Diego Kosbiau Trevisan1
Resumo: O presente artigo apresenta uma breve contribuição ao estudo das fontes históricas da filosofia prática de Kant, discutindo o projeto kantiano de uma metafísica dos costumes enquanto uma doutrina dos deveres. à luz do direito natural alemão dos séculos 17 e 18. Em um primeiro momento. é exposta a distinção de Christian Thomasius entre obrigação interna e obrigação externa. como base para a diferenciação entre deveres jurídicos e deveres éticos. Na sequência. a oposição kantiana entre uma doutrina do direito e uma doutrina da virtude é discutida. sob o pano de fundo da recepção de Thomasius, por parte de Alexander Baumgarten e Gottfried Achenwall.
Palavras-chave: Kant. Thomasius. Direito Natural. Direito. Ética.
INTRODUÇÃO
A interpretação da filosofia prática de Kant como uma ética normativa ou, ainda, uma doutrina dos deveres (MS, AA 06: 375, 379)2 tornou-se uma moeda corrente nos estudos kantianos, sobretudo na tradição analítica. Investigações sobre as fontes históricas – diretas e indiretas – da filosofia de Kant, por sua vez, são mais raras, não merecendo, pois, perder-se em meio à oceânica literatura secundária sobre o tema. O objetivo do presente artigo é apresentar uma pequena contribuição à história da filosofia prática kantiana, situando-a em seu solo filosófico: a filosofia da Aufklärung alemã.3 Diante das cada vez mais frequentes tentativas de, mediante apelo ao aspecto intrinsicamente sistemático e racional de sua filosofia, reduzir o pensamento de Kant a esquemas conceituais que lhe são estranhos, aceitamos aqui o notório preceito interpretativo de Kuno Fischer, infelizmente já há muito relegado a segundo plano, na pesquisa especializada kantiana: “[...] elucidar Kant significa derivá-lo historicamente”.4 Tal retrospeção histórica passa, no tema em questão, pela tradição do direito natural alemão entendido como jus naturae late dictum, ou seja, a filosofia prática enquanto uma doutrina ampla de deveres éticos e jurídicos.
A filosofia prática alemã dos séculos 17 e 18 testemunhou uma série de tentativas de mediação entre, por um lado, a antiga compreensão escolástico-aristotélica da moral como doutrina prática da prudência e sua divisão em ética, política e economia, e, por outro, a moderna doutrina do direito natural e sua doutrina dos deveres classificados segundo o statu (natural e civil) e seu caráter coercitivo ou não (cf., por exemplo, SCHNEIDERS, 1971; SCATTOLA, 2003). Sob esse pano de fundo histórico e conceitual, a separação normativa entre direito e ética pode ser considerada como uma fecunda chave de leitura e interpretação. Com o estabelecimento do direito natural secular no ambiente filosófico e institucional da Alemanha dos séculos 17 e 18, a filosofia prática deixa de ser pensada preponderantemente sob a chave aristotélica da prudentia architectonica e da política como uma espécie de “direito moral” que deve incumbir-se da realização da boa vida na comunidade política (Cf. TREVISAN, 2020). O direito e a ética começam a ser considerados duas doutrinas de deveres que, embora partes integrantes do ius naturae late dictum entendido como um sinônimo do conjunto completo da filosofia prática, precisam ser distinguidas em seus âmbitos normativos.
Como é frequentemente argumentado (cf., mais notadamente, SCHNEIDERS, 1971), tal separação normativa de direito e ética no interior do direito natural alemão teve uma primeira formulação conceitual acabada em Christian Thomasius e encontrou em Kant seu ponto de culminação – não por acaso, Gustav Hugo, o qual, na esteira da recepção inicial da filosofia kantiana, colocou as bases para a escola historicista e positivista do direito que recusava a tradição jusnaturalista, procurou aprofundar o por ele denominado “golpe mortal thomasiano” <Thomasische Todtschlag> (HUGO, 1819, p. ix), a saber, dar definitivamente cabo à tradicional subordinação do direito à ética. É claro que não será possível aqui percorrer todo esse trajeto histórico-conceitual e tampouco abranger todas as complexas discussões da época a respeito da distinção entre ética e direito.
O presente artigo limita-se a apresentar uma possível pista interpretativa: a distinção entre obrigação interna e obrigação externa, realizada por Thomasius, é base para compreender a distinção entre ética e direito ou, ainda, entre legislação ética e legislação jurídica, efetuada na Metafísica dos Costumes de Kant. Daqui seria possível avaliar, ao menos segundo esse recorte histórico-conceitual preciso, a persistência na filosofia kantiana de quadros conceituais pertencentes ao direito natural do início do século 18, bem como trazer à superfície a linha de continuidade que existe entre Thomasius e Kant ou, ainda, entre o momento inicial e o momento final da Aufklärung, compreendendo a filosofia prática kantiana e seu sistema de deveres no quadro conceitual do direito natural secular.5
1 THOMASIUS: OBRIGAÇÃO INTERNA COMO NOBILISSIMA OBLIGATIONIS SPECIES
Em sua primeira grande obra sobre direito natural, as Institutiones jurisprudentiae divinae, publicadas em 1688, Thomasius pretendia explicitamente – como se lê no título completo da obra – provar e complementar a doutrina do direito natural de Pufendorf.6 Contudo, tal filiação praticamente irrestrita a Pufendorf viria a ser depois atenuada e mesmo rompida. Em sua segunda grande obra sobre direito natural, os Fundamenta iuris naturae et gentium, publicada em 1705, “[...] após muitos anos de reflexão” (Fundamenta. Cap. prooemiale, § 2),7 Thomasius apresenta uma teoria própria sobre o direito natural, inspirada, como o próprio reconhece (Fundamenta. Praenotandum), numa reformulação do conceito de lei e na recusa da noção de uma lei divina positiva universal. Nos Fundamenta, Thomasius expõe sua teoria acabada sobre a distinção entre moral e direito, mais especificamente a diferenciação entre justo, honesto e decoro e a oposição entre comando (imperium ou Befehl) e conselho (consilium ou Ratschlag), assim como – o que aqui particularmente nos interessa – uma concepção reformulada de obrigação. A obrigação (obligatio ou Verpflichtung) surge aqui como uma coerção psicológica e afetiva ou, ainda, como uma espécie de “[...] extorsão mecânica da vontade não-livre através do medo e da esperança” (SCHNEIDERS, 1971, p. 242).
Antes de discutir o novo conceito thomasiano de obrigação, nos Fundamenta, retomemos uma obra anterior. Como o próprio Thomasius reconhece, no início dos Fundamenta (Fundamenta. Praenotandum), em um texto publicado em 1702, no tomo VI das Observationum selectarum, mais especificamente na Observatio de número 27, a Observatio de natura legis tam divinae, quam humanae (THOMASIUS, 1702, p. 255-292), as reformulações por que a própria teoria thomasiana da obrigação passara, desde as Institutiones, são expostas de forma mais completa do que nos próprios Fundamenta. A autocrítica que Thomasius realiza, nessa Observatio, refere-se à noção errônea de dever que ele próprio defendia, à época das Institutiones, ainda baseado numa concepção estrita de obrigação entendida exclusivamente como obrigação externa. Na nova perspectiva aberta desde a Observatio e consolidada nos Fundamenta, surgem a noção de uma obrigação interna e, com ela, a clara prevalência teórica do dever moral interior.
Na Observatio, Thomasius cita três aspectos de sua revisão do conceito de dever e lei, desde as Institutiones (cf. DIONI, 2013, p. 23-25):
1) A definição anterior de lei se fundamentava no erro de considerar as leis humanas e as leis divinas como espécies distintas de um mesmo gênero superior, levando a que se considerasse a lei divina como contida no mesmo campo semântico e normativo do da lei humana. Ora, na realidade, a lei é “[...] um predicado que diz respeito à ação humana, ou, por certo, à sua relação com outros homens” (Observatio 27, § 2), de modo que não pode ser atribuída a Deus, um “ens incomprehensibilis et infinitus”.
2) Em função da riqueza semântica do conceito geral de lei, costumou-se tomar como sinônimos os vários modos ou expressões tradicionalmente vinculadas a ela: conselhos, dogmas, mandatos, preceitos etc., assim como se desconsiderarem as relações existentes em cada uma delas: entre superiores e inferiores ou entre pares (Observatio 27, § 3). Em resumo, a lei, no sentido amplo, deve assumir o significado mais geral de norma, incluindo aqui os dogmas, os conselhos, os comandos etc., ao passo que a lei, em sentido estrito, deve designar um tipo específico de norma: o imperium ou Befehl, isto é, o comando a um inferior por parte de um superior (cf. Fundamenta, lib. I, cap. 5, §§ 1-3). O próprio Thomasius havia proposto, nas Institutiones, um conceito unívoco de norma, no sentido estrito de lei como um mandamento de um superior, que faz com que o comportamento de um inferior possa ser externamente coagido (cf. Institutiones, lib. I, cap. 1, §§ 133-5). Seria necessário a partir de agora, portanto, complexificar o conceito de norma, até incluir e diferenciar as duas classes normativas centrais dos Fundamenta: o comando e o conselho.
3) Como consequência do nivelamento que fizera anteriormente, Thomasius avalia ter adotado um conceito errôneo de dever e obrigação, tendo levado em conta o conselho, ou seja, o dever ou obrigação moral interna, como privado de qualquer força vinculante. Disso resultara um modelo que apenas reconhecia como obrigação aquela que possui caráter coativo, a saber, a obrigação externa jurídica, desprezando, assim, a obrigação interna, a “nobilissima obligationis species”: “A partir do dito comum, segundo o qual o conselho não obriga [...], a obrigação interna, a mais nobre espécie de obrigação, foi claramente deixada de lado, e, pois, a obrigação geralmente aceita foi, da mesma forma, definida erroneamente.” (Observatio 27, § 2, grifo meu).8
Em resumo, da autocrítica de Thomasius resultam um conceito não reducionista de norma e, com ele, a noção de uma obrigação interna, a qual envolve, como se verá na sequência, o medo de uma espécie particular de mal, devido à ausência em nós de uma inclinação natural pelo verdadeiro bem. Trata-se, pois, da ideia de uma coerção interna a que a vontade humana está sujeita.
Para o Thomasius tardio, a obrigação é, de modo geral, “[...] uma afecção da vontade em virtude da qual a vontade do homem se retrai de outra inclinação por medo do mal.” (Observatio 27, § 5). A centralidade da noção de obrigação para a ação humana se mede pelo pendor natural da vontade corrompida (isto é, no estado pós-queda ou pós-lapsário) em desejar o mal:
A vontade de todos os homens é por natureza inclinada ao verdadeiro mal. Ora, o mal é infinito. O verdadeiro bem é único. Portanto, como não há uma inclinação direta ao verdadeiro bem no estado de natureza corrompido <statu naturae corruptae> enquanto tal, e sendo toda inclinação comparativa, então se houvesse aquela inclinação, não existiria obrigação, mas, antes, suma liberdade e espontaneidade, de modo que a obrigação sempre pressupõe coerção e medo. (Observatio 27, § 7).
Devido ao pecado original e à natureza humana corrompida, o homem somente pode atingir o bonum per se por meio da revelação e da fé, e o bem relativo, concebido como um mal comparativamente menor, apenas através da obrigação, isto é, por medo e por coerção, e não de modo absolutamente espontâneo (Observatio 27, § 6).
Como, pois, a obrigação é uma afecção da vontade que a faz desistir de um desejo ou inclinação por medo do mal decorrente, a distinção entre obrigação interna e externa repousa numa diferenciação do próprio conceito de mal envolvido em cada uma delas:
A obrigação interna ocorre quando o homem cuja vontade se inclina a outra coisa teme o mal grave oriundo de uma conexão natural. A obrigação externa ocorre quando o homem cuja vontade é inclinada por outra coisa teme o mal grave dependente do livre arbítrio que tem o poder de inferi-lo. (Observatio 27, § 10).
A obrigação interna, assim, surge da consciência de que há certos males que são naturais, independentes da vontade humana e derivados necessariamente de uma conexão natural ou ordem imutável da natureza, imposta por Deus e reconhecida pela razão. A obrigação externa, por sua vez, surge da consciência de um mal arbitrário e contingente, dependente da vontade humana e, por conseguinte, completamente terreno. As penas e recompensas ligadas à obrigação interna são necessárias e mais importantes, por serem estipuladas por Deus e inscritas na ordem natural das coisas por ele imposta; as penas e recompensas ligadas à obrigação externa são arbitrárias e menos importantes, por serem estipuladas pelos homens e inscritas na ordem contingente que depende de seu arbítrio.
Dessa distinção decorre uma outra, já mencionada anteriormente, a saber, entre imperium e consilium, ou comando e conselho: o primeiro corresponde ao dever ou obrigação externa, e o segundo, ao dever ou obrigação interna (cf. Fundamenta, lib I, cap. 4, § 62). O comando deriva da relação entre um superior, que comanda, e um inferior, que é comandado, e repousa no arbítrio coagente daquele que comanda; já o conselho deriva da relação entre iguais (Fundamenta, lib. I, cap. 4, § 51). Como escreve Thomasius,
[...] o conselho visa a incutir medo às paixões viciosas, mostrando que o dano oposto à própria paixão acompanha necessariamente a mesma paixão viciosa ou suscitando a esperança de uma paixão oposta àquela, e visa a suscitar a esperança de atingir a sabedoria, em parte demonstrando o ganho e a vantagem que necessariamente acompanham a sabedoria, em parte incutindo medo ao desejo <cupidini; Begierde> que é oposto ao anseio <desiderio; Verlangen> da verdadeira felicidade. (Fundamenta, lib. I, cap. 4, § 53).
Já o comando “[...] também visa ao mesmo, mas os danos e as vantagens que ele apresenta não acompanham natural e necessariamente as ações humanas, sendo, antes, arbitrários, isto é, inventados pelo homem.” (Fundamenta, lib. I, cap. 4, § 54). A diferença é que “[...] quem dá um conselho visa a persuadir e não tem força coercitiva <vim cogendi; Gewalt zu zwingen>; quem comanda, porém, não visa a persuadir, mas tem força coercitiva.” (Fundamenta, lib. I, cap. 4, § 55).
A diferença sentida no modo como cada um deles, conselho e comando, vincula o agente deriva da incapacidade de o homem, inclinado por natureza ao mal, reconhecer a conexão natural imposta por Deus às coisas. Tal incapacidade, contudo, não repousa numa falha ou deficiência do intelecto do ser humano, mas, antes, como já frisado, na corrupção de sua vontade (Observatio 27, § 4). Para o voluntarismo do Thomasius tardio, a vontade tem primazia em relação ao intelecto, o qual, pois, somente pode reconhecer como bem aquilo desejado pela vontade. Esta, por sua vez, está colocada na “encruzilhada” de três paixões ou afetos elementares: volúpia <voluptas ou Wollust>, ambição <ambitio ou Ehrgeiz> e avareza <avaritia ou Geldgeiz>, as quais desviam o homem do sumo bem, a saber, a tranquilidade e a paz internas do ânimo.
Diferentemente do que acontecia numa obra de transição entre as Institutiones e os Fundamenta, o Ausübung der Sittenlehre, onde Thomasius acreditava que toda tentativa de melhoramento moral do homem e todo esforço de combater o vício eram vãos sem recurso à fé, nos Fundamenta, ele reconhece a possibilidade de uma emendatio moralis do homem ainda por vias seculares (cf. Fundamenta, lib. I, cap. 2, § 63, em que Thomasius reconhece o erro que cometera no Ausübung). É o sábio que, conhecendo a norma moral por meio do uso da reta ratio e sabendo moderar as paixões ou afetos elementares, consegue que sua vontade não corrompa a atividade do intelecto, harmonizando seus afetos e visando ao sumo bem, a saber, a tranquilidade e a paz do ânimo. É ele quem, pois, deve aconselhar os estultos a buscarem a paz exterior e interior, por meio da moderação das paixões.9
Nesse contexto, como Thomasius escreve, no Capítulo Preambular dos Fundamenta, a distinção entre obrigação interna e externa é base para a distinção entre honesto, justo e decoro (Fundamenta, Cap. prooeminale. § 12). Deixando aqui de lado o decoro, “[...] o justo se opõe ao mal extremo, do qual se pode dizer injusto. O honesto é o próprio bem eminente, cujo oposto é o torpe, decerto é torpe sucumbir (mesmo que com dor) aos apetites <cupiditatibus; Begierden>.” (Fundamenta, lib. I, cap. 4, § 89). O justo é regulado pelo comando, pela obrigação externa, a qual, por meio da coerção e do medo da punição terrena, proíbe a perturbação da paz externa. O honesto é regulado pelo conselho, pela obrigação interna, que, mediante a esperança da recompensa divina, prescreve a obtenção da paz interna. Segundo Thomasius, a lei natural stricto sensu é aquela que concerne à obrigação externa e, pois, o justo, cujos preceitos combatem o “mal extremo”, isto é, a perturbação da paz externa, sem a qual os estultos sequer poderiam ser guiados pelos sábios e, assim, a própria humanidade pereceria:
A lei natural denota sempre os princípios das coisas morais <moralia> que dizem respeito ao bom externo e às regras do justo, ou seja, os deveres dos homens para com os demais; assim, dos negócios em que, per se, perturba-se a socialidade ou a paz externa é dito [serem] males absolutos [ou extremos]. (Observatio 27, § 52).10
Em função de a paz externa ser uma condição necessária, mas não suficiente, para a busca e obtenção da paz interna, as regras do justo são mais “urgentes” do que as do honesto, e, assim, podem ser coagidas. No entanto, numa hierarquia de valor moral, são as regras do honesto que ganham precedência: elas são as mais “nobres”, por guiarem o homem ao bem completo:
As regras do justo são mais necessárias, pois sem [elas] o gênero humano estaria perdido [...]. As regras do honesto têm uma natureza mais excelente e nobre, pois conduzem os homens ao sumo grau de felicidade [a saber, a paz interna – DKT] e sem tais preceitos ninguém pode ser verdadeiramente sábio. (Fundamenta, lib. I, cap. 6, § 79).
Resumindo o que foi exposto até aqui: para Thomasius, o justo repousa em uma obrigação externa, por intermédio do comando (imperium ou Befehl), o qual, por ser estritamente necessário para a conservação da paz externa, é externamente coercitível através de penas ou sanções; já o honesto repousa somente numa obrigação interna, por meio do conselho (consilium ou Ratschlag), que não pode ser externamente coagido. A coercitividade externa, por conseguinte, é o critério pelo qual justo e honesto, comando e conselho se distinguem. Pelo fato de o intelecto não ter influência sobre a vontade, a obrigação é remetida ao arranjo das inclinações do homem, à coerção (psicológica) pelo medo das penas e pela esperança das recompensas. A obrigação surge apenas com a pena ou recompensa ligada à norma e somente tem sentido em virtude de a vontade humana ser corrompida e não desejar naturalmente o bom. Ela é uma reação afectiva da vontade, uma reação a uma relação ou dada naturalmente (por Deus) ou arbitrariamente produzida (pelo homem) entre norma e punição ou recompensa. Apenas na obrigação externa jurídica, ligada ao justo e ao comando, a coerção psicológica sentida pela vontade se torna coação física para o cumprimento da norma; na obrigação interna ética, ligada ao honesto e ao conselho, a coerção psicológica sentida pela vontade não pode se tornar uma coação física para o cumprimento da norma.
Note-se, para finalizar, que Thomasius realiza, na Observatio e nos Fundamenta, uma reviravolta na relação entre obrigação externa e interna, ou entre ius perfectum e ius imperfectum, a qual prevalecia desde Grotius e que o próprio Thomasius ainda apresentava, nas Institutiones. Nestas lê-se:
Primeiro, direito é dividido em perfeito, que Grotius denomina faculdade, e imperfeito, ou, de acordo com ele, uma aptidão. O primeiro é o poder pelo qual eu posso coagir outrem que não quer satisfazer sua obrigação a realizar o que é devido. O segundo, pelo contrário, é aquele no qual a realização da obrigação é deixada à vergonha e à consciência moral da pessoa que tem a obrigação correspondente ao direito. (Institutiones, lib. I, cap. 1, § 104).
Para o Thomasius das Institutiones, o direito ou obrigação perfeita se configura como uma obrigação passível de ser coagida, ao passo que o direito ou obrigação imperfeita não pode ser coagida, sendo objeto de pudori ac conscientiae daquele que deve realizar algo, como, por exemplo, no caso da relação entre súdito e superior, o qual tem uma obrigação imperfeita para com seus comandados (Institutiones, lib. I, cap. 1. § 111). Ou seja, não há propriamente coerção e, assim, obrigação em sentido estrito relativamente aos deveres imperfeitos. O Thomasius dos Fundamenta recusa explicitamente a divisão grotiana do direito em perfeito e imperfeito (Fundamenta, lib. I, cap. 5, § 13) e também a divisão tradicional da obrigação em perfeita e imperfeita. Segundo ele, “[...] não existe nenhuma obrigação imperfeita. Como a obrigação interna é mais perfeita do que aquela externa, ela não pode ser definida como imperfeita e a outra como perfeita.” (Fundamenta, lib. I, cap. 5, § 14).
Assim, com a mudança realizada na Observatio, a nobilissima obligationis species, ou seja, a obrigação interna baseada no conselho, e não no comando, torna-se protótipo de toda forma de obrigação e, não coincidentemente, a obrigação “própria do sábio”, “[...] pois ele teme o mal necessário e espera o bem necessário” (Fundamenta, lib. I, cap. 4, § 64), isto é, o mal e bem divinos (e não os humanos, como no caso da obrigação externa) (Fundamenta, lib. I, cap. 4, § 63). O ser humano apenas atinge plenamente o “sumo bem” (Fundamenta, lib I. cap. 6, § 72) na obediência às regras do honesto, ou seja, na adesão à obrigação interior, aquela que mais bem equaliza a relação entre intelecto e vontade, por um lado, e a moderação das paixões humanas, por outro. Como Thomasius escreve, “[...] nós nos definimos como obrigados a nós mesmos e assim [...] impomos uma lei a nós mesmos <legem ponamus nobismet ipsis>.” (Fundamenta, lib. I, cap. 5, § 18, grifo meu). Como se sabe, tal noção de uma lei autoimposta ou, se se deseja, autônoma é retomada e tornada célebre por Kant.
2 A DOUTRINA DOS DEVERES NO JUS NATURAE LATE DICTUM – A METAFÍSICA DOS COSTUMES NO QUADRO PÓS-THOMASIANO
A distinção thomasiana entre obrigação interna e obrigação externa como pertencentes, respectivamente, à ética e ao direito foi retomada e aprofundada por uma série de autores, antes de chegar à sua formulação canônica em Kant e encontrar sua culminação histórica na derrocada da tradição jusnaturalista, no século 19. Com tal distinção, Thomasius se volta contra duas compreensões da relação entre ética e direito: a da chave aristotélica da prudentia architectonica e a dos officia humanitatis, seu charitatis de parte da tradição jusnaturalista secular.
Em outras palavras, com Thomasius, direito e ética começam a ser diferenciados de acordo com os pares conceituais coercitividade e não coercitividade, obrigação interna e obrigação externa – portanto, não mais como (à moda da tradição aristotélica anterior a Thomasius) uma “[...] doutrina geral do dever (direito natural) e uma doutrina particular da prudência (ética), por conseguinte, entre teoria normativa <Normtheorie> e instrução prática <praktische Anweisung>” (SCHNEIDERS, 1971, p. 316), ou, ainda (como ainda ocorria no interior da tradição do direito natural secular, por exemplo em Pufendorf e mesmo em Wolff), segundo a concepção dos deveres jurídicos como uma mera classe de deveres para com os outros, a saber, a classe dos deveres coercitivos ou perfeitos, em oposição a deveres de amor e de humanidade, que podiam tornar-se externamente coercitíveis, caso o legislador assim o desejasse (SCHNEIDERS, 1971, p. 320-321).
É Thomasius quem torna os deveres jurídicos uma classe normativa autônoma, a partir da clivagem entre obrigação externa e obrigação interna – esta, sem depender diretamente de Deus, ganha dignidade própria e, assim, a coercitividade externa torna-se a marca distintiva dos deveres jurídicos. Ora, qualquer leitor da Metafísica dos Costumes de Kant sabe que a divisão da obra se baseia em tal oposição interno/externo, coercitível/não coercitível: a doutrina do direito diz respeito à obrigação externa e a deveres externamente coercitíveis, enquanto a doutrina da virtude, à obrigação interna e a deveres externamente não coercitíveis. Contudo, antes de passar à Metafísica dos Costumes, cumpre mencionar como tal distinção entre obrigação externa e obrigação interna chega a Kant, através de dois autores em que baseou suas preleções sobre filosofia prática e direito natural: respectivamente, Alexander Baumgarten e Gottfried Achenwall.
Baumgarten – cujo pensamento foi inspirado por Henrich Köhler, um aluno de Thomasius (RÜPING, 1968, p. 130; SCATTOLA, 2008; SCHWAIGER, 2008) – concebe a filosofia prática como a ciência das obrigações <obligatia> do homem, na medida em que elas podem ser conhecidas sem a fé (Initia, § 1).11 E essas obrigações seriam divididas conforme o quadro thomasiano: internas e externas (Initia, § 56), amparadas, respectivamente, numa coerção moral interna (Initia, § 51) e externa (Initia, § 52). Segundo Baumgarten, “[...] a ética seria a ciência das obrigações internas de um homem no estado natural” (Ethica, § 1), já o direito, ao menos aquele estrito (externum, cogens, plenum, perfectum – Initia, § 64), diria respeito a uma obrigação exterior, baseada numa coerção moral exterior impulsionada pelo medo (Initia, § 52). O que definiria a obrigação exterior em oposição à interior seria a possibilidade de, por meio dela, ser extorquida uma determinação livre do sujeito por parte de outrem permitido a fazê-lo:
A obrigação a uma determinação livre por extorsão <extorsio> permitida a um outro homem é exterior (completa, perfeita); as outras obrigações são as obrigações interiores (menos completas, imperfeitas) [...]. Nós somos obrigados interiormente, se e na medida em que uma determinação livre, à qual nós somos obrigados, não nos é apresentada como extorquível. (Initia, § 56).
Todavia, Baumgarten prossegue, é equivocado considerar a obrigação externa, devido a seu caráter perfeito, como sempre mais forte que a obrigação interna. Segundo ele, a obrigação externa “[...] não pode jamais existir sem a obrigação interior; ora, a obrigação interior tem frequentemente lugar sem a obrigação externa.” (Initia, § 57). Para ele, por conseguinte, a obrigação interna, assim como ocorria em Thomasius, caracteriza-se como a nobilissima obligationis species.
Achenwall – que, de acordo com Rüping (1968, p. 131), representaria a “[...] síntese mais palpável de elementos wolffianos e thomasianos” – acolhe as noções de Thomasius sobre deveres internos e externos, bem como a coercitividade como marca distintiva de direito em relação à ética. Achenwall identifica obrigação moral com obrigação interna, e obrigação jurídica com obrigação externa:
A obrigação jurídica, em decorrência de cuja violação compete a faculdade aos homens de usar de forma lícita a força contra aqueles que a violam, ou, ainda, [a obrigação] que se dá através do medo da coerção humana, é denominada obrigação externa. A obrigação, pois, seja ela natural ou positiva, que pode ser distinguida da obrigação jurídica é a que se dá por medo das punições divinas, é a obrigação moral, e, nessa medida, a obrigação moral é chamada obrigação interna. Portanto, obrigação moral e interna é uma e a mesma. (Prolegomena, § 112).12
Decerto, prossegue Achenwall, quanto à ação exigida, a obrigação moral/interna pode coincidir com a obrigação jurídica/externa. Contudo, a obrigação meramente interna e a obrigação meramente externa, os “tipos ideais” de cada uma delas, são as seguintes: “[...] a obrigação interna é chamada, pois, de obrigação no fórum divino (interno), assim como a obrigação externa no fórum humano (externo).” (Prolegomena, § 112). Trata-se, no limite, portanto, de obrigações que resultam do medo das penas a serem atribuídas à transgressão das ações prescritas por ambas as modalidades de obrigação:
Uma obrigação jurídica que é produzida pelo medo da coerção humana, i.e., pela qual um homem é obrigado a um homem, é chamada uma obrigação externa (uma obrigação no tribunal humano ou externo); uma [obrigação] que é produzida pelo medo da punição divina, i.e., pela qual um homem é obrigado a Deus, é chamada uma obrigação interna (uma obrigação no tribunal divino ou interno, no tribunal da consciência moral). (Ius naturae, I, § 49).
A ética seria a ciência das obrigações internas, ou seja, o conhecimento das leis naturais imperfeitas e, pois, filosofia moral em sentido estrito, ao passo que o direito (perfeito) seria o conhecimento das leis naturais perfeitas e, por isso, direito natural em sentido estrito (Ius naturae, I, §§ 26, 36 e 51).
Para esses autores, a oposição entre obrigação externa e obrigação interna como base para a distinção entre direito e ética é a divisão central da filosofia moral compreendida em sentido lato – isto é, segundo essa tradição, a divisão central do ius naturae latu sensu. Assim como Kant compreendia sua metafísica dos costumes como uma Sittenlehre ou philosophia moralis em sentido amplo (MS, AA 06: 379), Thomasius concebe o jus naturae late dictum como o conjunto completo da filosofia moral, incluindo a ética, a política e o direito como jus naturae em sentido estrito:
[O] direito natural late dictum compreende toda a filosofia moral, isto é, a ética e a política. A ética, decerto, apresenta os princípios do honesto, e a política, os princípios do decoro. O direito natural stricte dictum, pelo contrário, ao apresentar particularmente os princípios do justo e do injusto, distingue-se sensivelmente da ética e da política. (Fundamenta, lib. I, cap. 5, § 58).13
Essa mesma noção de um jus naturae late dictum como o conjunto da filosofia moral, à qual pertencem tanto o direito (estrito) como a ética, é retomada por Baumgarten:
O direito natural no sentido mais lato possível <Jus naturae latissimum> compreende todas as leis naturais [...] [isto é], as leis absolutamente necessárias físicas, psicológicas [...], e as leis morais, interiores e exteriores [...]. O direito natural em um sentido mais lato <jus naturae latius dictum> é o conjunto das leis naturais que obrigam o homem [...]. E é dito da filosofia prática considerada objetivamente [...] que ela compreende as leis morais naturais, tanto interiores quanto exteriores. Uma parte deste direito, a saber, o conjunto das leis naturais exteriores, ou seja, as leis coercitíveis <cogentium>, é o direito natural em sentido estrito <jus naturae stricte dictum> (coercitível, exterior), que se distingue dos conselhos e das leis interiores e persuasivas [...] (Initia, § 65).
Como a filosofia moral, em seu conjunto, é compreendida como um direito natural em sentido amplo, não estranha que ela seja concebida, como em Kant, enquanto um sistema de obrigações e deveres que se dividem, por sua vez, em obrigações externas e internas e em deveres jurídicos e éticos.
Essas são apenas algumas provas de que Kant, ao menos no que diz respeito ao quadro conceitual básico e à sua terminologia, ainda se movia no campo do direito natural secular – e, mais especificamente, da tradição aberta por Thomasius. Como afirma Werner Schneiders (1971, p. 336),
[...] na elaboração da distinção entre direito e moral, assim como na preservação de sua unidade, Kant parte tanto histórica como conceitualmente de um sistema de conceitos desenvolvido por Thomasius e a partir dele. A distinção de legalidade e moralidade desenvolve a distinção de deveres jurídicos e morais coercitíveis e não-coercitíveis. No seu sistema conceitual, que surgiu de seus debates com Baumgarten e Achenwall, Kant faz uso da distinção usual entre interno e externo, coercitível e não-coercitível, perfeito e imperfeito.
Com efeito, Kant concebe sua Metafísica dos Costumes de 1797 como um “sistema da doutrina universal dos deveres”, o qual se divide, por sua vez, “[...] no sistema da doutrina do direito (ius), que é adequada para as leis externas, e [no sistema] da doutrina da virtude (ethica), que não é adequada para elas.” (MS, AA 06: 379). De resto, assim como Thomasius, Kant denomina os deveres de virtude como officia honestatis e os deveres jurídicos como officia iuris ou iusti (p.ex. MS, AA 06: 394; V-MS/Vigil, AA 27: 582). A separação entre direito e ética e de seus respectivos deveres se dá com base na exterioridade e interioridade das respectivas legislações. Na visão de Kant, uma legislação qualquer deve possuir dois elementos: por um lado, uma lei que determina uma certa ação como devida, isto é, como conforme a um dever estipulado pela lei, e, por outro, um móbil <Triebfeder>, o qual prescreve de que maneira a lei deve ser seguida ou, ainda, a motivação para que o dever estipulado pela lei seja cumprido pelo agente.
Em outras palavras, toda legislação fornece um parâmetro normativo, tanto objetivo (lei) como subjetivo (móbil), para a realização de determinadas ações (MS, AA 06: 218). De acordo com essa visada, a ética se opõe ao direito, não tanto pelas ações prescritas objetivamente, que, por certo, podem ser exteriores e coincidirem em ambas as legislações; o que distingue a legislação jurídica da legislação ética é o móbil exigido, a motivação que conduz o agente a agir em conformidade ao dever estipulado pela lei. À diferença das legislações, correspondem dois diferentes modos de obrigação, a saber, o modo de obrigação ética, relativo à liberdade interna, e o modo de obrigação jurídico, relativo à liberdade externa. Realizar ações, pois elas são deveres, significa “[...] não ter em conta nenhum outro móbil, [trata-se de um comando] que pertence apenas à legislação interior.” (MS, AA 06: 220). Ou seja, na legislação ética, ocorre um modo de obrigação distinto daquele presente na legislação jurídica; trata-se de uma autocoerção ou coerção interna (cf. MS, AA 06: 394), muito embora a ação realizada, isto é, a matéria da obrigação, possa ser semelhante àquela requerida pela legislação jurídica. Esta, por sua vez, pelo fato de não exigir que a própria ideia de dever sirva de móbil para o arbítrio, envolve uma coerção externa, isto é, a ação requerida pode ser externamente imposta, o agente pode ser coagido por outrem a realizá-la.
Bem entendido, é possível estar obrigado de duas formas distintas a realizar uma mesma ação: relativamente à mesma matéria da obrigação (à ação praticamente necessária), posso estar sujeito a duas formas de obrigação (ao modo de obrigação ética ou interna, ou ao modo de obrigação jurídica ou externa). A esse respeito, o conhecido exemplo de Kant é ilustrativo: um determinado sujeito pode cumprir um contrato (a ação praticamente necessária), seja por medo das sanções juridicamente estabelecidas ligadas à conduta contrária (modo de obrigação jurídica), seja porque ele acredita que fazê-lo é um dever ao qual assente (modo de obrigação ética) (MS, AA 06: 220). Em suma, um mesmo dever pode ser cumprido conforme uma coerção exterior ou interior, ou seja, uma “[...] coerção universalmente recíproca que está necessariamente de acordo com a liberdade” externa de todos (MS, AA 06: 232), ou uma “autocoerção <Selbszwang> [...] segundo o princípio da liberdade interna” (MS, AA 06: 394) – no primeiro caso, trata-se da legislação jurídica e, no segundo, da legislação ética: “O conceito de dever é em si já o conceito de uma necessitação (coerção) do arbítrio livre pela lei, sendo que esta coerção pode ser exterior ou autocoerção.” (MS, AA 06: 379).
Vê-se, aqui, uma pequena mostra da filiação – implícita, ressalte-se – de Kant à clivagem thomasiana entre obrigação interna e obrigação externa, como base normativa para a diferenciação entre ética e direito no quadro de sua doutrina de deveres. É certo que, ao enfatizar as continuidades, passei ao largo das inúmeras rupturas que Kant realiza – implícita e explicitamente, ressalte-se – no quadro dessa tradição. A noção de obrigação interna não mais se dirige a Deus como legislador ou criador da ordem natural, mas, antes, à própria racionalidade do agente moral. Da mesma maneira, na exigência de obrigação interna como autocoerção, não se apela expressamente à consciência moral ou ao fórum interno/divino – ao menos, decerto, no momento de fundamentação da necessitação sentida pelo agente, embora persistam traços significativos dessa matriz forense em outros momentos da filosofia prática kantiana (cf. TREVISAN, 2018). Elucidar o enraizamento da filosofia prática kantiana nas inúmeras e extensas discussões do jusnaturalismo da Aufklärung auxilia a compreender como criação ou “invenção” kantiana da “[...] concepção de moralidade como autonomia” (SCHNEEWIND, 1998, p. 3) não se deu ex nihilo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão, mencionemos uma especificidade da doutrina kantiana dos deveres que poderia muito bem ser definida como uma aporia. Em sua Metafísica dos Costumes, Kant rompe com a dicotomia tradicional entre deveres perfeitos coercitíveis externos e deveres imperfeitos não coercitíveis internos, introduzindo uma nova classe de deveres em sua ética, ou melhor, na Doutrina da Virtude: os deveres perfeitos não coercitíveis internos,14 isto é, deveres perfeitos para consigo mesmo (MS, AA 06: 421-444), como, por exemplo, a proibição do suicídio. À luz do contexto jusnaturalista herdado por Kant, tais deveres parecem ocupar um não lugar.
Ora, como destacado acima, uma Doutrina do Direito lida com deveres que podem ser externamente coagidos, enquanto uma Doutrina da Virtude lida com deveres que não podem ser externamente coagidos, e os deveres que podem ser externamente coagidos são sempre deveres perfeitos, os quais exigem a comissão ou omissão de determinadas ações. Segundo esse critério, a Doutrina da Virtude teria, pois, apenas deveres imperfeitos, que não podem ser externamente coagidos. Como então ela poderia ter também deveres perfeitos, que exigem a omissão de determinadas ações (p. ex., do suicídio), mas que não podem ser externamente coagidas?
Trata-se, pois, de uma aparente excrescência sistemática na divisão dos deveres que, de alguma maneira, demorou a ser devidamente elaborada por Kant e que, ademais, se vincula a outra peça doutrinal de difícil encaixe sistemático: o direito jurídico interno (MS, AA 06: 237). Na Metaphysik der Sitten Vigilantius, datada do semestre de inverno de 1793/1794, Kant trata dos deveres perfeitos para consigo mesmo, no interior de uma legislação jurídica. Os deveres de não suicidar-se, de não prostituir-se etc. são derivados do honeste vive entendido como a proteção da personalidade jurídico-moral e do fim da humanidade em si mesmo (V-MS/Vigil, AA 27: 592ss; esp. 600). Já na Metafísica dos Costumes, o honeste vive parece restringir-se à afirmação do valor intrínseco da própria pessoa na relação com os outros, não na relação consigo mesmo.
De forma paradoxal, o dever jurídico interno, o honeste vive, não é um dever externamente coagido e tampouco um dever interno de virtude – trata-se, se se deseja, de um dever jurídico para consigo mesmo não coercível15 ou, ainda, uma certa obrigação jurídica interna (ou auto-obrigação) relacional, a qual, assim como a autocoerção ética, é condição de possibilidade da obrigação de modo geral (cf. MS, AA 06: 417). O “direito da humanidade em nossa própria pessoa” (MS, AA 06: 240) é descrito, nos Trabalhos Preparatórios para a Doutrina da Virtude, como “[...] precedendo todas as outras obrigações” e “[...] condição suprema de todas as leis do dever”:
[O] livre arbítrio da pessoa permanece propriamente sob a ideia de sua personalidade [...] e essa obrigação para consigo mesmo pode, pois, também denominar-se o direito da humanidade em nossa própria pessoa, o qual precede todas as outras obrigações. [O] direito da humanidade em nossa própria pessoa não pertence, pois, à Doutrina da Virtude, pois [ele] não exige que a ideia do dever para consigo mesmo seja ao mesmo tempo o móbil das ações: porém, ele é a condição suprema de todas as leis do dever, pois o sujeito, de outro modo, deixaria de ser um sujeito dos deveres (pessoa) e teria de ser contado entre as coisas. Se, pois, a autorização para dispor de objetos segundo o arbítrio chama-se o direito em geral, então a [autorização de dispor] da própria pessoa é limitada mediante o direito da humanidade em nós mesmos, ao qual não nos é permitido causar dano e cujo apreço <Hochachtung> não pertence à Doutrina da Virtude, mas, antes, à Doutrina do Direito enquanto mera condição limitante. (VATL, AA 23: 390-391).
A quaestio crucis de se, nessa aporia sistemática representada pelo direito da humanidade em nossa própria pessoa ,encontra-se, em plena Doutrina do Direito, alguma espécie de enganche ético (contra GEISMANN, 2006, p. 112ss) e, pois, a nobilissima obligationis species, deve ser, contudo, tema de uma futura investigação.
The metaphysics of morals as a system of duties: the distinction between right and ethics in Thomasius and Kant
Abstract: This paper presents a brief contribution to the study of the historical sources of Kant's practical philosophy, discussing the Kantian project of a metaphysics of morals as a doctrine of duties in the context of German natural law of the 17th and 18th centuries. At first, Christian Thomasius’ distinction between internal and external obligation is exposed as the basis for the differentiation between legal duties and ethical duties. Then the Kantian opposition between a doctrine of right and a doctrine of virtue is discussed against the background of Alexander Baumgarten’s and Gottfried Achenwall’s reception of Thomasius.
Keywords: Kant. Thomasius. Natural Law. Right. Ethics.
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Recebido: 25/10/2022
Aceito: 21/02/2023
1 Professor Adjunto de Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0269-7847. E-mail: diego.kosbiau@ufsc.br.
2 As obras de Kant são citadas segundo a Akademie Ausgabe (Kants gesammelte Schriften: herausgegeben von der Deutschen Akademie der Wissenschaften, anteriormente Königlichen Preussischen Akademie der Wissenschaften, 29 vols. Berlin, Walter de Gruyter, 1902– ) e de acordo com o seguinte modelo: MS, AA 06: 375, ou seja, a abreviação do nome da obra seguida do volume e da página da edição da Academia. Foram utilizadas as seguintes abreviaturas: GMS (Fundamentação da Metafísica dos Costumes), MS (Metafísica dos Costumes), V-MS/Vigil (Metafísica dos Costumes Vigilantius).
3 Claro que, com isso, não se pretende limitar as fontes da filosofia prática de Kant a esse recorte preciso. Para além da tradição alemã, sabe-se que autores britânicos e franceses exerceram forte influência no pensamento kantiano – sempre, contudo, no contexto de sua recepção no ambiente filosófico alemão. Cf., por exemplo, os estudos clássicos de Henrich (1963, 2009) e Schmucker (1961).
4 “Elucidar Kant significa derivá-lo historicamente. Sem esta exata derivação histórica não são compreensíveis nem a filosofia crítica nem seu paulatino surgimento no Kant mesmo. Pois a filosofia crítica não veio à tona subitamente, mas antes surgiu paulatinamente, tanto na história como em seu próprio autor.” (FISCHER, 1869, p. 29).
5 Uma contribuição decisiva neste recorte histórico é feita por Wolfgang Kersting (2004). Para uma análise sistemática da Metafísica dos Costumes como um sistema de deveres éticos e jurídicos, remeto à minha obra TREVISAN, 2019.
6 O título completo é Institutiones Jurisprudentiae Divinae, livri três. In quibus fundamenta Juris Naturalis secundum Hypotheses illustris Puffendorffi perspicue demonstratur, et ab objectionibus dissentientium, potissimum D. Valentini Alberti, professoris lipsensis, liberantur, fundamenta itidem Juris Divini Positivi Universalis primum a Jure Naturali distincte secernuntur et explicantur. Edition septima prioribus multo correctior,
7 As obras Institutiones iurisprudentiae divinae e Fundamenta iuris naturae et gentium de Thomasius são citadas pelo número do livro, capítulo e parágrafo, nessa ordem, precedidas pelas abreviações Institutiones e Fundamenta, respectivamente. Foram utilizadas as edições originais em latim, sendo cotejadas as traduções alemãs (respectivamente, Drey Bücher der Göttlichen Rechtsgelahrheit e Grundlehren des Natur- und Völkerrechts), feitas à época e revistas pelos próprio Thomasius. Já a Observatio de natura legis tam divinae, quam humanae é citada pela abreviatura Observatio 27, seguida pelo parágrafo.
8 Ainda sobre a correção que Thomasius afirma ter feito em relação às Institutiones: “Facile hinc patet, quod obligatio in lib. I. Institutiones [...] cap. 1, §§ 134-5 definita sit obligatio non in genere, sed obligatio saltem externa, et quod obligatio interna sit vinculum voluntatis aeque forte, si non fortius, quam obligatio externa. Imo prudentiores sunt, qui obligatione interna duce actiones instituunt, quam qui externa.” (Observatio 27, § 10).
9 “[B]uscando levar os estultos de uma condição de infelicidade a uma de felicidade, a norma dos sábios se refere a três princípios fundamentais: a procurar a paz interna, ou seja, a moderar a estultice das três paixões primárias; a promover a paz externa por meio de ações pacíficas; e a evitar a perturbação da tranquilidade externa com a omissão das ações que perturbam a convivência pacífica.” (Fundamenta, lib. I, cap. 4, § 73). Tratamos do sábio thomasiano e de seu papel no Estado em Trevisan (2016).
10 Cf. Fundamenta, lib I, cap. 6, § 79: “As regras do justo são mais necessárias, pois sem elas o gênero humano estaria perdido e os estultos não poderiam ser conduzidos para a vida da sabedoria.”
11 As obras Initia philosophiae practicae e Ethica philosophica de Baumgarten serão citadas com as abreviaturas Initia e Ethica, respectivamente, seguidas do parágrafo.
12 As obras Ius naturae in usum auditorum e Prolegomena iuris naturalis de Achenwall serão citadas com as abreviaturas Ius naturae e Prolegomena, respectivamente, seguidas pelo número do livro (no caso do Ius naturae) e do parágrafo.
13 Cf. Fundamenta, lib. I, cap. 5, § 30: “O direito natural [...] é tomado em sentido lato, na medida em que inclui todos os preceitos morais que derivam da sã razão, sejam estes as regras do justo ou as do honesto e do decoro, ou em sentido estrito, como os preceitos do justo, já que se distingue do honesto e do decoro.”
14 Kant insinua isso já na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Na conhecida exposição da divisão entre deveres perfeitos e imperfeitos, na segunda seção da Fundamentação, Kant afirma estar indo “[...] contra a terminologia adotada nas escolas”, ao definir os deveres perfeitos como aqueles que “[...] não permitem exceção” (GMS, AA 04: 421) e não, portanto, exclusivamente como deveres (externamente) coercitíveis.
15 Sobre isso, Hirsch nota que, “[...] com o dever do honeste vive e com os deveres perfeitos para consigo mesmo na Doutrina da Virtude, Kant aponta para uma classe própria de deveres, de deveres jurídicos não-coercitíveis.” (2017, p. 197). O autor argumenta que a coercitividade deve ser marca de todo dever perfeito, incluindo os deveres jurídicos internos e os deveres éticos perfeitos para consigo mesmo, de modo que. mesmo os deveres jurídicos internos, ligados ao honeste vive, e os deveres éticos perfeitos para consigo mesmo, devem ser incluídos na legislação jurídica externa (HIRSCH, 2017, p. 199; p. 202).