofo sábio e do fogo eterno, fazem com que se crie na vontade, por um lado, uma espécie de repulsa a determinadas imagens e, por outro, um desejo inveterado de acolhida. Por isso, a ordem estabelecida pela mnemotécnica é a de repulsar o filósofo sábio, com tudo o que ensina de acolhida e amor ao mundo, para acolher jubilosamente a Deus e seus ensinamentos de vida eterna, conforme é o caso daqueles que se revestem de uma máscara espiritual, utilizando lembranças para atemorizar e, assim, garantir a ordem imposta:

Melhor se afastarem! Fujam para se esconder! E usem máscaras e sutileza, para serem confundidos com outros, ou para atemorizar um pouco. Esses proscritos da sociedade, esses homens longamente perseguidos, tristemente acuados, – e também os reclusos à força, os Spinozas e Giordano Brunos – acabam sempre se transformando, ainda que sob a máscara mais espiritual e também sem que eles mesmos saibam, em refinados vingativos e envenenadores. (JGB/BM, 25, KSA, 5.42-43).


Em Giordano Bruno, há um exemplo concreto de martírio em nome da verdade, o qual servirá de testemunho para a memória18 da vida eterna. Ao surgir essa ordenação mnemônica, pode-se livrar do fogo eterno e alcançar a salvação da alma.

Ora, tanto as potências da inteligência como a vontade são novamente atividades ativadas para dispor a uma adesão ao ordenamento mnemônico estabelecido. Nessa mesma linha de reflexão, Tomás de Aquino (I, 450b20, p. 197) enfatiza: “Assim também deve tomar a imagem que existe em nós ser ambos uma mesma coisa existente em sua própria razão e, também, como uma imagem de outra.” Conforme Tomás de Aquino, as imagens mnemônicas vêm associadas à razão, levando a alguma adesão a uma coisa em preferência da outra.

Essas imagens traduzem uma razão pertencente àquele que as experimenta, ligando assim a outra razão, que poderia ser a de uma outra pessoa, bem como de alguma outra causa ou situação. E continua Tomás de Aquino (I, 450b20, p. 197): “Portanto, também, quando a moção daquela coisa atua há um correspondente resultado de dupla dobra.” A atuação de uma afecção provocada por uma ou essa sucessão de imagens conduz a um resultado correspondente àquela moção, portanto, previamente determinado por uma potência externa: a moral.

Ao atuarem associativamente, esses fatores que agem em sucessão para a substituição da memória a tornam tanto mais forte. E, por essa razão, com tanto mais dificuldade de ser apagada. No fundo, o que a moral pretende é despertar um tal desejo, a ponto de não mais sequer conseguir querer de forma contrária. A memória que assim é constituída resulta em um poderoso receptáculo, onde a moral inocula todas as suas intenções, as quais são, muitas vezes, muito sutis, como é o exemplo que Nietzsche apresenta, a partir de como Tertuliano19 se refere a Jesus, para desmerecer os judeus e suas atitudes: Jesus é assim compreendido pelos judeus como

[...] o destruidor do sábado, o samaritano, o que tem o demônio. Eis aquele que comprastes dos judeus, eis aquele que foi golpeado com a vara e com bofetadas, que foi humilhado com escarros, a quem foi dado de beber fel e vinagre. Eis aquele que os discípulos roubaram às escondidas, para que se dissesse que havia ressuscitado, ou aquele a quem o hortelão arrastou, para que suas alfaces não fossem machucadas pelo grande número de passantes. (GM/GM, I, 15, 5.285).


Tertuliano efetua uma associação de imagens e situações: humilhado, desprezado, escarrado, para ligar à situação de vítima das mãos dos judeus. Desse modo, o que se pretende inocular, através da moral, é o sentimento de ódio àqueles responsáveis por tamanha atrocidade, os judeus, e seu amor de compaixão àquele que foi vitimado injustamente por tamanha crueldade, Jesus de Nazaré. Todo aquele que traz impresso na memória tais imagens dificilmente será capaz de fazer com que sua vontade se ordene de forma diferente, senão de acordo com a que a moral previamente determinou: a de aderir a Jesus de Nazaré, despertando a ele e a seus ensinamentos uma adesão cega e, ao mesmo tempo, um sentimento de ódio a tudo e todos que a Jesus se opõem, como seria o caso dos judeus, assim como aos sábios e filósofos que ensinam a vida e a tudo ao que a ela está ordenado. De alguma forma, a memória sempre estará presente. Nietzsche não parece colocar-se contra a memória em si, bem como a todas as técnicas que a promovem, senão, antes, identificar, com o procedimento genealógico, quais os fatores ou sequência de fatores a promovem, sustentam e perpetuam. Dependendo desses fatores, é melhor entregar-se ao esquecimento. Contudo, não se trata de qualquer esquecimento, mas de um esquecimento ativo, como Petar Ramadanovich (2001, p. 01) destaca:

[...] ele sugere um discurso crítico sobre o passado e seria atento para a necessidade do presente e apto para a necessidade do presente e apto para distinguir entre o que no passado é vantajoso e o que não é vantajoso para a vida. Assim, esquecimento ativo é um relembrar seletivo, o reconhecimento que nem todas as formas passadas é conhecimento e nem toda experiência são benéficas para o presente e para a vida futura.


Por isso, segundo recorda Brian Leiter (2008, p. 08), “[...] a dor é um instrumento mnemotécnico.” A moral atua, nesse sentido, como aquela que desperta a curiosidade de experimentar tais deleites proporcionados pelas imagens. Algo que ainda não se viu, ouviu ou sentiu passa a ser altamente desejado, conforme é evocado pela referência à Carta de São Paulo aos Coríntios20. A promessa de que se experimentará, por essas imagens mnemônicas, é de alguma coisa que supera todas as expectativas. Assim, a vontade é cerceada a não poder querer de modo diferente, senão mediante a busca daquelas imagens e visões que despertam o desejo de orientar a vida, por meio daquilo a que apontam como sendo o bem mais universal e abrangente. Um bem universal, associado às imagens, as quais, por mais terríveis e ameaçadoras, despertam o desejo de não as esquecer, mas de serem gravadas

[...] a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória [...] Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória. Os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica. (GM/GM, II, 3, KSA, 5.295).


Nietzsche realça como a memória, a consciência, a razão, a má consciência, a vontade surgem das mais dolorosas torturas corporais, incluindo as torturas imaginárias que se relacionam a "inferno", "castigo eterno", "pecado original": “[...] algumas ideias devem se tornar indeléveis, onipresentes, inesquecíveis, ‘fixas’, para que todo o sistema nervoso e intelectual seja hipnotizado por essas ‘ideias fixas’.” (GM/GM, II, 3, KSA, 5.295-6).

A vida, assim orientada, não pode querer de maneira diferente. Portanto, a vontade que dessas imagens passa a se determinar serve de poderoso mecanismo mnemotécnico usado pela moral. Mais uma vez, por fim, cabe ressaltar que Nietzsche não se coloca contra a mnemotécnica em si mesma, todavia, contra a moral que a sustenta. E, pelo procedimento genealógico, é possível constatar o teor de sua influência sobre a constituição da memória, bem como as consequências desta, no sentido de apequenar e negar a vida terrena em função de uma vida eterna.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo itinerário percorrido neste complexo processo, pelo qual se constitui a memória, foi possível perceber a atuação da moral como fator preponderante. Inclusive, chama a atenção que Nietzsche apresenta, logo na Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral, no aforismo 15, a influência de Tomás de Aquino sobre a constituição da memória, dando a entender a importância do papel da moral, nesse processo. A memória marca a ferro e fogo aquilo que, em última análise, ordena a moral, a saber, que todos aqueles que são revestidos da beatitude tenham, na imagem da pena dos danados, um exemplo daquilo que não se deve fazer.

Por isso, a reminiscência de todas as tribulações, fogo, sangue e outras visões macabras sirvam de recordação para todo o que deseja crescer no caminho da beatitude. Percebe-se, por essa referência nietzschiana à memória, o quanto esta acaba sendo perniciosa, por cercear a vida, no sentido de condicionamento a um ponto pré-estabelecido: o ódio a este mundo dos sentidos e das inclinações e o amor ao mundo que viria pelas promessas cristãs.

A memória, dentro dessa configuração moral, passa a operar no sentido inverso àquele instado pela reflexão nietzschiana: o amor à vida terrena. Por conseguinte, embora Nietzsche teça críticas fortes às diversas técnicas de memória, não as critica em si mesmas, pois ele mesmo acaba utilizando esse expediente mnemotécnico, como é o caso do recurso estilístico, empregado para que todo aquele que dele se dispor jamais esqueça. Entretanto, o filósofo alemão critica, de fato, as técnicas de memória, como se depreende do aforismo 15 da Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral e, especialmente, do aforismo 03 da Segunda Dissertação de Para a genealogia da moral, quando a memória passa a ser comandada pela moral.

Ora, nesse processo, não se revive, nem se recorda aquilo de que se viveu, intensamente, algo num tempo determinado, no sentido de representar algo perigoso, mas se revive, porque assim uma instância externa o ordena. Tal instância é profundamente arraigada sob o ditame de se impor a negação de tudo o que inspira a vida, no sentido corpóreo, como seria toda a dimensão carnal, com suas paixões, inclinações e desejos. Tudo passa a se submeter ao crivo da moral, que não permite experimentar prazer, mas reúne prescrições dietéticas que, segundo a compreensão de Nietzsche, acabam sendo altamente perigosas, por, inclusive, atuarem sobre a vontade. E, uma vez atuando sobre a vontade, sobre o querer e a moral, conquista e subjuga um poderoso dispositivo que guarda a maior fonte de força, fazendo com que esta seja direcionada, no sentido de apequenar e mesmo negar a vida e tudo o que a ela estiver ligado.

A moral, ao ordenar à vontade tudo o que cabe a esta desejar, opera no sentido de demostrar o uso de seu expediente, já também pontuado tanto por Tomás de Aquino como por Aristóteles: a razão e o intelecto. Quando se pergunta pelo que se deve memorizar, está-se adotando um mecanismo de escolha, mas uma escolha cerceada: nesse processo, a razão entra em cena. Mesmo que os sentidos tenham, como lembra Tomás de Aquino, um papel fundamental na constituição da memória, esta última terá no intelecto e na razão um expediente responsável pela sua ordenação lógica. Ou seja, mesmo que os sentidos sejam movidos pela moral, na direção por esta determinada, a razão opera nesse ponto um processo de estabelecimento objetivo daquilo que, exatamente, deve ser objeto do querer que algo seja memorizado. Por isso, a razão confere um estatuto de ordenamento lógico e objetivo ao conteúdo mnemotécnico, de sorte que este obtenha maior reconhecimento e credibilidade por parte da vontade.

No entanto, a vontade que quer, mesmo tendo a razão como sua ferramenta de cerceamento e reconhecimento lógico formal, tem na moral seu ingrediente mais potente. A moral atua sobre a vontade, no sentido de inspirar sentimentos que causem verdadeira satisfação, como é o caso de despertar deleite em castigar o corpo e tudo o que a este estiver ligado, em nome da promessa de uma vida eterna. Em decorrência, mesmo ao memorizar as dores e penas dos danados, tornando-as presentes à memória, essas dores e penas passam a significar nada, diante da mesma satisfação que representa viver a vida eterna.

Tudo, portanto, passa a estar voltado a essa esperança de vida num tempo que ainda não se deu. E, segundo a compreensão nietzschiana, nunca se dará, sendo, apenas, engano e farsa, para que a moral atinja o seu objetivo de cerceamento da vontade, para que a vida efetiva, ou seja, a vida terrena, seja negada, em prol da vida futura. E, ao se negar esta vida, acaba-se por propor a ordem da degenerescência, na qual não resta nada senão confiar em um mundo que efetivamente não existe. O papel da moral, logo, é o de desmantelar todo e qualquer resquício de vida terrena, pois tem em seu lado a fonte da força, que é a vontade. Porém, uma vontade voltada para trás.

Cabe ressaltar, ainda, que a moral não para nesse ponto, em seu processo de engendramento de todo o veneno aniquilador da vida. Ela se serve de imagens mnemônicas, as quais, quando isoladas, têm um sentido distinto do que seria se estivesse associada a outras imagens. Nesse aspecto, a moral tem imagens de atletas, filósofos, reis, imagens que inspiram a muitos e os associam a outras imagens, como seria do fogo, do sangue, do inferno. Por isso, mediante tal associação, a memória impressa passa a possuir outra significação: o que seria, pois, o de algo mediante o qual se deve afastar a todo o custo, já que são imagens que levam à perdição. E, em substituição a elas, são apresentadas as que devem ser acalentadas e acolher pela força do querer: a dos mártires cristãos, daqueles que, ao sofrerem todas as penas terríveis, acabam sendo contados entre os bem-aventurados. Nessa esperança de bem-aventurança é que a moral e seu ordenamento associativo de imagens alcançam, com muito mais eficácia, os seus objetivos.

Logo, é bastante evidente a ação da moral sobre a memória, ação esta que ocorre no sentido de se operar uma deturpação na própria memória. Essa deturpação é compreendida como cerceamento e controle por mecanismos que pré-selecionam aquilo que se deve memorizar. Com isso, deixa-se de trazer à memória imagens, situações, afeições, as quais poderiam ser fontes de grande satisfação, no sentido de afirmar a vida, com tudo o que ela demanda, como seriam as inclinações, os instintos e demais prazeres.

Ao se impedir que a memória siga esse arcabouço de inúmeras afeições experimentadas no tempo e revividas continuamente, num instante pleno, faz-se dela nada, senão uma espécie de repositório artificial de experiências e imagens impostas a se reviverem, funcionando assim como mecanismos de controle, para direcionar a força no sentido contrário ao da afirmação da vida terrena. Por essa razão, mais uma vez, esse sentido contrário da força se traduz em deturpação da vida, que, em última análise, tem nas técnicas de memória um poderoso dispositivo impresso a ferro e fogo, em imagens e afeições mnemônicas ditadas pela moral.


Morality in memory techniques: Nietzsche and the comments on the mnemonics of Thomas Aquinas


Abstract: The investigation presents a hermeneutics of memory in Nietzsche's mature texts in the light of contributions of Aristotle and Thomas Aquinas. At the First Dissertation of Towards the Genealogy of Morals, Nietzsche introduces the influence that memory exerts on the capacity for reflection and action. The mnemotechnical procedure that the German philosopher analyzes is Thomas Aquinas' commentary on Aristotle's reminiscence. Aquinas identifies the ordering of what is wanted, the investment of the spirit, frequent meditation and the taking of the chain of pending issues as fundamental points for the activity of memory. And, at these points, Nietzsche identifies morality as a key component in the memorization process. It will analyze some approximations and distances between the Nietzschean and Thomist theses and to what extent morality operates in the sense of detecting memory activity.


Keywords: Memory. Technique. Moral. Nietzsche. Thomas Aquinas.


Referências

AQUINAS, St. Tomas. Commentaries on Aristotle’s ‘On sense and what is sensed’ and ‘On memory and recollection’. Trans. Kevin White and Edward M. Marcierowski. Washington DC: The Catholic University of America Press, 2005.

ARISTOTLE. Works of Aristotle. Trans. J. A. Smith and W. D. Ross. London: Oxford at the Clarendon Press, 1907.

BARRENECHEA, Miguel Angel; DIAS, Mario José. Entre a memória e a política: Nietzsche e Arendt na atualidade. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 33, p. 301-326, 2013.

BINGHAM, Charles. Montaigne, Nietzsche and the Mnemotechnics of Student Agency. Educational Philosophy and Theory, v. 39, 2007.

CRAWFORD, Claudia. Nietzsche’s mnemotechnic’s, the theory of resentment, and Freuds topografies of the psychical apparatus. Nietzsche-Studien, De Gruyter, Band 14, p. 01, 1985.

FREZZATTI, Wilson. Nascimento e meandros do Lete em Nietzsche. Cadernos Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v. 43, n. 01, p. 55-82, 2022.

GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche. O humano como memória e como promessa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

GIORDANO BRUNO. Mundo, Magia, Memoria. Trad. Ignacio Gómez de Liaño. Editorial Biblioteca Nueva: Madrid, 2007.

LEITER, Brian. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche’s Genealogy. Notre Dame Philosophical Reviews, University of Notre Dame, Austin, p. 08, 2008.

MICHTA, Kamil. A cultural of language, a language of cultural: Nietzsche’s mnemotechnics in J. M. Coetzee’s waiting for the barbarians. Ethics in Higher Education, p. 01, 2014.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sämtliche Briefe: Kritische Gesamtausgabe Briefwechsel KGB. Herausgegeben von Georgio Colli und Mazzino Montinari. Walter de Gruyter: Berlin, 1986. 8 Bd.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Walter de Gruyter: Berlin, 1999. 15 Bd.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. Companhia das Letras: São Paulo, 2000.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001a.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. Uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. Companhia das Letras: São Paulo, 2001b.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falava Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

PAPONI, María Susana. Reiteraciones: Friedrich Nietzsche, Filosofia y Cultura. In: MOREY, Miguel (org.). Esse Nietzsche. Salta: Ediciones de la Galeria Fedro, 2014. 17-26.

RAMADANOVICH, Petar. From Haunting to Traum: Nietzsche’s Active Forgetting and Blanchot’s Writing of the Disaster. University of the New Hampshire, v. 11, n. 2, p. U42-U60, 2011.

STIEGLER, Barbara. Nietzsche et la biologie. Paris: PUF, 2001.

TERTULIANO, Apologétique. Paris: Societé d’Édition ‘Les Belles Letres’, 1961.

VALADIER, Paul. Pertinência imoral do nietzschianismo. Síntese, Belo Horizonte, v. 39, n. 125, p. 379-391, 2012.

YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.



Recebido: 31/10/2022

Aceito: 23/02/2023.


1 Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte, MG – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7352-927X. E-mail: feilersj@yahoo.com.br.

2 Segundo a lenda, Simônides foi capaz de reconhecer os nomes dos corpos após um desabamento, pela recordação do espaço que cada um ocupava dentro da sala (YATES, 2013, p. 17-18).

3 Para as citações das obras de Nietzsche, adotamos a Edição Crítica Alemã Colli & Montinari: KSA (Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe) e das Cartas, KGB (Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe); após a sigla indicando a obra, em alemão/português: ST/ST – Socrates und die Tragoedie (Sócrates e a tragédia), FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência), Za/ZA – Also Sprach Zaratustra (Assim Falava Zaratustra). JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Além do bem e do mal), GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral), Nc/FP – Nachlass (Fragmentos Póstumos), Br/Cr – Briefe (Carta), segue o número, em romano, indicado o capítulo, se tiver, o número do aforismo, KSA ou KGB, o número do volume e a página.

4 Para a citação dos textos de Tomás de Aquino, segue a parte em algarismo romano, seguida do número do capítulo, do subcapítulo em letra e número e da página.

5 Os sentidos constituem a base fundamental para que tudo aquilo que se vivenciou seja eternizado, sejam esses eventos venturosos ou traumáticos. Desse segundo o próprio Nietzsche recorda, mediante relato dos condenados pela Inquisição na Idade Média (Cf. GM/GM, III, 3, KSA, 5.296-7).

6 O operar para trás refere-se às forças que, em seu movimento criador devem externar-se no sentido de se querer abundância, caso contrário, em seu movimento para dentro, se empobrece, levando à letargia e degenerescência. Cf. “[...] os que sofrem de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e uma compreensão trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam silêncio, quietude, mar liso, redenção de si mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a convulsão, a loucura.” (FW/GC, 370, KSA, 3.620).

7 Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882) foi um diplomata, escritor e filósofo francês, um dos mais relevantes teóricos do racismo, no século XIX.

8 Para a citação dos textos de Aristóteles, são apresentados o número do capítulo, em algarismo romano, o número e letra, seguidos da página.

9 Nietzsche associa o âmbito da fé ao da redenção, para mostrar uma dimensão de crença na redenção, a qual aponta para aquela dimensão de fé, própria do Cristianismo: uma fé na vida eterna. Por essa razão, o filósofo se refere a essa fé como a algo que ultrapassa tudo o que se possa imaginar.

10 Aludindo ao instante, Nietzsche o associa ao que é mais divino: “O instante e a graça são suas mais altas divindades.” (ST/ST, KSA, 1.536).

11 A contradição está, no dizer de Nietzsche, em se negar aquele valor supremo que é a vida, em detrimento de outros valores que a denigrem.

12 Se tudo já se mostra determinado de antemão, não há, pois, como agir de outra forma.

13 O não esquecimento se apresenta como objeto de desejo, por tudo o que este acaba despertando.

14 Essas imagens despertam um impulso criador, uma vontade criadora, como Nietzsche se expressa, nesta carta a Paul Deussen (Br/Cr am Paul Deussen 02/06/1868, 573, KGB, 2.283), sobre o quanto se é atormentado: “[...] tanto por um impulso criador quanto por uma vontade criadora.”

15 A associação de imagens constitui uma das maiores táticas da moral para despertar o desejo de que tais imagens não se apaguem da memória, como seria, por exemplo, a imagem do sofrimento, do sangue, das penas, associada à do paraíso final.

16 “[...] uma vontade de poder percorre o povo, precisa da redução da perspectiva, do ‘egoísmo’ como condição temporária de existência; ele olha de cada degrau para um mais alto.” (Nc/FP de maio e junho de 1885, 35[68], KSA, 11.540

17 Provocar o medo e a dor, deste resultante, tem sido mais uma das táticas da moral, como é o caso de recursos mnemônicos adotados na Idade Média pela Inquisição, ao promover as execuções públicas de queima às bruxas, para que tal imagem, ao não se apagar da memória, jamais levasse alguém a cometer tais atos. A dor foi considerada um poderoso recurso mnemônico. “Jamais deixou de haver sague, martírio e sacrifício quando o homem sentia a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogénitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldade).” (GM/GM, II, 3, KSA, 5.295).

18 Em uma apresentação ao pensamento de Giordano Bruno, precisamente ao livro Mundo, Magia, Memória, Ignacio Gómez de Liaño (2007, p. 22) assevera: “A arte da memória é a construção de uma mente artificial. Ao se colocar diante da mente, se encara consigo mesmo e se pronuncia. Se assimila a mente como a um grande lugar, dividido em átrios ou palácios, que por sua vez, se deslocam em compartimentos, nestes lugares se alojam as imagens das coisas, em seus espectros mais dolorosos, a fim de que impressionem os sentidos e se gravem melhor na imaginação.”

19 Tertuliano (160 d. C.), nascido em Cartago, foi um escritor cristão profícuo, com ênfase no estudo da lei romana. Seus escritos se destacam por conterem grande erudição, o que lhes confere beleza literária e grande poder de persuasão. Em uma de suas apologias contra aqueles que perseguem o Cristianismo, Tertuliano (IV, 1961, p. I,3) escreve: “Coloquemos, portanto, a razão da iniquidade do ódio ao nome dos cristãos, iniquidade que pesa sobre quem a protege e se junta a ela, quem se desculpar pela ignorância.”

20 Cf. 1 Cor, 2,9.