COMPREENSÃO, APRENDIZAGEM E LINGUAGEM: UMA CRÍTICA À ABORDAGEM HERMENÊUTICA1
Rainri Back2
Resumo: Este ensaio almeja criticar a concepção de linguagem de Hans-Georg Gadamer, com base na qual ele justifica por que a aprendizagem somente é possível pela conversação. Para Gadamer, a linguagem é fundamentalmente palavra, embora ele considere linguagem formas não verbais de comunicação, como gestos, expressões fisionômicas e olhares. Porém, ele não elabora uma concepção não verbal de linguagem, para explicar por que tais expressões e tantas outras deveriam ser consideradas linguagem. Enfim, os aspectos fundamentais do desenvolvimento dessa crítica podem ser reunidos em um problema relacionado à compreensão e aprendizagem. Uma vez que a linguagem deve ser compreendida e aprendida, se ela é palavra, como é possível aprendê-la antes de dominar a palavra, durante a infância? Para respondê-lo, primeiro, em um exame amplo de ensaios de Gadamer, escritos em cinco décadas, demonstra-se a ausência de uma concepção pré-predicativa de linguagem em seu pensamento. Em seguida, elabora-se um esboço de uma concepção pré-predicativa de linguagem, pela qual se pretende mostrar como é possível aprender a linguagem, antes mesmo de dominar a palavra.
Palavras-chave: Compreensão. Aprendizagem. Experiência. Pré-predicação. Linguagem.
INTRODUÇÃO
Este ensaio pretende concluir o que eu venho desenvolvendo em outros dois. Primeiro, “Compreensão e aprendizagem: uma abordagem hermenêutica” (BACK, 2023a). Nesse trabalho, mostrei como a aprendizagem se relaciona com e, sobretudo, se diferencia da compreensão. Depois, “Compreensão, aprendizagem e linguagem: uma abordagem hermenêutica” (BACK, 2023b), no qual demonstrei a razão pela qual a linguagem deve ser a condição de possibilidade da compreensão e aprendizagem. Em ambos os ensaios, intencionalmente, eu me mantive nos limites da concepção de linguagem de Hans-Georg Gadamer. Neste ensaio, por sua vez, meu intuito consiste em finalmente criticar sua concepção de linguagem. Para Gadamer, a linguagem se resume fundamentalmente à palavra. É exatamente o que, aqui, pretendo submeter à crítica, a fim de esboçar, em contrapartida, uma concepção pré-predicativa de linguagem.
Há um ponto para onde convergem meus três ensaios – um problema irresolvido em uma conferência de Gadamer, intitulada Educação é educar-se. Na introdução (2000, p. 10), o filósofo promete justificar por que a aprendizagem só é possível pela conversação. Porém, ele não cumpre o que anuncia. Em meus dois ensaios supracitados, eu procuro desenvolver tal justificação. No primeiro, mostrei como a aprendizagem, esquecida na conferência de Gadamer, mantém com a compreensão uma relação de condicionamento. – A compreensão é a condição primeira de possibilidade da aprendizagem. Afinal, ninguém aprende algo que ainda lhe é incompreensível. Neste ensaio, acrescento outro aspecto, que passou despercebido no primeiro ensaio. – A aprendizagem, por sua vez, aprimora a compreensão. Trata-se, portanto, de uma relação de condicionamento mútuo, apesar da primazia da compreensão sobre a aprendizagem.
Todavia, em que a aprendizagem se diferencia da compreensão? A compreensão consiste resumidamente na apreensão do sentido de algo estranho à primeira vista. Mas o que significa apreender o sentido de algo? Significa relacioná-lo com outras coisas já familiares e, assim, acomodá-lo em meu horizonte de compreensão. Já a aprendizagem envolve necessariamente uma habilidade prática. Qual? Realizar eu mesmo uma atividade associada à coisa compreendida. Por exemplo, compreender bem um texto não implica a habilidade de eu mesmo escrever bem textos. É o que vale para qualquer coisa compreensível. Posso compreender bem um cálculo matemático, contudo, assim, ainda não adquiri a habilidade de calculá-lo; posso compreender a operação de uma máquina, mas, assim, ainda não adquiri a habilidade de operá-la; posso compreender uma pintura, porém, assim, ainda não adquiri a habilidade de pintá-la etc.
No segundo ensaio, pretendi desenvolver, enfim, aquela justificação que Gadamer não apresenta em sua conferência Educação é educar-se. – Por que, afinal, a aprendizagem só seria possível, segundo ele, pela conversação? Para responder, convém frisar um ponto fundamental. A conversação, de acordo com Gadamer (2003b, p. 575), é o “autêntico ser” da linguagem.3 Portanto, concerne à linguagem a proposição segundo a qual a conversação é o que possibilita a aprendizagem. E a linguagem, para Gadamer (2003b, p. 613), é uma determinação absolutamente universal; tudo o que é compreensível precisa sê-lo na linguagem. Ora, se a compreensão é o que possibilita a aprendizagem, a consequência me parece claramente imperiosa. – Tudo o que pode ser aprendido precisa sê-lo na linguagem, cujo “autêntico ser” é a conversação.
Resumidamente, eis a articulação lógica para justificar a proposição motivadora da conferência de Gadamer. Mais importante para a apresentação do problema motivador deste ensaio é sua concepção de linguagem. Gadamer a enuncia mais claramente, ao demonstrar uma proposição de Verdade e método, a qual, posteriormente, se tornou bastante notória. – “O ser que pode ser compreendido é linguagem”, afirma ele (2003b, p. 612, grifo do autor). Mas por quê? Para lhe conferir compreensibilidade, o ser humano precisa determinar em linguagem o ser mesmo do que lhe é compreensível. E como o faz? Pela palavra, eis o ponto. Ela confere à coisa “sua própria determinação”, argumenta Gadamer (2003b, p. 613). Em suma, sem a palavra, a coisa seria algo indeterminado. Ora, como compreender algo indeterminado? Conforme Gadamer parece supor, quanto mais indeterminada tanto menos compreensível é a coisa.
É fundamental, para interpretar corretamente a crítica desenvolvida aqui, compreender a razão pela qual linguagem, para Gadamer, é palavra. Ele se empenha em esclarecer, logo depois de enunciá-la, a proposição segundo a qual “o ser que pode ser compreendido é linguagem”. A fim de se referir ao modo como algo, qualquer coisa, se expressa em linguagem, ele (1999a, p. 479) recorre à expressão “vir-à-fala” (Zur-Sprache-kommen). Ora, o que é fala, se não palavra? É o que Gadamer confirma, na sequência da exposição, ao tratar da estrutura especulativa da palavra! “O que vem à fala”, conclui, “[...] não é algo [...] desprovido de fala, mas recebe na palavra sua própria determinação.” (2003b, p. 613). Não é demais frisar. – Sem a palavra, o que “vem à fala” seria algo indeterminado. Ao longo de sua vida, Gadamer não supera sua concepção de linguagem elaborada em Verdade e método. É o que ainda devo mostrar.
Apesar de persuasiva, sua concepção de linguagem enquanto palavra recai em um problema capcioso. Ninguém duvidaria, creio: a palavra precisa ser aprendida. Ora, se a palavra é condição da compreensão, como é possível compreender e, só então, aprender a palavra? Afinal, quem está aprendendo a falar se encontra em uma situação pré-verbal. Eis o problema motivador deste ensaio. Ele não só questiona a validade da pressuposição de Gadamer, em Verdade e método, segundo a qual linguagem é palavra; ele questiona ainda a consistência daquela proposição mais notória de Verdade e método: “O ser que pode ser compreendido é linguagem.” (2003b, p. 612, grifo do autor). Se o que pode ser compreendido deve sê-lo na linguagem, ora, só a palavra pode conferir compreensibilidade às coisas. Como seria possível compreender pela primeira vez a palavra, sem a possibilidade de recorrer à palavra para compreendê-la?
Se alguém afeito ao pensamento de Gadamer lesse tais críticas, muito provavelmente protestaria. – “Mas Gadamer, depois de Verdade e método, incluiu em sua concepção de linguagem expressões não verbais!” Luiz Rohden (2005, p. 228), por exemplo, observa claramente: “Gadamer amplia a concepção de linguagem”, desenvolvida em Verdade e método. Ele cita a seguinte passagem de um ensaio de Gadamer: “[...] há a linguagem dos olhos, a linguagem das mãos [...] tudo isto é linguagem.” (GADAMER apud ROHDEN, 2005, p. 228). Todavia, filosoficamente, não convém conceber a linguagem como um inventário; não basta acrescentar-lhe mais coisas, à medida que as críticas o exigem. É necessário desenvolver uma concepção de linguagem cujo conceito fundamente as expressões não verbais. Até onde sei, Gadamer nunca elaborou tal concepção, o que me motiva a desenvolvê-la, neste ensaio.
Apesar de considerar bastante claro o que acabo de dizer, o apego apaixonado ao pensamento de um filósofo tende a cegar os pontos fundamentais de uma crítica. Sim, eu sei muito bem, Gadamer pretende considerar linguagem o que “dizem” pinturas, esculturas, monumentos históricos, gestos, silêncio etc. Entretanto, como tais coisas “dizem” o que pretendem dizer? Se elas não recorrem à palavra, como elas expressam o que pretendem expressar? Só uma concepção pré-verbal, pré-predicativa de linguagem pode responder tais questões. Insisto em afirmar: Gadamer não elabora, ao longo de sua vida, uma concepção pré-verbal, pré-predicativa de linguagem; uma concepção pela qual a estrutura mais fundamental da linguagem possa ser desvelada ontologicamente, sem limitá-la à palavra; uma concepção pela qual seja possível explicar como a música, por exemplo, expressa algo sem se valer da palavra.4
Nessa perspectiva, de sorte a concluir esta introdução, preciso esclarecer um aspecto fundamental da minha abordagem de educação. Parto do que eu, em outro ensaio, chamo de concepção filosófica de educação (BACK, 2019).5 Afirmo “filosófica”, pois a concebo, a educação, em sua máxima universalidade, como cabe à filosofia conceber as coisas. Quando universalmente pensada, a educação consiste nas experiências graças às quais me torno diferente de quem até então eu vinha sendo. Por que a defino assim? Ora, é o aspecto mais essencial que pude discernir nas manifestações diversas da educação. Com efeito, a educação pode ser familiar, física, financeira, psicológica, moral, política, científica, acadêmica, técnica, artística, religiosa etc. Em todas, qual seria sua característica comum? Não encontro outra mais fundamental: alguém se tornando diferente de quem vinha sendo. Eis a determinação essencial da educação.
Eu contrasto minha concepção filosófica com o que resolvi chamar de concepção escolar de educação. “Escolar”, porque a educação se resumiria à relação em que alguém considerado/a professor procuraria ensinar algo a alguém tido/a como estudante. Assim, ela não passaria de uma relação profissional exercida, portanto, em instituições de ensino. A partir da posição prévia pela qual a educação pôde ser assim determinada, a filosofia não poderia respeitar o que a distingue, desde os gregos antigos, das chamadas ciências. Quando se volta para a educação, a filosofia, esquecida de sua essência, fatalmente se converte em uma “pedagogia filosófica”. Durante a Idade Média, a filosofia se submeteu às questões da teologia. Atualmente, em filosofia da educação, eu arriscaria sustentar, ela se submeteu a outra ciência, à pedagogia.
Enfim, pretendo seguir um itinerário. Primeiro, uma questão, diria, mais metodológica, a fim de me prevenir contra questionamentos às minhas críticas a Gadamer. Será necessário mostrar como ele não desenvolveu uma concepção de linguagem que pudesse acomodar o que chamo de expressões pré-verbais. Para tanto, revisarei seus ensaios escritos antes e depois de Verdade e método, a fim de evidenciar como Gadamer não elabora uma concepção pré-verbal de linguagem. Segundo, é necessário formular uma concepção de linguagem em que expressões não verbais possam ser genuinamente consideradas linguagem. Como já sugeri, não basta conceber a linguagem como palavra e, depois, simplesmente “ampliá-la”, como Rohden justifica e assim parece se convencer. Finalmente, apenas uma concepção pré-verbal de linguagem pode responder ao problema: como é possível aprender palavras, antes mesmo de falá-las?
1 GADAMER ELABOROU UMA CONCEPÇÃO PRÉ-VERBAL DE LINGUAEM?
Sem titubear, respondo: não, ele não elaborou tal concepção de linguagem. Para demonstrá-lo, estabeleci um método para realizar uma crítica tão abrangente quanto possível da concepção de linguagem de Gadamer. Eu dividi em décadas seus ensaios escritos antes e depois de Verdade e método. Desde antes, na década de 1950, examinei ensaios cujos temas me pareceram ou tratar explicitamente da ou, ao menos, tangenciar a questão da linguagem. Decerto, minha seleção inevitavelmente negligenciou certos ensaios de Gadamer sobre a linguagem, pois sua obra é vasta e, confesso sem receio, eu não a li inteiramente. Mesmo assim, dada sua abrangência significativa, meu exame assegura suficientemente, creio, minha resposta negativa à pergunta motivadora deste tópico. Se houvesse realmente, em Gadamer, uma concepção pré-verbal de linguagem, ela teria sido exposta em algum ponto dos ensaios aqui citados.
Nas décadas de 1950 e, principalmente, 1960, depois da publicação de Verdade e método, há vários ensaios dedicados à linguagem.6 Em todos, Gadamer pressupõe claramente uma concepção de linguagem como palavra. “O modo de ser de uma coisa só se expressa quando falamos sobre ela”, afirma ele (2004, p. 71, grifo meu) na conferência “O que é a verdade?”, proferida em 1957. Convém frisar: “só se expressa”. Portanto, encontra-se na palavra – e somente nela – a possibilidade de algo se expressar em seu ser. Mais importante é um ponto particular de dois ensaios.7 Como em outros momentos de sua obra, Gadamer recorre à comparação de Aristóteles (2005, p. 344) entre a apreensão de conceitos universais e um exército em fuga. Sem notar, creio, ele se depara com uma dimensão pré-verbal da experiência, mas não a torna fundamento de uma concepção radical de linguagem. Adiante, retornarei a este ponto.
Nas décadas de 1970 e 1980,8 é digno de atenção o ensaio “Até que ponto a linguagem prescreve o pensamento”, publicado em 1973. Gadamer reconhece expressamente: a experiência humana não se reduz à palavra, pois há a linguagem dos gestos e da fisionomia. Embora as chame de linguagem, ele (2004, p. 240, grifo meu) as determina simultaneamente como experiências “anteriores à linguagem.”9 Ora, como elas podem ser linguagem e, ao mesmo tempo, porém, anteriores à linguagem? Gadamer não parece sequer notar o paradoxo. Já em “Entre fenomenologia e dialética”, de 1985, ele situa a aprendizagem da fala entre as “experiências de sentido anteriores à linguagem” (2004, p. 12). Todavia, chamá-la de “processo de aprendizagem”, segundo Gadamer, “[...] é apenas uma façon de parler [jeito de falar].” Eis outro ponto ao qual pretendo retornar posteriormente, depois de apresentar todos os textos examinados.
Na década de 1990, enfim, Gadamer mantém sua perspectiva sobre a linguagem.10 Na seleção da bibliografia, incluí a conferência “Educação é educar-se”, proferida em 1999, embora nessa ocasião Gadamer não se dedique detidamente à linguagem. No entanto, em uma observação passageira, é possível discernir em sua noção de comunicação aquela concepção de linguagem como palavra. Há comunicação entre uma mulher grávida e seu filho, ele admite. Mas Gadamer (2000, p. 12) se apressa em esclarecer: “[...] não de natureza linguística.” Já em “Heidegger e a linguagem”, publicado em 1990, ele enfrenta o problema da “essência da linguagem”. Contudo, sua posição me parece inequivocamente clara. – A essência da linguagem consiste em desvelar algo, ou seja, em trazê-lo “para a palavra” (2000, p. 44). Mas “[...] a linguagem só é em verdade onde há diálogo”, afirma ele (2007a, p. 41, grifo meu). Ora, diálogo pressupõe necessariamente palavra.11
Depois da década de 1990, Gadamer praticamente encerra sua carreira filosófica.12 Além de estudar mais atentamente as obras citadas até aqui, eu ainda considerei importante ao menos consultar outras.13 Friso “consultar”, porque, evidentemente, não pude lê-las integralmente – empreendimento para o qual seria necessário muito mais tempo. Em nenhuma encontrei indícios de que ele tivesse investigado a linguagem como a investigou, nos ensaios citados. Em suma, admito, sem receio: meu esforço, para ser tão justo quanto possível em minha crítica a Gadamer, esbarra em certos limites. Ainda assim, sinto-me suficientemente seguro para afirmar uma coisa. – Gadamer não elaborou uma concepção pré-verbal de linguagem. Antes, ele sustentou consistentemente, durante cinco décadas, uma concepção de linguagem reduzida à palavra. No máximo, ela a ampliou, como defende Rohden, ao acrescentar-lhe outras experiências.
Até aqui considerei basicamente textos traduzidos para a língua portuguesa, os quais, vale notar, abrangem uma parte significativa da obra de Gadamer. Em alemão, no volume oitavo de suas obras completas, intitulado Ästhetik und poetik I, há alguns ensaios dedicados à linguagem. Destaco, em particular, “Grenzen der Sprache” e “Zur Phänomenologie von Ritual und Sprache”, publicados respectivamente em 1985 e 1992.14 Neles, é verdade, Gadamer (1999c, p. 407) afirma patentemente: “Aliás, linguagem não é apenas linguagem das palavras [Wortsprache]”. Há “[...] a linguagem dos olhos, [...] das mãos, indicações e designações.” Em suma, “qualquer gesticulação” é linguagem (1999c, p. 350). Entretanto, segundo qual fundamento tais expressões desprovidas de palavra devem ser consideradas linguagem? É o que Gadamer não desenvolve mais sistematicamente. Antes, ele se limita a algumas sugestões esparsas e genéricas.
Em ambos os ensaios, Gadamer (1999c, p. 350) defende: “[...] a linguagem deve ser vista não só como linguagem de palavras [Wortsprache] mas também como forma de comunicação.” Assim, a linguagem precisa ser pensada “em sentido amplo” [im weiteren Sinne]. Ela é “[...] toda comunicação, não só fala como também qualquer gesto, que se conjuga [mitspielt] com a relação linguística dos seres humanos” (1999c, p. 350). Perfeito! Mas, quando examina o modo como ele se comunicava com sua filha de dois anos e meio, Gadamer titubeia. Para ele (1999c, p. 357, grifo do autor), tal “[...] forma de comunicação ainda desarticulada semanticamente” parece ser “[...] um modo de diálogo pré-linguístico” [eine Art vorsprachlicher Dialog]. Novamente, deparo-me com aquele paradoxo do ensaio “Até que ponto a linguagem prescreve o pensamento”. Para ele, é uma experiência de linguagem e, ao mesmo tempo, de pré-linguagem.
Em certo momento, Gadamer até se aproxima da elaboração de uma concepção pré-verbal de linguagem. É o que ocorre, quando ele evoca em diversas oportunidades uma passagem dos Analíticos posteriores, em que Aristóteles ilustra como se formam conceitos universais. Aristóteles se pergunta como o ser humano apreende as premissas indemonstráveis nas quais se baseiam as demonstrações. Tais premissas, conforme Aristóteles (2005, p. 344, 99b 33), se fundam na maneira como o ser humano retém na alma as impressões da percepção. Assim, ele recorre a uma analogia que tanto chamou a atenção de Gadamer. É “[...] como quando ocorre uma retirada durante uma batalha”, diz ele (2005, p. 344, 100a 13). “Um homem se detém e o mesmo o faz outro e, em seguida, outro, até que a posição original seja recuperada.” Ora, como a analogia de Aristóteles explica a formação de conceitos universais?
Quando um exército foge, ele se dispersa e, assim, perde aquela unidade pela qual os soldados podem mostrar sua força em uma batalha. Analogamente, o ser humano vê certa coisa, depois outra e assim por diante. Porém, dispersas, tais percepções não detêm consistência alguma, que só pode ser adquirida quando elas se reúnem em torno de algo comum. Ora, a retenção de uma unidade na diversidade de coisas é o que determina a universalidade de um conceito. Eis a razão pela qual, segundo Gadamer, Aristóteles descreve mais sabiamente a aprendizagem da fala. Aprender a falar significa aprender a participar de um acordo em que seres humanos, apesar de suas diferenças, podem se reunir em torno de algo comum. Em geral, tal coisa comum se chama mundo. Para participar de tal acordo, portanto, a criança precisa discerni-lo, o que é comum a diversas coisas. Só então ela começa a falar. Eis a essência da linguagem.
Na aprendizagem da fala, Gadamer até detém sua atenção em um âmbito pré-verbal da experiência humana. Todavia, em vários momentos de sua obra, como já procurei mostrar, ele considera tal âmbito pré-linguístico anterior à linguagem. Eis a prova, convém destacar, de que, para ele, linguagem é palavra. Afinal, o que não é palavra é algo anterior à linguagem. Não por acaso, chamar de aprendizagem a aquisição da habilidade de falar seria meramente façon de parler. Afinal, como seria possível aprender, Gadamer se questiona, sem a palavra? Tal experiência é, no máximo, um jogo, “um jogo de imitação”. Enfim, reforço minha paráfrase: o ser que pode ser aprendido é linguagem, pois, para Gadamer, linguagem é fundamentalmente palavra. O que pretendo desenvolver no próximo tópico é uma concepção de linguagem a partir da qual a aprendizagem da fala possa ser considerada realmente aprendizagem.
Portanto, Gadamer não elabora uma concepção pré-verbal de linguagem, embora se detenha esporádica e superficialmente em experiências pré-verbais. Para concluir, gostaria de fazer ainda uma observação metodológica. Além das obras citadas, investiguei também livros e artigos de comentadores importantes assim como dissertações e teses sobre linguagem segundo Gadamer.15 Infelizmente, não há espaço para discuti-los pormenorizadamente. Todavia, afirmo com segurança, em nenhum encontrei uma objeção sólida, argumentada contra a minha interpretação de Gadamer. Ao contrário, ela até encontrou endosso em alguns textos consultados. Nicholas Davey, por exemplo, em Unquiet understanding, reforça minha interpretação de que Gadamer defende uma concepção verbal de linguagem. “Gadamer’s philosophy is undeniably centered upon the dynamic of the word (logos)”, enfatiza Davey (2006, p. 191).16
2 COMPREENSÃO E APRENDIZAGEM SEGUNDO UMA CONCEPÇÃO PRÉ-VERBAL DE LINGUAGEM
A exemplo de Gadamer, uma experiência pessoal me motiva a escrever este tópico. Segurava meu sobrinho no colo, enquanto ele apertava os botões do controle remoto da minha televisão. Não me lembro precisamente da sua idade, mas, tenho certeza, ele ainda não falava. Depois de apertar um botão específico, ele notou uma luz vermelha se acender na extremidade frontal do controle. Ele novamente apertou o botão e, mais uma vez, constatou o acendimento da luz. Surpreso, ele olhou para mim e disse assim: “Ooooh!”. Nunca mais me esqueci de seu espanto, quando descobriu uma relação entre o botão e a luz vermelha daquele aparelho tão cotidiano. Naquele momento, eis a intuição com a qual inicio este tópico, alguma coisa muito fundamental sobre a essência da linguagem se revelou para mim. Depois de aproximadamente quatorze anos, disponho-me a compreender filosoficamente aquela experiência.
2.1 A estrutura pré-predicativa da linguagem
Em Sobre a essência da verdade, de 1930, Heidegger interroga o fundamento de uma concepção consagrada desde o período medieval: veritas est adaequatio rei et intellectus. Desde então, a verdade se define pela adequação das enunciações do intelecto à realidade das coisas. Em certo ponto, Heidegger (1999a, p. 158) realiza uma inflexão decisiva, com uma pergunta aparentemente tola. Como a enunciação, composta de sons carregados de sentido, pode se adequar a algo tão diferente, como a coisa, constituída de propriedades materiais? Por conseguinte, eis a conclusão determinante: “[...] a adequação não pode significar aqui um igualar-se material entre coisas desiguais.” Sua essência precisa se encontrar em outro aspecto, nomeadamente, na relação entre a enunciação e a coisa. Logo, como uma se relaciona com a outra? A enunciação apresenta a coisa “[...] tal qual é, assim como é”, responde Heidegger (1999a, p. 158).
Ora, a expressão “assim como” exprime justamente a relação entre a apresentação da coisa e a coisa apresentada na enunciação. A enunciação expressa a coisa tal como ela, a coisa, assim se apresenta. Porém, a apresentação mesma da coisa, eis o ponto ainda mais decisivo, não se deve à enunciação. Antes, ela remonta a algo difícil de transpor em palavras chamado “abertura”. Dito de outro modo, a abertura consiste no fato de o ente humano17 apreender essencialmente o modo como as coisas se lhe apresentam. As coisas se propõem como tais para o ente humano, cuja tarefa consiste em se submeter a tal proposição e exprimi-las assim como são. Eis a relação na qual se funda a adequação entre enunciação e coisa. Cabe à enunciação se adequar ao que propõem as coisas – adequação fundada, eis o ponto, na abertura humana para a apresentação das coisas. Assim estão dadas as condições para responder ao problema.
Elas se tornam explícitas em Sobre a essência do fundamento, de 1929, onde Heidegger já interrogava a essência da verdade. Em tal conferência, ele diz mais precisamente o que considero necessário para elaborar uma concepção pré-verbal de linguagem. A coisa não se torna “[...] primeiramente acessível”, ressalta Heidegger (1999a, p. 117), por meio da enunciação. – Ao contrário, ela já deve estar manifesta “[...] antes [da] predicação e para ela”. Para concluir, Heidegger (1999a, p. 117, grifo do autor) sentencia: – “A predicação deve, para tornar-se possível, radicar-se num âmbito revelador, que possui caráter não predicativo”. Tal “âmbito revelador” é o que Heidegger chama de “abertura” tanto em Sobre a essência do fundamento como em Sobre a essência da verdade. Em suma, a palavra e, portanto, qualquer concepção de linguagem nela fundada se enraízam em um solo mais originário e, eis o ponto, pré-predicativo.
Ainda em Sobre a essência do fundamento, Heidegger aprofunda a relação de abertura graças à qual a enunciação pode se adequar à coisa. Ele a chama de transcendência.18 A palavra, obviamente, não deve ser interpretada como se tratasse de alguma experiência religiosa, espiritual, ou de um comportamento qualquer dentre outros possíveis. Antes, transcendência é a “[...] constituição fundamental” do ente humano, “[...] que acontece antes de qualquer comportamento.” (1999, p. 122, grifo do autor). Formalmente, ela é “[...] uma ‘relação’ [...] ‘de’ algo ‘para’ algo.” (1999, p. 121). Há algo, um horizonte, com qual o ente humano se relaciona, se mantém referido, que não é algo particular ou um conjunto circunstancial de entes. Antes, tal horizonte em direção ao qual o ente humano transcende é o ente em sua totalidade,19 em uma palavra, o mundo (1999, p. 128). O ente humano é fundamentalmente ser-no-mundo.
A expressão “ser-no-mundo” não significa uma relação espacial entre algo chamado humano e algo chamado mundo.20 Em suma, o ente humano não está “dentro do mundo”, como se mundo fosse algo em cujo interior estivessem os entes humanos junto com todas as coisas. Ao invés, “ser-no-mundo” pretende definir mundo como uma determinação ontológica do ente humano, de seu ser, do modo como ele é. Para descrever fenomenologicamente o mundo, é necessário se deter no que Heidegger (2002, p. 107) chama de “mundo circundante”. Trata-se daquele horizonte “mais próximo” do ente humano, no qual, cotidianamente, ele/a se ocupa de seus afazeres diários. É aí, “[...] antes de tudo e na maioria das vezes”, que o ente humano se mostra “[...] em si mesmo e por si mesmo”, adverte Heidegger (2002, p. 44, grifo do autor). Em seu cotidiano, enfim, os entes humanos revelam seu ser em suas “estruturas essenciais”.
Ora, o que o ente humano mostra a respeito de seu ser, em suas ocupações diárias? Ele/a lida constantemente com instrumentos; entra e sai de edificações construídas para fins diversos, manuseia ferramentas e utensílios, veste roupas, dirige automóveis etc. Nisso Heidegger encontra o fio condutor para desvelar o mundo. Como? Ora, qualquer instrumento é algo feito para realizar um fim desejado. Portanto, o instrumento revela o modo de “ser-para”, tradução do significado extremamente condensado e complexo da expressão alemã Um-zu. Sendo-para, cada instrumento mantém uma referência a algo. Um martelo, segundo o exemplo de Heidegger (2002, p. 44), se refere não só ao prego, mas também à madeira e, mais amplamente, ao contexto geral da obra realizada. Enfim, qualquer instrumento implica uma multiplicidade de referências que se estende do seu manuseio à matéria-prima empregada em sua produção.
Assim se abre o que Heidegger chama de circunvisão (Umsicht), a visão das referências relacionadas a um instrumento pelas quais é necessário orientar seu manuseio. Há aqui algo extremamente decisivo para os propósitos deste tópico. A circunvisão pressuposta no manuseio dos instrumentos já deve ter sido previamente aberta. Trata-se de um contexto, por assim dizer, “[...] ‘em que’ [...] o [ser-aí]21 enquanto ente já sempre esteve [...]” (2002, p. 118, grifo do autor). Tal abertura prévia é o que Heidegger chama de “familiaridade”. Só assim a ocupação com os instrumentos “[...] já é o que é.” (2002, p. 119). Juntos, eles compõem uma conjuntura, pois estar referido a algo significa, argumenta Heidegger (2002, p. 128, grifo do autor), “[...] ter com o ser que ele é algo junto”. Enfim, a multiplicidade conjuntural e previamente aberta de referências implicada nos instrumentos está “em função” do ente humano, conclui Heidegger (2002, p. 129).
As referências pelas quais uma coisa remete à outra constituem ações de significação cuja determinação ontológica consiste em mostrar algo (HEIDEGGER, 2002, p. 120ss, 132). Elas não são remissões desconexas, mas compõem juntas uma totalidade orgânica. Não por acaso, Heidegger denomina significância (Bedeutsamkeit) a totalidade “[...] das remissões dessa ação de significar”. Ela, a significância, “[...] é o que constitui a estrutura do mundo.” Enfim, na multiplicidade de referências envolvida ontologicamente nos instrumentos e aberta previamente em uma circunvisão, “[...] anuncia-se mundo”, afirma Heidegger (2002, p. 117). Em geral, o mundo, em sua “mundanidade”, para usar a expressão de Heidegger (2002, p. 133), nada mais é senão a totalidade de um “contexto referencial”. A compreensão, por sua vez, está previamente familiarizada com tais remissões e se move desde sempre em seus nexos referenciais.
Nessa perspectiva, que se enseje nesse aspecto uma concepção pré-verbal de linguagem é o que precisa se tornar claro, creio, em alguns pontos da exposição de Heidegger. Antes de concluir o parágrafo dezoito, dedicado à mundanidade e significância, ele observa algo decisivo. “A própria significância abriga em si a condição ontológica de possibilidade de o [ser-aí] [...] abrir ‘significados’.” (2002, p. 132-133). E os “significados”, uma vez abertos, são o “[...] que, por sua vez, fundam a possibilidade da palavra e da linguagem.” Depois, no parágrafo trinta e quatro, ele arremata: “Das significações brotam palavras.” (2002, p. 219). Logo, a linguagem “[...] radica na constituição existencial da abertura do [ser-aí].” Já em Ser e tempo, enfim, a palavra, para Heidegger, não é a determinação mais originária da linguagem. Antes, ela, a palavra, se enraíza em uma abertura para a totalidade de um nexo de significações originariamente pré-predicativas.
Entretanto, há um ponto delicado aqui. Em Heidegger, é verdade, também se insinua, nas passagens supracitadas, uma concepção de linguagem reduzida à palavra. Afinal, os significados previamente abertos, como ele sugere, não seriam propriamente linguagem. Antes, eles fundam “[...] a possibilidade da palavra e da linguagem.” (2002, p. 133). Porém, é só uma questão de delimitação conceitual. Eu, por minha vez, pretendo considerar linguagem tanto a palavra quanto, e principalmente, seu fundamento pré-predicativo. Portanto, linguagem, neste ensaio, é também a totalidade do contexto referencial pré-predicativo chamado significância. – Enfim, a linguagem forma uma unidade com o mundo. Mundo só se faz mundo na linguagem, e linguagem só se faz linguagem no mundo. De fato, Gadamer (2003b, p. 572) também defende a unidade entre ambos, linguagem e mundo. Todavia, para ele, linguagem é palavra. Para mim, não.
2.2 Compreensão, aprendizagem e linguagem
Primeiramente, é necessário restabelecer, em oposição a Gadamer, a experiência da aprendizagem da fala. Considerá-la aprendizagem não é mero “jeito de falar”, como critica Gadamer (2004, p. 12), em seu ensaio “Entre fenomenologia e dialética”. Aliás, Gadamer sequer determina claramente o que ele compreende por aprendizagem. Com efeito, a aprendizagem da fala pode até ser um “jogo de imitação”. Porém, Gadamer assim a caracteriza para mostrar que ela é outra coisa, em vez de aprendizagem. Ora, em sua Poética, Aristóteles (2000, p. 40), e com muita razão, considera a imitação um aspecto fundamental da aprendizagem. Um bebê, quando imita o que alguém lhe estimula a falar, está se esforçando para aprender algo; está se esforçando para fazer por si mesmo o que as pessoas ao seu redor já aprenderam a fazer. É exatamente o que define a aprendizagem, como já realcei, na introdução deste ensaio.
Em geral, há um ponto problemático, do qual Gadamer não parece ter sido crítico, no modo como Aristóteles caracteriza a experiência. Baseado em Aristóteles, Gadamer (2004, p. 177) pensa assim. Em sua relação com o mundo, o ser humano se encontra envolto em um fluxo de “impressões cambiantes”. Por serem fugidias – daí a analogia de Aristóteles com o exército em fuga –, elas precisam se organizar. Em algum momento, não é possível saber quando, graças à capacidade humana de retê-las, certa impressão de algo coere com outra retida na memória. Assim, gradativamente, certa coisa acaba sendo reconhecida em sua unidade fundamental como algo idêntico a si mesmo em distintos momentos. Enfim, Aristóteles induz Gadamer a conceber a experiência como um fluxo desorganizado de impressões, as quais, aos poucos, se organizam coerentemente. Eis a pressuposição fundamental da analogia de Aristóteles.
Assim, por que entendo serem importantes tais considerações sobre a experiência? Porque Gadamer (2004, p. 177) compreende a analogia de Aristóteles como “[...] a mais sábia descrição do processo de aprendizagem da fala.” Conforme ele mesmo admite, Aristóteles não visou a aprendizagem da fala, quando imaginou a analogia com o exército em fuga. Antes, ele pretendeu descrever como se formam os conceitos pelos quais o ser humano discerne o que é comum em várias coisas distintas. Para Gadamer, contudo, apreender o que é comum em coisas diversas é também o que define aprender a falar. Eis sua razão fundamental para recorrer a Aristóteles. Em suma, aprender a falar consiste em organizar “impressões cambiantes”. Como a criança as organiza? Gadamer responderia assim, creio: mediante palavras.22 Por quê? Porque, para ele, as palavras determinam o que é comum às coisas e, dessa forma, conferem coesão a “impressões cambiantes”.
Apresento, então, duas críticas fundamentais. Primeiro, a percepção humana, não importa a idade de quem percebe, não consiste em “impressões cambiantes”, fugidias. É uma suposição totalmente acrítica à qual Aristóteles parece ter induzido Gadamer.23 Neste ponto, parto da descrição fenomenológica de Heidegger (2003b, p. 357ss) sobre a percepção, exposta em Os conceitos fundamentais da metafísica. Resumidamente, a percepção não se reduz a impressões sensíveis apreendidas fisicamente por meio de certos órgãos.24 Antes, ela se funda na unidade em virtude da qual qualquer coisa percebida se mostra como isto, em vez daquilo. Esta luminária, por exemplo, só pode ser percebida como esta luminária, em vez desta mesa, desta cadeira ou daquela estante, pois se mostra em sua unidade própria. Só assim ela se distingue de tudo arredor, para se impor como tal coisa particular e assim interpelar quem a percebe.
Infelizmente, não é possível desenvolver exaustivamente a descrição de Heidegger, de sorte que me resta apenas recomendar sua leitura. Importa somente destacar quanto ela ultrapassa o que constatam pesquisas empíricas feitas em psicologia cognitiva e ciências afins. Para os propósitos deste artigo, pretendo apenas evidenciar como é possível derivar uma segunda crítica a partir da primeira. Com base na descrição de Heidegger, a percepção de um bebê não deve diferir da percepção de outro ser humano mais velho. Afinal, a unidade fundamental de qualquer coisa percebida não depende de grau de maturidade biológica do órgão perceptivo ou da cognição de quem a percebe. Não importa se um bebê confunde, por exemplo, o seio de sua mãe com o bico de uma mamadeira. A interação de um bebê com qualquer coisa arredor precisa supor a apreensão da unidade perceptiva da coisa com a qual ele interage.
Das duas críticas, deduzo uma conclusão fundamental. – A unidade da coisa percebida não está sujeita às impressões supostamente fugidias de quem a percebe. Antes, o que confere consistência à percepção humana – seja um bebê, seja alguém adulto – é a solidez da identidade consigo própria da coisa percebida. Desde sempre, a coisa se mostra por si mesma e a partir de si mesma em sua identidade coesa, que não depende da maturidade cognitiva dos entes humanos. Trata-se de uma evidência fenomenológica.25 Pesquisas feitas em psicologia cognitiva e ciências afins partem de uma posição prévia radicalmente diferente. Para resumi-lo, são todas ciências ônticas, as quais interpretam um bebê como um ente dotado de propriedades “acidentais”. Do ponto de vista ontológico, as determinações existenciais do Dasein não são propriedades contingentes, mas “[...] estruturas essenciais” (HEIDEGGER, 2002, p. 44).26
Enfim, como se realiza a aprendizagem da fala, enquanto experiência pré-predicativa? Primeiramente, o que se abre são aquelas remissões de uma coisa à outra chamadas significância, que, para Heidegger (2002b, p. 132), estruturam mundo. Até as propriedades sensíveis de cada coisa, como opacidade e transparência, interpretadas fenomenologicamente, só podem ser descobertas como relações. Uma coisa só pode se revelar opaca ou transparente em relação a outra em frente da qual ela se encontra; a dureza ou a maciez de algo só pode ser experimentada em relação ao toque de quem a apalpa; a cor de algo só pode se revelar em relação às cores contrastantes de outras coisas. Eis a intuição motivadora do costume de rodear uma criança com brinquedos, os quais, em geral, imitam instrumentos. Ora, bem o demonstra Heidegger, o mundo, enquanto sistema de referências, se revela justamente no manuseio de instrumentos.
Não por acaso, algo do mundo se abriu para meu sobrinho ao manusear um instrumento. Ele compreendeu a possibilidade de uma luz vermelha se acender, no controle remoto, quando apertasse certo botão. Não é necessário dominar palavras para compreender tais coisas. Já se trata, eis meu ponto, de uma familiarização com aquela estrutura essencial e, enfatizo, pré-predicativa da linguagem chamada significância. “A compreensão”, explicita Heidegger (2002b, p. 132, grifo meu), “[...] contém, numa abertura prévia, as remissões mencionadas.” – “Numa abertura prévia”, ele frisa. Se me permitem, me aproprio das palavras de Heidegger. Uma criança, eu digo, “se atém a essas remissões como o contexto em que se movem suas referências.” Heidegger determina a essência remissória de tais remissões como “ação de significar”. Logo, uma criança já realiza algo essencial à linguagem: antes de falar, ela significa.
Eu afirmei: meu sobrinho compreendeu. Mas o que é compreensão? Não é fácil a exposição de Heidegger (2002, p. 198ss), em Ser e tempo, sobre a compreensão. Não sem razão, pois é algo arduamente sutil da existência humana. Em poucas palavras, compreensão é o modo de ser em virtude do qual o ente humano se projeta rumo às possibilidades de qualquer coisa, inclusive, de si próprio. Contudo, o que significa projetar-se? É o que, em Sobre a essência do fundamento, Heidegger (1999, p. 122) chamaria de transcendência, como já mostrei. Significa manter-se essencialmente referido a algo. A quê? Ao que podem as coisas, qualquer coisa; ao que posso ser eu próprio, ao que podem ser os instrumentos e as coisas arredor, ao que podem ser os outros com os quais eu preciso conviver. É o que genericamente significa a palavra “possibilidades”. Enfim, o ente humano compreende o que podem as coisas.
É importante notar como a compreensão antecede e prepara a aprendizagem e como esta aprimora a compreensão. Meu sobrinho precisou compreender o que pode o botão de um controle remoto. Ora, ele pode acender uma luz vermelha na parte frontal do instrumento. Ele repetiu algumas vezes a ação, exercício típico de quem está aprendendo algo. Logo, a coisa, em sua unidade própria, lhe confirmou: “De fato, eu, este botão”, se me permitem teatralizar a experiência, “acendo aquele botão vermelho”. – “Sim, você aprendeu”, disse o botão, “o que eu posso fazer”. Também assim aprende um ser humano adulto. Ele/a precisa primeiro descobrir o que pode uma coisa. Uma vez assimilado seu sentido, ele/a desenvolve, pela repetição, certas habilidades. Só então aprende o que antes compreendeu. Inversamente, ao aprendê-lo, ele/a se familiariza mais com a coisa e assim a compreende melhor.
Ele/a precisa de palavras para compreender e aprender? É difícil admitir uma resposta negativa, certo? Afinal, como fazê-los sem palavras? Pergunta justa. Porém, Heidegger subverte, eis o ponto, um senso comum secularmente enraizado sobre a compreensão humana. Compreender não implica elaborar algo em palavras. A compreensão já se realiza naquele nível pré-predicativo da abertura para a significância do mundo, atenta Heidegger (2002, p. 198). O ente humano, Heidegger (2002, p. 201, grifo meu) o declara sucintamente, “[...] apreende as possibilidades [das coisas, acrescento] mesmo que não o faça tematicamente.” Ora, o que significa fazer algo tematicamente? Significa aprender algo de tal modo que, se alguém perguntar o que estou fazendo, respondo imediatamente: “Contando cigarros”, para lembrar do exemplo de Sartre (2003, p. 24). Não é necessariamente assim, eis o que Heidegger pretende mostrar!27
Sem dominar qualquer palavra, uma criança compreende as possibilidades, o que pode, por exemplo, o botão do controle remoto de uma televisão. Exatamente assim, em tal nível pré-predicativo, ela também aprende, justamente porque compreendeu as possibilidades das coisas com as quais se ocupa. Assim, ela pode realizar por si mesma certas atividades segundo a orientação das possibilidades gradativamente compreendidas das coisas arredor. Uma criança aprende, já que, na compreensão, ela está previamente referida a um nexo de relações chamado mundo, graças ao qual o que pode uma coisa mostra o que pode outra. Eis a condição para, posteriormente, se realizar a aprendizagem da fala, a articulação em palavras do que uma criança compreendeu e aprendeu. Não se trata de organizar “impressões cambiantes”, mas de apreender o que pode, uma em relação à outra, cada coisa em sua unidade perceptiva própria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enfim, a linguagem é fundamentalmente pré-predicativa. Foi o que meu sobrinho me mostrou, ao apreender o nexo referencial entre o botão e a luz do controle remoto. Antes de falar, ele já estava apreendendo os nexos referenciais entre as coisas em torno de si. – Na verdade, é mais correto dizer: para falar, ele precisou apreender tais nexos referenciais. Sem eles, a palavra não pode realizar o que a define: mostrar as coisas. E não se trata, deve-se observar, de uma experiência exclusiva da infância, a qual se perderia depois da aprendizagem da palavra. Ao contrário, os entes humanos continuam a experimentar a linguagem em sua dimensão pré-predicativa. É o que demonstram expressões artísticas não verbais como, por exemplo, a música instrumental. Comparada à palavra, ela realiza muito melhor, creio, algo que, para Gadamer (2004, p. 174), é essencial à linguagem: reunir os seres humanos em torno de algo comum.
Mesmo se houvesse margem, não me aventuraria pela filosofia da música. Porém, é um exemplo importante de experiência pré-predicativa com a linguagem na vida adulta. De fato, a música, suponho, é linguagem. Por quê? Ela mostra algo. O quê? Imagens, cores, para me ater a exemplos mais óbvios. Não por acaso, ela é fundamental em teatro e cinema. Mas, além de mostrar algo, ela desperta ou, para ser mais exato, modula afetos. Obviamente, afetos não representam nada, adverte Deleuze (2019, p. 35). Mas eles podem ser motivo de representação, que, na verdade, não é bem a relação da música com os afetos. Em vez de representá-los, ela modula, provoca-lhes variações em diversas intensidades. Como? Pela combinação de inúmeras variáveis das ondas sonoras (WISNIK, 2011, p. 25-26).28 A teoria da harmonia, por exemplo, parte da pressuposição de que certas notas evocam tensões que outras precisam resolver.
Ora, tensão é um estado afetivo. Assim, a música reúne seres humanos em torno de afetos comuns. Pela palavra, mostra Gadamer (2004, p. 174), em sua interpretação de Aristóteles, os seres humanos podem informar uns aos outros “o que é justo ou injusto”. Pela música, compositores, a partir de uma gramática de sons, “informam” aos outros, por assim dizer, sobre afetos comuns a todos – amor, rancor, ternura, fraternidade, melancolia etc. Em uma entrevista, Amaro Freitas (2021) exalta a virtude da música para unir seres humanos. Ela torna possível a aproximação afetiva entre pessoas sem qualquer intimidade, o que, como ele frisa acertadamente, demandaria muito tempo para se consumar. – Muito tempo, eu acrescentaria, mediado entre incontáveis palavras. Algo semelhante poderia ser afirmado, em geral, sobre a dança e as artes plásticas. Mas aqui já me aventuro em outro território pantanoso, a filosofia da arte.
Understanding, learning and language: a critique of the hermeneutical approach
Abstract: This essay intends to criticize Hans-Georg Gadamer's conception of language on the basis of which he justifies the proposition that learning is only possible through conversation. Although he understands as language non-verbal forms of communication such as gestures, physiognomic expressions, looks, Gadamer conceives language as word. However, I believe, and no one would deny it, language needs to be understood and, above all, learned. So here is the motivating problem of this essay: if language has to be understood as word, how is it possible to learn it before mastering the word during childhood? To answer this problem, first, I clarify what I understand as philosophical conception of education. Then I demonstrate, in a broad examination of Gadamer's essays written over five decades, the absence of a pre-predicative conception of language. Finally, I outline a pre-predicative conception of language by which I intend to show how it is possible to learn language before mastering the word.
Keywords: Understanding. Learning. Experience. Pre-predication. Language.
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Recebido: 20/09/2022
Aceito: 07/03/2023
1 Este ensaio é parte de um projeto de pesquisa de Pós-Doutorado realizado com bolsa de estudos Pós-Doutorado Sênior (PDS) da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.
2 Universidade de Brasília, Faculdade de Educação, Brasília, DF – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4015-3859. E-mail: rainri.back@ yahoo.com.br.
3 “[...] die Sprache erst im Gespräch, also in der Ausübung der Verständigung ihr eigentliches Sein hat.” (GADAMER, 1999a, p. 449).
4 Nem sua familiaridade com Aristóteles, segundo o qual “o ser se diz de muitas maneiras”, nem sua familiaridade com a filosofia pragmática dos atos de fala por si só exime Gadamer das críticas aqui apresentadas. Se Aristóteles ou a filosofia dos atos de fala poderia ter ajudado Gadamer a elaborar uma concepção pré-predicativa de linguagem, ele não soube se apropriar devidamente de tais influências.
5 Eu não posso desenvolver plenamente aqui minha concepção filosófica de educação, já que, evidentemente, qualquer revista precisa limitar o tamanho dos artigos submetidos. Cf. BACK, 2019.
6 Para facilitar a informação das referências, citarei todos os ensaios estudados em nota de rodapé. Em 1957, Gadamer publicou “O que é a verdade?” e, em 1959, “Sobre o círculo da compreensão”. Em 1960, vem “A natureza da coisa e a linguagem das coisas”; em 1966, “Homem e linguagem” e “A universalidade do problema hermenêutico”; em 1968, “Semântica e hermenêutica”; em 1969, “Hermenêutica”. Cf. GADAMER, 2004.
7 “Homem e linguagem” e “A universalidade do problema hermenêutico”. Cf. GADAMER, 2004.
8 Em 1970, ele publica “Linguagem e compreensão” (GADAMER, 2004); em 1971, “A verdade da palavra” (GRONDIN, 2012b); em 1972, “A incapacidade para o diálogo”; em 1973, “Até que ponto a linguagem prescreve o pensamento” (GADAMER, 2004); em 1979, “A força expressiva da linguagem” (GADAMER, 2001). Em 1980, aparece “A cultura e a palavra” (GADAMER, 2001); em 1983, “Texto e interpretação” (GADAMER, 2004) e “Escrever e falar” (GADAMER, 2007d); em 1985, “Entre fenomenologia e dialética: tentativa de uma autocrítica” (GADAMER, 2004); em 1987, “Ciência histórica e linguagem” (GADAMER, 2007d).
9 Em alemão, Gadamer (1999b, p. 204) enfatiza: “Es gibt vorsprachliche Welterfahrung [...]”. Vorsprachlich pode ser traduzido, creio, por “anterior à linguagem”. Talvez, “pré-linguístico” seja uma tradução mais fiel à estrutura ortográfica da palavra.
10 Em 1990, ele publica “Pensar com a língua” (GADAMER, 2007d) e “Heidegger e a linguagem” (GADAMER, 2007a); em 1992, “Palavra e imagem”; em 1995, “Da palavra ao conceito” (GRONDIN, 2012b); em 1999, “Educação é educar-se” (GADAMER, 2000).
11 Mesmo quando se trata de diálogo em sentido mais amplo, por exemplo, diálogo com a tradição. Decerto, documentos escritos são apenas uma dentre outras maneiras pelas quais uma tradição lega sua herança. Ela também a transmite por meio de monumentos, utensílios, obras de arte, dentre outras coisas, cujo modo de ser não é a palavra. Todavia, para usar uma expressão tão cara a Gadamer, como tais coisas “vêm à fala”? Não encontro outra resposta em Gadamer: pela palavra! Uma obra de arte, por exemplo. Como ela encontra sua determinação de ser, se a interpretasse desde a perspectiva de Gadamer? Mais uma vez, não encontro outra resposta: pela palavra! Do contrário, ela padeceria de uma indeterminação de ser. É o que deve ser deduzido daquela famosa passagem de Verdade e método sobre a universalidade da linguagem, já comentada na introdução deste ensaio (GADAMER, 2003b, p. 612ss).
12 Ele morreu em março de 2002.
13 A razão na época da ciência (GADAMER, 1983), A atualidade do belo (GADAMER, 1985), O problema da consciência histórica (GADAMER, 2003a), La dialéctica de Hegel (GADAMER, 2005), Hermenêutica em retrospectiva: a virada hermenêutica (GADAMER, 2007b) e Hermenêutica em retrospectiva: hermenêutica e a filosofia prática (GADAMER, 2007c).
14 Cf. GADAMER, 1999c.
15 Cf. BLEICHER, 2002, p. 160ss; DAVEY, 2006, p. 189ss; FERRARI, 2010, p. 56ss; GRONDIN, 1995, p. 141ss, 2003a, p. 196-200, 2012a, p. 75-79; MAGALHÃES, 2015; MALPAS, [2003?]; PALMER, 1996, p. 204ss; RAMOS, 2014; ROHDEN, 2000; ROXO, 2010; SCHMIDT, 2014, p. 167-188; TOMULETIU, 2012.
16 Convém um esclarecimento. A menção à palavra grega logos, entre parênteses, indica apenas em qual sentido, segundo a hermenêutica filosófica, a palavra “word” deve ser interpretada. Eu extraí o trecho citado aqui de uma exposição em que Davey (2006, p. 189ss) procura mostrar como a hermenêutica filosófica não é logocêntrica, em contraponto à interpretação de Jacques Derrida. Davey destaca a tradução de logos por word em referência à sua discussão com Werner Hamacher, o qual confunde logos enquanto word e logos enquanto reason (ibid., p. 171ss). Enfim, não encontro indício algum de que a argumentação de Davey pudesse contradizer, em algum sentido, minha interpretação de Gadamer.
17 Em respeito ao que Heidegger chama de diferença ontológica entre ser e ente, à qual não posso me dedicar aqui, sem incorrer em digressão, adotarei a expressão “ente humano”, ao invés de “ser humano”.
18 Transcendência também não deve ser confundida com o que Husserl (2012, p. 294, 317), antigo mestre de Heidegger, compreendia por intencionalidade. Heidegger (1999, p. 120) se pronuncia a respeito: “[...] a intencionalidade é somente possível sobre o fundamento da transcendência.”
19 Não é possível desenvolver plenamente aqui o que significa “ente em totalidade”. Além da conferência Sobre a essência do fundamento, cf. HEIDEGGER, 2003b, p. 404ss.
20 Detenho-me em Ser e tempo, de 1927, pois, ainda na década de 1930, Heidegger transformou radicalmente sua perspectiva. Ele passou a compreender o ser humano como aquele que apenas responde ao modo como o ser mesmo organiza o espaço-de-jogo-temporal (HEIDEGGER, 1999b, p. 94-95). Desse modo, quem fala não é propriamente o ser humano, mas a linguagem, como Heidegger (2003, p. 9) defenderia depois. Não convém discutir tais proposições, tarefa parcialmente realizada em outro ensaio – cf. BACK, 2013. Além de Ser e tempo, eu poderia ter considerado também as preleções proferidas em 1934 e intituladas Lógica: a pergunta pela essência da linguagem (HEIDEGGER, 2008). Todavia, o título engana, pois nessa obra Heidegger se envereda em uma longa investigação sobre outra pergunta: “quem é o ser humano?”, embora se trate de uma pergunta correlata à questão da linguagem.
21 Em concordância com vários/as outros/as tradutores/as, transponho a expressão alemã Dasein por “ser-aí”, em vez de “pre-sença”, como preferiu a tradutora Márcia Schuback. Heidegger escolheu a palavra Dasein, em Ser e tempo, para designar os entes humanos.
22 Como Gadamer não examina a aprendizagem da fala, a partir das perguntas feitas aqui, eu só posso conjeturar como ele responderia aos meus questionamentos. É perfeitamente compreensível, suponho, a necessidade retórica de estabelecer um diálogo hipotético com quem eu estou interpretando. Em nada tal recurso desabona a argumentação desenvolvida até aqui; sobretudo, aquela exposta na primeira seção deste ensaio, em que reviso os textos de Gadamer dedicados à linguagem. Não se trata de basear minha interpretação em uma conjectura desonesta, por assim dizer, em “achismo” ou qualquer outro rótulo que possa ser usado, para depreciar minha crítica a Gadamer.
23 Não pretendo desenvolver uma interpretação da percepção humana. Se o fizesse, certamente partiria do esboço da interpretação fenomenológica de Heidegger. Cf. HEIDEGGER, 2003b, p. 363ss.
24 Apesar de óbvio, nunca é demais repetir: Heidegger não desconsidera a necessidade dos órgãos dos sentidos, como se o ser humano pudesse perceber as coisas sem nenhum deles. Tal afirmação seria obviamente um disparate. O que Heidegger questiona é a posição prévia desde a qual as ciências empíricas interpretam a percepção, como se ela pudesse ser reduzida à dinâmica estritamente físico-biológica entre luz e células fotossensíveis.
25 A descrição de Heidegger da percepção humana, sem dúvida, é um desdobramento, um amadurecimento das descrições inigualáveis de seu mestre, Edmund Husserl. Ele já advertia para a necessidade de a consciência pressupor a unidade daquilo de que ela está ciente, não importa o que, em sua visada inevitavelmente intencional. Cf. HUSSERL, 2006, p. 290ss.
26 Sem dúvida, alguém poderia objetar: “Mas Gadamer estudou com Husserl e Heidegger!” Ora, trata-se de uma constatação biográfica. Logo, Gadamer se apropriou devidamente, em sua hermenêutica filosófica, de todas as lições recebidas? Não necessariamente. Aliás, é o que estou procurando mostrar, em meu artigo.
27 Inclusive, Sartre (2003, p. 24) recorda uma experiência científica pela qual Piaget mostra como crianças sabem espontaneamente contar sem, todavia, saberem explicar como o fizeram.
28 “Através de alturas e durações, timbres e intensidades, repetidos e/ou variados, o som se diferencia ilimitadamente. [...] É o diálogo dessas complexidades que engendra as músicas”, assevera Wisnik (2011, p. 26). Mais adiante (2011, p. 28), ele completa: “[...] a música não refere nem nomeia coisas visíveis, como a linguagem verbal faz, mas aponta com uma força toda sua para o não-realizável; atravessa certas redes defensivas que a consciência e a linguagem cristalizada opõem à sua ação e toca em pontos de ligação efetivos do mental e do corporal, do intelectual e do afetivo.”