COMENTÁRIO A “CONSTELAÇÃO, PARATAXE E ENSAIO: OS ARCANOS DO PENSAMENTO DA NÃO IDENTIDADE”

 

Marcelo Leandro dos Santos[1]

 

Referência do artigo comentado: FRANÇA, Fabiano Leite. Constelação, parataxe e ensaio: os arcanos do pensamento da não identidade. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 4, p. 33-54, 2022.

 

Com o objetivo de elucidar os conceitos de constelação, parataxe e ensaio no pensamento de Theodor Adorno, o artigo de Fabiano Leite França (2022) apresenta algumas características do pensamento e do estilo adorniano, os quais, por vezes, carecem de adequada recepção pelos círculos acadêmicos tradicionais. Neste breve comentário, gostaria de reforçar uma convicção pessoal: sem a apreensão de tais conceitos e a dinâmica que os envolve, na estrutura da filosofia de Adorno, o pensamento do filósofo frankfurtiano sequer pode ser compreendido. Ou – o que certamente é pior – sua compreensão fica suposta por meio de clichês. “Contrário ao sistema”, “opositor de Hegel”, “pensador fragmentado” estão entre algumas das entradas ao pensamento de Adorno, por certo, incapazes de fazer justiça à originalidade de suas ideias centrais.

Contudo, para tal pensamento complexo, há uma forma cirúrgica de abordagem. França (2022) demonstra saber exatamente do que se trata, ao destacar a importância do não idêntico, no modelo de pensamento adorniano. Precisamente, esta é a chave de leitura: o não idêntico. É pela importância atribuída ao não idêntico que o pensamento de Adorno pode revelar sua potencialidade crítica, sua peculiar negatividade, e ainda mais: traçar as possibilidades para o filosofar. “Onde o pensamento filosófico, mesmo em textos importantes, não atinge o ideal de incessante renovação a partir da coisa, sucumbe. Pensar filosoficamente é, assim, como que pensar intermitências, ser perturbado por aquilo que o pensamento não é.” (ADORNO, 1995, p. 21).

Então, miremos, a partir desse paradigma fundamental ao qual França revela permanecer fiel, ao longo de seu artigo, a seguinte noção adorniana: ou o pensamento se renova a partir da coisa, ou sucumbe. Essa ideia expele Adorno do casulo hegeliano. O casulo permanece lá, fundamental a seu tempo, mas a vida intelectual de Adorno se mostra fora dele, pois não quer sucumbir. Por que insisto na ideia de sucumbir, como expressão? Porque o artigo que agora comento me fez lembrar que “[...] o não idêntico: 1) resiste à subsunção conceitual, ao se dispor em uma configuração constelatória; 2) não sucumbe a justaposições subordinadas próprias da linguagem meramente comunicativa; e 3) encontra sua melhor expressão filosófica na forma ensaio.” (FRANÇA, 2022).

Atentemos ao item 2. O que seriam tais justaposições próprias da linguagem meramente comunicativa? Certamente, uma série de coisas; mas o ponto de partida é que o não idêntico resiste a ela. Interessa-nos saber que o não idêntico não sucumbe a um certo modelo de linguagem, talvez porque tal modelo seja incapaz de notar sua presença, sendo assim, no mínimo, indiferente. Vamos discorrer acerca dessa incapacidade como insuficiência:

Até o cerne da linguagem vulgar que elogia os homens porquanto eles são positivos, e mesmo enfim na expressão sanguinária das forças positivas, o positivo é fetichizado em si. Em contraposição a isso, a negação que não se desgarrou mantém sua seriedade no fato de não se tomar por sanção do ente. A negação da negação não revoga esta última. Ao contrário, ela comprova que essa negação não era suficientemente negativa; senão a dialética permanece em verdade indiferente em relação àquilo que foi posto no começo, aquilo por meio do que ela tinha se integrado em Hegel, mas ao preço de sua despotencialização. O negado é negativo até desaparecer. Isso cinde decisivamente de Hegel. Aplainar uma vez mais por meio da identidade a contradição, expressão do não-idêntico, significa o mesmo que ignorar o que essa contradição diz, retornar a um pensamento puramente dedutivo. (ADORNO, 2009, p. 138-139).

 

A idealização de um pensamento puramente dedutivo deixa um rastro de negligências. Adorno escancara essa verdade. A essa observação, gostaria de conectar o item 3, observado por França. Como expressar aquilo que o pensamento puramente dedutivo foi incapaz de fazer? Servindo-se do ensaio como forma, sustenta Adorno. Sabemos que essa orientação aparece no cenário filosófico como arbitrária e, por isso, vista com maus olhos. Aqui gostaria de destacar que essa arbitrariedade é intencional, por pura afinidade ao negligenciado – o não idêntico. E como se poderia, então, fazer justiça? A indicação está logo no primeiro parágrafo de “O ensaio como forma”: “Que o ensaio, na Alemanha, esteja difamado como um produto bastardo; que sua forma careça de uma tradição convincente; que suas demandas enfáticas só tenham sido satisfeitas de modo intermitente, tudo isso já foi dito e repreendido o bastante.” (ADORNO, 2012, p. 15).

Assim, uma subversiva afinidade se revela em nome do negligenciado. O ensaio como grande Outro – maldito, marginal, difamado, bastardo – constitui-se justamente como a forma que pode (com alguma justiça) entrar em sintonia de linguagem com essa alteridade negligenciada pelo pensamento tradicional. O próprio Adorno é um homem que vive e pensa sob tal atmosfera, na medida em que, sendo judeu de mãe católica, oriundo de família comerciante e abastada, estudioso de diferentes áreas, não se apresenta sob o signo puro de filósofo. Ressalta Ricardo Timm de Souza:

É fundamental igualmente que se compreenda que Adorno – ainda mais do que outros grandes intelectuais da época – desenvolveu seus talentos sob o signo do que se pode chamar de tensão cultural da virada do século. “Mestiço” em diversos sentidos, é desde a interação entre mundos culturais muito diversos que o conjunto de sua obra pode ser reconhecido. É preciso além disso notar explicitamente que, na escrita de Adorno, como aliás em todo grande autor, a linguagem que usa para se expressar faz parte de sua própria expressão. (SOUZA, 2004, p. 94).

 

A mestiçagem pode ilustrar a riqueza expressiva de seu pensamento. Essa abertura a diferentes modos de interações deve ser considerada na percepção de que subjaz a seu pensamento uma dimensão utópica de vestígios discretos. Nesse sentido, a influência que recebe do pensamento de Walter Benjamin não é simples partilha intelectual da amizade. Benjamin sempre se mostrou grande estudioso de temas periféricos à filosofia. Dessa maneira, para comentar o item 1 apontado por França, relembrando que a configuração constelatória é própria de um modelo de pensamento que tem no ensaio sua expressão, e que essa configuração é uma herança de Benjamin, torna-se fundamental observar que é indissociável dessa herança a dimensão utópica, por vezes pouco óbvia pelo leitor de Adorno. França (2022) se encarrega de sinalizar, citando a Dialética negativa: “A utopia do conhecimento seria abrir o não-conceitual com conceitos, sem equipará-los a esses conceitos.” (ADORNO, 2009, p. 17).

Sob o arranjo constelatório, temos a matriz de compreensão para o pensamento adorniano, uma vez que “[...] a dialética negativa será o resultado de um conjunto de operações de deslocamento no sistema de posições e pressuposições da dialética negativa.” (SAFATLE, 2019, p. 85). Assim, os conceitos orbitam em seus novos lugares na constelação. Observa França (2022, p. 34):

[...] a cada nova posição das partes, o todo alcança novos significados, afigurando um movimento dialético de transformação recíproca e transição identitária contínua, que faz justiça ao pensamento da não identidade, tal como foi explicitado no pensamento da maturidade de Adorno, sobremaneira na sua obra de 1966, a Dialética negativa.

 

Eis que o pensar por intermitências se revela como modelo de pensamento, na medida em que o arranjo constelatório se justifica com a lembrança utópica de sempre cuidar, para não reificar o não idêntico. Com Adorno, essa lembrança já não é mais meramente um registro marxiano. Ela se responsabilizará por novos modos de pensar. Para finalizar, gostaria de sinalizar, como reflexão, um trecho do aforismo 153, que encerra Minima moralia: “A filosofia, segundo a única maneira pela qual ela ainda pode ser assumida responsavelmente em face do desespero, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da redenção.” (ADORNO, 1993, p. 215). Não seria essa outra forma de percebermos a influência constelacional recebida de Benjamin, a partir de uma perspectiva messiânica?

 

Referências

ADORNO, T. W. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1993.

ADORNO, T. W. Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

ADORNO, T. W. Notas de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012.

ADORNO, T. W. Palavras e sinais: modelo críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995.

FRANÇA, F. L. Constelação, parataxe e ensaio: os arcanos do pensamento da não identidade. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 4, p. 33-54, 2022.

SAFATLE, V. Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

SOUZA, R. T. de. Razões plurais: itinerários da racionalidade ética no século XX. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

 

Recebido: 10/08/2022

Aceito: 28/08/2022

 



[1] Professor na Universidade do Vale do Taquari (Univates), Lajeado, RS – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1410-9440. E-mail: marcelolean.s@gmail.com