Com alegria, apresentamos o último fascículo do ano de 2022. Ao todo, são 18 textos publicados neste fascículo. Os autores brasileiros são oriundos de instituições do Acre, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Já os autores estrangeiros, que assinam quatro artigos, são oriundos da China e Paquistão. A procura por publicação de autores do Oriente é resultado do Dossiê publicado recentemente sobre a filosofia chinesa, proveniente da política adotada pela revista de publicar fascículos referentes às mais variadas temáticas e metodologias filosóficas, bem como ampliar a participação de autores de diferentes locais, no Brasil e do mundo.
Dentre os textos aqui reunidos, encontramos nove artigos, uma tradução e oito comentários. Conforme expressa Alves (2021, p. 13), os comentários, além de propiciar o debate filosófico, também são “[...] uma forma de valorizar formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico.” Trata-se de textos originais e inéditos, os quais buscam dialogar com os artigos produzidos e aprovados para publicação.
Iniciamos o fascículo com o texto, escrito em inglês, de autoria de Dai Zhe e Wen Juan e comentado por Hailin Ning, intitulado “Formation of a new rural power structure and the failure of gender in utopia: lesbian image and its metaphors in wildcat lake.” Os autores dizem que Chen Yingsong criou Lago Gato Selvagem não apenas para contar uma história sobre lésbicas. Ao descrever como Xiang’er, uma mulher rural, se torna lésbica nas aldeias, pode-se ver a “riqueza” e o “significado metafórico” do símbolo lésbico. No tocante ao Lago Gato Selvagem, é mais digno discutir como Xiang’er se torna lésbica, cuja questão não é apenas sobre sexo ou gênero, mas também sobre opressão política e econômica. Assim, o chamado gênero, utopicamente, poderá ser identificado. Ademais desse objetivo, os autores visam a mostrar que a perda da subjetividade rural, durante a ampliação e a transformação posterior, a nova opressão e a exploração resultantes são as razões fundamentais para Xiang’er se tornar lésbica e eventualmente “matar seu marido”.
O segundo texto publicado é “Constelação, parataxe e ensaio: os arcanos do pensamento da não identidade”, de Fabiano Leite França, comentado por Marcelo Leandro dos Santos e por Olmaro Paulo Mass. França busca reconstruir os conceitos de constelação, parataxe e ensaio no pensamento de Theodor Adorno. Com isso, almeja aproximá-los por afinidade, porém, mostrando a maneira como cada qual expressa, dentro de suas especificidades, a insistência de Adorno em um modelo de pensamento no qual o não idêntico: 1) resiste à subsunção conceitual, ao se dispor em uma configuração constelatória; 2) não sucumbe a justaposições subordinadas próprias da linguagem meramente comunicativa; e 3) encontra sua melhor expressão filosófica na forma ensaio. Para tanto, o autor adota, como ponto de partida, o rearranjo da categoria de constelação como herança do pensamento de Walter Benjamin. Com isso, apresenta a ampliação dessa categoria no pensamento de Adorno, relacionando-a tanto à concepção de parataxe como à acepção da forma ensaio, contudo, objetivando entender essas categorias enquanto modo de se pensar filosoficamente, com vistas à elucidação do lugar do não idêntico, no âmbito do pensamento dialético.
Em seguida, publicamos “A investigação arqueológica como diagnóstico do presente: uma crítica ao pensamento antropológico”, de Fernanda Gomes da Silva, comentado por Augusto Bach e por Rogério Luís da Rocha Seixas. A autora busca produzir uma leitura da investigação arqueológica empreendida por Michel Foucault como um trabalho de diagnóstico do presente, o qual se estabelece como uma crítica ao pensamento antropológico dominante no cenário francês da década de sessenta. Para essa tarefa, ela parte de uma descrição do aparato conceitual forjado por sua Arqueologia do saber, a fim de acompanhar um duplo movimento, de forte presença nietzschiana: ao mesmo tempo que efetiva a sua crítica aos humanismos que permeiam o pensamento filosófico então vigente, Foucault ensaia um outro modo de pensar, liberado de amarras antropológicas e de qualquer instância fundadora.
O quarto texto é “Sou uma rede de narrativas: aproximações entre Paul Ricoeur e Alice Munro”, de Jerzy A. Brzozowski, Ivone Maria Mendes Silva e Janessa Pagnussat. Os autores abordam o papel da memória e da narrativa, na constituição da identidade pessoal, a partir de conceitos teóricos da obra de Paul Ricoeur (em especial O si-mesmo como outro) e da análise do conto “O urso atravessou a montanha”, de Alice Munro. Esse movimento permitirá sublinhar a ideia de que, contrariamente ao que parte da literatura sobre identidade e narrativa tem sustentado, não é só aquilo que poderíamos chamar de autonarrativa que cumpre um papel na manutenção da identidade pessoal. Ao invés disso, defendem os autores, recupera-se a ideia ricoeuriana de uma rede de narrativas ou emaranhado de histórias, na qual auto- e heteronarrativas se imbricam mutuamente, servindo de sustentáculos para as identidades constituídas sobre ela.
Em seguida vem, também escrito em inglês, “A preliminary study on A Mirror of Japan (Ribenyijian), de Jie Tong e Ji Ma, comentado por Yi Yang. Segundo Tong e Ma, após o reinado do Imperador Jiajing, da Dinastia Ming, à medida que o problema dos piratas japoneses se tornava cada vez mais grave, começaram a ser publicados livros dedicados ao estudo do Japão. Entre eles, os mais importantes são Uma Breve Pesquisa do Japão (Ri Ben Kao Lue), Uma Compilação de Mapas Japoneses (Ri Ben Tu Zuan), O Espelho do Japão (Ri Ben Yi Jian), Uma pesquisa do Japão (Ri Ben Kao), Um registro de Costumes Japoneses (Ri Ben Fen Tu) Ji) e A Biografia de Piratas Japoneses em Qiantai (Qian Tai Wo Zhuan). Há também livros especiais para apresentar a situação geral do Japão, como A Coleção de Mapas Militares Costeiros (Chou Hai Tu Bian), Resistência aos Piratas Japoneses na Dinastia Ming (Huang Ming Yu Wo Lu), a Compilação de Defesa Costeira (Hai Fang Zuan Yao) e a Continuação da Categoria de Defesa Costeira nas Regiões Zhedong e Zhexi (Liang Zhe Hai Fang Lei Kao Xu Bian). Como Zheng Shungong, autor do livro O Espelho do Japão, visitou o Japão duas vezes, muitos conteúdos do livro são baseados em sua própria experiência e conhecimento, tornando-o uma obra de destaque em relação às demais. Sua pesquisa sobre o Japão foi além da literatura semelhante da Dinastia Ming, em amplitude, profundidade e precisão. Além disso, o registro e as análises dos piratas japoneses, no livro, são de grande valor de pesquisa. Como procuram mostrar os autores, antes da publicação dos Anais do Japão (Ri Ben Tu Zhi), de Huang Zunxian, O Espelho do Japão era uma das monografias de mais alto nível sobre o Japão, na China antiga.
O sexto artigo é de autoria de João Barros, escrito em inglês e intitulado “Psychiatric discourse and hygienism-normalization and liberalism in Latin America from Michel Foucault”. Barros trata da produção de anormalidades, desde um ponto de vista histórico-hermenêutico. Partindo do marco teórico proposto por Michel Foucault, o autor procura mostrar como o binômio normalidade-anormalidade, seja de modo disciplinar, seja biopolítico, serve à produção de indivíduos mediante relações de saber-poder. Nesses termos, ele observa como se dá a produção de anormalidades, na obra de Foucault. Na segunda seção, verifica como a discussão sobre o biopoder pode ser utilizada, no intuito de problematizar situações e casos ocorridos neste continente. O autor busca relacionar a produção de anormalidades com o desenvolvimento do Higienismo, na América Latina, dando a perceber algumas estratégias adotadas na normalização e produção de corpos higiênicos.
“Educação, experiência formativa e pensamento dialético em Theodor W. Adorno”, de Michel Aires de Souza Dias, comentado por Cleidson de Jesus Rocha, é publicado em seguida. Dias afirma que, no século XVIII, Kant avaliou que seu período histórico não era uma época de esclarecimento, mas de menoridade, devido à incapacidade do homem de se servir de seu próprio entendimento. Adorno atualizou esse problema, interpretando a menoridade, em nossa época, em termos de perda da experiência. Os homens não são mais aptos à experiência, pois a aparelhagem técnica e econômica impede o esclarecimento e a conscientização da realidade. A partir desse diagnóstico, Dias investiga o pensamento educacional de Adorno, em suas possibilidades de emancipação. Em seu ponto de vista, o papel da educação, no pensamento do frankfurtiano, é recuperar a autonomia crítica dos indivíduos, por meio do pensamento dialético, para a reconstrução da experiência danificada.
Os dois últimos textos também são de origem do Oriente. O penúltimo é “Paul Auster and August Brill’s Solitary Rooms: the spatiality of solitude”, de autoria de Ru Chen, Song Liu, Jiaxin Lin e Muhammad Khail Kan, comentado por Jie Tong. Conforme os autores, para Paul Auster, um quarto é, em essência, “a própria substância da solidão”, uma solidão espacialmente definida. Nesse sentido, tal abordagem transcendeu suas limitações físicas e assumiu significado existencial e filosófico. Em seus escritos, uma sala é, antes de tudo, um espaço arquitetônico que um escritor solitário ocupa; além disso, é metaforizado como a mente que é a sala – um espaço construído intelectualmente; e, por fim, é um lugar narrado em suas histórias, nas quais seus personagens meditam e compõem um espaço que existe em palavras. O artigo realiza estudos sobre os escritos da vida de Auster e uma de suas ficções, Homem no Escuro, para apresentar a complexidade das três formas de quartos solitários e sua mútua inclusão, na solidão intersubjetiva.
O nono e último artigo é “Monk, official and gentry: multiple writings of Jingshan annals and the regional sight of the late Ming Buddhist revival”, de Yang Li e Yingyan Peng. Ao se discutir o renascimento do budismo, no final da dinastia Ming, com frequência há a falta do estudo de ricos registros locais, regiões específicas e casos típicos, dizem os autores. O templo Jingshan, em Hangzhou, fornece tal amostra. Uma manifestação notável do Templo Jingshan, no final da Dinastia Ming, é a emergência de uma série de anais. Diferentes grupos, como monges, magistrados e nobres, todos participaram da escrita da história de Jingshan, diacronicamente, no mesmo espaço. Diferentes versões dos Anais Jingshan revelam o entrelaçamento de eventos históricos, tendências da época e desejos de vários grupos, em regiões distintas, lançando luz sobre o desenvolvimento de que os registros históricos budistas começaram a envolver outros clássicos fora do budismo, em vez de se concentrar apenas nos sutras budistas. Conforme desejam mostrar os autores. esse processo manifesta que o renascimento do budismo, no final da dinastia Ming, é também um estado ativo diacrônico alcançado pelas atividades das pessoas com diferentes propósitos, em uma área específica.
Por fim, publicamos a tradução do texto “A história da dialética”, de Herbert Marcuse, realizada por João Paulo Andrade e Victor Hugo Saldanha. O texto original foi publicado como parte do verbete “Dialética”, na enciclopédia Marxism, Communism, and Western Societies: A Comparative Encyclopaedia (New York: Herder and Herder, 1972). Esse trabalho fornece uma análise acadêmica relativamente detalhada do “Significado da dialética na Filosofia Antiga”, iniciando em Zenão, nos sofistas e Sócrates, passando por Platão e Aristóteles e concluindo com uma abordagem sobre os estoicos e Plotino; na sequência, volta-se para o horizonte da Filosofia Moderna, a que Marcuse dedica a seção “Significado da dialética em Kant, Fichte e Hegel”; o texto é finalizado com uma análise sobre o “Significado e o alcance da dialética em Marx”, único filósofo privilegiado com uma seção própria. Conforme os tradutores, de modo geral, essa publicação revela Marcuse como um estudioso de primeira classe do conceito de dialética e oferece ao leitor uma análise abrangente e extremamente qualificada da história da dialética, no plano filosófico.
Desejamos boa leitura e discussão resultante deste fascículo!
Referência
ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 9-20, 2021.
Recebido: 30/08/2022
Aceito: 03/09/2022
[1] Docente no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, SP – Brasil e Líder do Grupo de Estudos em Filosofia da Informação, da Mente e Epistemologia – GEFIME (CNPq/UNESP). Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da UNESP. Pesquisador CNPq/Pq-2. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.