COMENTÁRIO A “EDUCAÇÃO, EXPERIÊNCIA FORMATIVA E PENSAMENTO DIALÉTICO EM THEODOR W. ADORNO”

 

Cleidson de Jesus Rocha[1]

 

Referência do artigo comentado: DIAS, Michel Aires de Souza. Educação, experiência formativa e pensamento dialético em Theodor W. Adorno. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 45, n. 4, p. 159-178, 2022.

 

O artigo de Dias (2022), do ponto de vista do conteúdo, se destaca em sua relevância teórica no campo da filosofia contemporânea, conseguindo, conforme faz Adorno, em sua obra, dialogar com aspectos diversos da realidade prática, como é o caso da esfera educacional. Embora não traga uma contribuição conceitual original em relação ao tema tratado, o autor oferece um bom diagnóstico do tempo presente e desenvolve conceitos centrais do pensamento de Adorno, de forma própria e mais simples, sem cair em deturpações conceituais. Isso colabora com a devida formação no pensamento de Adorno a respeito das possibilidades emancipatórias da educação, sobretudo daqueles que estão iniciando o trabalho, nesse pensamento, que é referência fundamental na compreensão de nossa modernidade.

Dias (2022, p. 159) traça um objetivo preciso em torno do que pretende apresentar, definindo assim a principal tarefa lógico-formal do trabalho: “[...] o objetivo do presente artigo é investigar o pensamento educacional de Adorno em suas possibilidades de emancipação.” Esse objetivo é cumprido na discussão de dois itens: 1) Experiência danificada, onde o autor discorre sobre a pobreza de experiências em que caíram os indivíduos, os quais se abraçam e se confortam com as diferentes formas de cultura de massa e 2) A construção da experiência danificada, onde ressalta as razões pelas quais se instala a condição da menoridade em nossa época. No geral, o diagnóstico de tempo que permeia o artigo assume que os homens não são mais aptos à experiência, pois a aparelhagem técnica e econômica impede o esclarecimento e a conscientização da realidade.

A discussão sobre Educação, em Adorno, é pertinente, especialmente quando enfatiza que esse processo precisa ser entendido em todo seu horizonte crítico, buscando a formação da emancipação. Esse conceito perpassa, como um fio vermelho, a obra de Adorno nos diferentes momentos de sua produção. Contudo, na década de 1960, o autor frankfurtiano elabora um conjunto de trabalhos que demonstram, objetivamente, as principais preocupações com a formação cultural dos indivíduos, com vistas à promoção das condições de emancipação e autonomia. Esse traçado comparece no trabalho em comento, o qual se apoia na discussão das várias conferências que compõem a obra Educação e Emancipação, dialogando com importantes estudiosos do tema. 

Ao abordar e relacionar os modos atuais da consciência aos “confortos narcotizantes da sociedade de consumo”, resultando na “perda da aptidão à experiência”, o autor infere que o propalado estado de coisificação da consciência, o qual produz recusas ao entendimento pleno da realidade, tem como consequência a aceitação irrefletida dos comandos disparados pela indústria cultural. A experiência que não acontece, nesse caso, seria a da tomada da consciência de si própria, da parada que remete o pensamento ao seu próprio movimento, na produção de sentidos sobre a própria consciência pensante e, desta, sobre os fenômenos do mundo. Nesse sentido, a noção de experiência, tratada no artigo, inscreve-se na tradição que o próprio Adorno chamou de semiformação, a qual é a transmissão do saber entrecortado pelas degenerações que visam à adaptação dos sujeitos aos parâmetros da cultura de massa.

A problemática da pobreza da experiência, na modernidade – foco do estudo de Dias – é enfatizada por diferentes autores contemporâneos, especialmene por aqueles vinculados à Escola de Frankfurt, com a sinalização da urgente necessidade de sua reconstrução. Walter Benjamim, por exemplo, no pequeno ensaio de 1933, intitulado “Experiência e pobreza”,  faz uma série de constatações exemplares que ele enxerga na arte, na arquitetura e na cultura, acompanhadas de questionamentos cruciais a respeito da pobreza estabelecida no campo da experiência, na modernidade.

O artigo de Benjamim se inicia com a narração de uma pequena parábola: um velho, no leito de sua morte, revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Pretendia transmitir aos filhos o que eles constataram, com o passar do tempo, através da lição da experiência: a felicidade é fruto do trabalho e do tempo. Benjamin lembra que era a transmissão da experiência que conferia autoridade aos mais velhos. Os provérbios, as histórias e as narrativas de viagem cingiam o tempo de ver, viver, contar, transmitir e ouvir. Constatando que as ações da experiência estão em baixa, Benjamin (1987, p. 114) questiona:

O que foi feito de tudo isso? Quem ainda encontra pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno?

 

A experiência perde seu significado, num mundo completamente transformado pela barbárie das guerras mundiais, onde o “minúsculo e frágil corpo humano” se depara com toda a ostentação dos aparatos bélicos da guerra mecanizada. O antigo modelo de guerra terrestre entre exércitos que se afrontavam sobre o campo de batalha foi totalmente superado. O conflito se estende da terra aos mares, aos oceanos e ao céu, e faz uso de instrumentos de destruição de massa, sempre mais sofisticados e fatais. Vemos, então, que a guerra mundial começou a manifestar, de forma evidente, inequívoca  e contínua, o processo de pobreza da experiência, segundo ilustra Benjamin, na seguinte passagem:

Não é verdade que no final da guerra as pessoas voltam mudas dos campos de batalha? E não vinham mais ricas, mas sim mais pobres em experiência comunicável. O que dez anos mais tarde inundaria a literatura sobre a guerra, era tudo menos a experiência que se transmite de boca em boca. (BENJAMIN, 1992, p. 28).

 

A capacidade, que parecia inalienável, segura e inata, de intercambiar experiências perde, como explicam Adorno e Benjamin, para a alienação paralisante de um pensamento que não se reconhece a si próprio, e, nesse estado, não é capaz de identificar os descaminhos da razão e da sociedade rumo à nova barbárie. Um dos pontos de apoio desse estado de coisas é o individualismo, o qual envenena o que ainda resta do sujeito. Descaracterizados de sua maioridade como condição de autonomia, os indivíduos vagam, apegados às muletas da menoridade, impedidos de desenvolver o esclarecimento e a reflexão crítica que instituem sentido aos fenômenos e à vida individual e social.

Nesse sentido, os diálogos sobre a perda da experiência apontam uma nova forma de miséria que surgiu com o monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem, em parte, pela angustiante riqueza de ideias que se difundiu sobre as pessoas, com a pretensão de revogar a miséria humana por meio, não da produção de uma consciência verdadeira e autêntica, mas de uma galvanização na pobreza de experiências. Esse processo indica que a grande pobreza, com seu novo rosto, é, no limite, de toda a humanidade, a qual se encontra mergulhada na nova barbárie, que não se reconhece, mas se impele a uma corrida constante, sempre disposta a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se e a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.

O artigo “Educação, experiência formativa e pensamento dialético em Theodor W. Adorno”, de Michel Aires de Souza Dias, junta-se ao esforço de nos fazer entender a experiência como o elo que nos vincula ao passado e a tudo o que pertence a ele, enquanto patrimônio sócio-histórico cultural. Assumir essa pobreza,  implica, como diz o autor, “[...] recuperar a autonomia crítica dos indivíduos, por meio do pensamento dialético, para a reconstrução da experiência danificada”.

 

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2020.

BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e técnica, Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

DIAS, Michel Aires de Souza. Educação, experiência formativa e pensamento dialético em Theodor W. Adorno. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp. v. 45, n. 4, p. 159-178, 2022.

 

Recebido: 19/07/2022

Aceito: 10/08/2022



[1] Professor Associado do Centro de Educação e Letras do Câmpus Floresta da Universidade Federal do Acre (UFAC), Rio Branco, AC – Brasil. Doutor em Filosofia pela UGF (RJ), com estágio pós-doutoral no Programa Pesquisador Colaborador da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (2018-2019). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1245-0434. E-mail: cleidson.ufac@gmail.com.